Opinião

Normas recentes e o fim da segurança jurídica no âmbito tributário

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14 de fevereiro de 2023, 19h11

A Constituição Federal pretendeu proteger o contribuinte da sanha arrecadatória do Estado. Para isso foi criada a Seção II no Capítulo I ("Do Sistema Tributário Nacional") do Título IV ("Da Tributação E Do Orçamento") intitulada "Das Limitações Do Poder De Tributar". O artigo 150 traz rol exemplificativo de diversas garantias aos contribuintes, como a proibição ao poder público de exigir tributo sem lei anterior, a exigência da anterioridade para cobrança de tributos (não surpresa), a utilização de tributo com efeito confiscatório e o impedimento à livre circulação de pessoas e bens por meio da exigência do pagamento de tributos.

Entretanto, diversas dessas garantias não são observadas pelos legisladores, que editam normas em desacordo com a Constituição Federal. A título de exemplo, cita-se:

— A exigência do recolhimento de contribuições destinadas ao PIS e à Cofins sobre receitas financeiras por meio de ato infralegal. De acordo com a tese firmada pelo STF no Tema 939, é valida a norma que restabelece a cobrança destes tributos, mesmo que não se trate de lei em sentido estrito. Nesta mesma ideia, embora o Decreto 11.322, em 30/12/2022, tenha reduzido pela metade as alíquotas do PIS e da Cofins incidentes sobre as receitas financeiras auferidas pelas empresas sujeitas ao regime não cumulativo, em 02/01/2023 foi publicado o Decreto 11.374/23 que revogou aquele, tendo ocasionado na majoração de tributos por meio de ato infralegal.

— A exigência do Difal (Diferencial de Alíquotas do ICMS) pelos estados mesmo sem lei anterior, como definido no Tema 1.093 (RE 1.287.019). Afinal, o tribunal reconheceu que, após a EC 87/2015, é necessária edição prévia de lei complementar para fundamentar a cobrança do tributo. Entretanto, tal decisão apenas passaria a gerar efeitos em 2023, conferindo-se prazo ao poder público para editar a lei, a fim de que não perdesse arrecadação. Ocorre que, mesmo assim, a LC nº 190 só foi publicada em 4/1/2023, o que atrai o princípio da anterioridade. Ainda assim, foi ajuizada medida para cobrança do tributo em 2023, pedido que está sendo apreciado pelo STF.

— E, ainda, a possibilidade de exigência pelos estados do Difal imposto às empresas do Simples Nacional. Embora a Constituição Federal tenha determinado a instituição de tratamento diferenciado e favorecido (e, portanto, menos oneroso) às micro e pequenas empresas, o STF, ao apreciar o Tema 517, reconheceu a validade desta cobrança pelos estados, que incide na aquisição interestadual de mercadorias pelas empresas, ainda que para revenda. Foi mantida, entretanto, a impossibilidade de tais empresas escriturarem créditos do imposto, violando-se a não cumulatividade do ICMS. E mais: com base nesta decisão, alguns estados, como o estado de Goiás, exigem o tributo por meio de decreto, violando-se o princípio da legalidade tributária.

A segurança jurídica, princípio constitucional implícito, visa apenas que o contribuinte possa ter previsibilidade e certeza dos recolhimentos