Opinião

O controle abusivo das redes sociais: atos antidemocráticos do poder

Autor

  • Marcelo Figueiredo

    é advogado consultor jurídico professor associado dos cursos de graduação e pós-graduação de Direito Constitucional e Direito Constitucional Comparado da PUC-SP.

14 de fevereiro de 2023, 13h14

Durante muito tempo lamentamos a tradicional apatia do cidadão brasileiro para defender e para reivindicar seus direitos. Agora vemos um quadro que poderia ser em princípio muito positivo, não fosse a atuação de grupos radicais e extremistas.

A participação política do povo sempre foi muito salutar e necessária sempre. Já as paixões coletivas e sectárias de grupos políticos sempre preocupou os cientistas políticos e os pais fundadores da democracia norte-americana por exemplo.

James Madison por exemplo debatia como enfrentar a "turbulência e a fraqueza de paixões incontroláveis", às quais uma república sempre estaria sujeita.  Os homens não são anjos dizia e ao longo da história "as distinções mais frívolas e fantasiosas foram suficientes para acender paixões hostis e excitar os conflitos mais violentos".

Tinha razão.

O governo federal anuncia que tem propostas para obrigar plataformas digitais a retirarem do ar conteúdos enquadrados como crimes contra a democracia e terrorismo.

Segundo a imprensa, haverá o prazo de duas horas, o mesmo usado na campanha de 2022 pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para derrubada de desinformação e notícias falsas. A proposta faz parte de um pacote de medidas entregues pelo Ministro da Justiça ao Presidente da República.

Afirma-se ainda que haveria a edição de uma Medida Provisória para obrigar as redes sociais a retirar do ar publicações consideradas antidemocráticas.

Em primeiro lugar ponderamos que a matéria é delicada, complexa e desafia os reguladores (legisladores) em  todo o mundo. A União Europeia discute o tema há décadas e ainda não dispõe de uma legislação exaustiva sobre a matéria.

É de todo recomendável que o tema seja amplamente debatido pelo Congresso Nacional que tem a obrigação de legislar sobre a matéria ou expor as razões pelas quais regulará apenas parte da temática em não toda ela, por exemplo.

Há temas que são tradicionalmente delicados no Direito e que tem desafiado os operadores jurídicos. Assim, por exemplo, é muito difícil excluir conteúdo claramente atentatórios à segurança de crianças e adolescentes, enfrentar o tema da pornografia infantil etc.

Aliás, nessa matéria como em muitas outras o Congresso está devendo satisfação à sociedade. Nada justifica sua omissão ou silêncio eloquente.

Exatamente por ser matéria delicada, complexa e tecnicamente difícil não é recomendável – senão proibido- a edição de Medida Provisória.

Assim, por exemplo não é possível editar Medida Provisória sobre matéria penal. Crimes não podem ser definidos por Medida Provisória, à luz do artigo Artigo 62, §1º, I, "b",da CF.

Não conhecemos o teor das propostas governamentais sobre a matéria, até porque não foram divulgadas- de modo que não é possível comentá-las. Mas isso não significa que não possamos dissertar minimamente sobre suas dificuldades, conhecidas de toda a comunidade jurídica em toda parte.

Deve ser ressaltado que no Brasil, a rigor, não existe "terrorismo", ao menos tal como ocorreu e ocorre em outros Estados [1] (Itália, Irlanda, EUA, etc). Felizmente, nada do que tem ocorrido recentemente no cenário político nacional  extremamente polarizado e radicalizado  pode ser confundido com terrorismo.

Isso evidentemente não significa que indivíduos e grupos extremistas não devam ser responsabilizados por suas ações deletérias e danosas à sociedade.

O Direito deve ser o instrumento adequado para erigir condutas que procurem penalizar e obstaculizar tais comportamentos com medidas rígidas que desestimulem a desordem e a ação de extremistas, vândalos e ensandecidos sociais. Isso é inegável.

Mas daí a formular pacotes emergenciais unilaterais  com uma única visão  do Executivo  de afogadilho  para enfrentar essa complexa temática vai uma larga distância. O resultado de tal iniciativa já se vê não dará certo.

Manifestações violentas ou golpistas não se confundem com terrorismo. As invasões, por grupo radicais, das sedes dos três Poderes, em Brasília, espera-se tenha sido um ato isolado que não se repetirá.

Segundo o artigo 2º da Lei 13260/2016, o "terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública".

Já o §2º da mesma lei dispõe: "O disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida na lei".

É preciso conter urgentemente o protagonismo exacerbado do Supremo Tribunal Federal que a pretexto de defender a democracia brasileira, tem atuado como uma delegacia de polícia em constante plantão e em estado de emergência. Como bem ressaltou o professor Floriano de Azevedo Marques da FDUSP: "A Corte tem sido crescentemente instada a trabalhar como se fosse parte do sistema político. Qual o risco?  Quando ela joga esse jogo, ela perde a sua referência e passa a ser tratada não mais como ator jurídico, mas ator político" [2].

Não há ademais previsão no Brasil da figura do "inquérito judicial" que aliás não existe em nenhum país que adota e acredita seriamente no princípio da separação de poderes.

Mas voltando ao tema central, é conveniente que o Poder Executivo de forma unilateral a pretexto de defender a liberdade de expressão, peça exclusão de postagens que considere desinformativas? Cremos que não.

Quem pode dizer com certeza o que é ou pode ser "desinformação"?

Já imaginaram o risco de um órgão com poderes absolutos que simplesmente não goste de uma informação ou de uma notícia publicada regular e licitamente ser "castigado" pelo governo.

Do mesmo modo, parece-nos que as suspensões que vêm sendo decretadas pelo Supremo Tribunal Federal de influenciadores e de políticos nas redes sociais, em geral são inconstitucionais porque suspender um perfil configura-se em tese praticar uma censura prévia permanente porque impede a pessoa de se manifestar não só no presente, como no futuro de forma permanente.

A nenhum Poder Judiciário em todo o mundo tem sido conferida esse tipo de competência em democracias maduras. 

Quem detém competência para dizer que uma notícia é falsa, ou ainda que determinado conteúdo publicado pela pessoa é ilícito ou irregular? O Executivo, o Judiciário, o Legislativo? Ou os próprios órgãos que produzem a notícia mediante uma autorregulação?

Acreditamos que um sistema de controle ideal deveria ser formado pelos próprios órgãos produtores da notícia  que deveriam ter um mecanismo de controle da informação (checagem e confirmação); que talvez funcionaria melhor do que um sistema repressivo unilateral como atualmente vêm se desenhando de forma autoritária no Brasil.

Em primeiro lugar porque o Executivo ou o governo não deve ser o competente para avaliar o que pode ser considerado como "desinformação". É preciso ademais que o Congresso conceitue o que é desinformação, tarefa nada simples como já vimos.

Ainda mais preocupante é a anunciada intenção do governo de criar um "Departamento de Promoção da Liberdade de Expressão". A exótica proposta tem nítida aparência de um controle social sobre o que os indivíduos podem ou não dizer em público, o que é manifestamente inconstitucional.

Deveras em nenhum Estado democrático existe esse tipo de atribuição de competência ao Poder Executivo. A experiência história demonstra que todas as vezes que governos se intrometem nesse assunto há fatalmente restrição as liberdades públicas e não sua defesa.

Ademais não há nenhum dispositivo em nossa Constituição que autorize o exercício dessa competência pelo Executivo. Ao contrário, tudo indica que o Estado em sentido amplo não deva controlar o exercício das liberdades como regra.

É preciso dizer de forma clara e objetiva: quem emite uma opinião, desprezível que seja, nas redes sociais ou na imprensa está no legítimo exercício de seu direito constitucional e não pode ser molestado por isso por quem quer que seja, seja pelo Estado, seja por um particular.

Lamentavelmente nos últimos tempos, as mais elementares garantias- essas sim a favor da democracia- tem sido desprezada. Deputados são processados quando deveriam estar plenamente protegidos por suas imunidades materiais e formais. Deputados são invioláveis por "palavras, opiniões e votos". Impossível maior clareza.

A crescente sintonia de ideias heterodoxas sobre a liberdade de expressão que existe no Executivo e em parte do Judiciário é preocupante. Como alertou recentemente o conceituado jornalista Carlos Alberto Di Franco (Estadão de 6/2/2023 página A4), isso já começa a ser percebido por importantes veículos no exterior. Basta pensar na preocupação manifestada com as liberdades no Brasil em matérias dos jornais The Washington Post e The New York Times, dentre outros.

Como por diversas vezes anotou o ministro Carlos Britto: "A plena liberdade de imprensa é um patrimônio imaterial que corresponde ao mais eloquente atestado da evolução político-cultural de todo um povo" (ADPF 130/2009). Hoje em dia podemos dizer que as redes sociais são a faceta mais contemporânea da liberdade de imprensa do povo, que não vem sendo devidamente respeitada.

 


[1] Definido na Lei 13260/2016

[2]  O Estado de S. Paulo, edição de 10 de janeiro de 2023, página A10.

Autores

  • é professor de Direito Constitucional nos cursos de graduação e pós-graduação — mestrado e doutorado — da PUC-SP, advogado, pesquisador, parecerista e consultor jurídico.

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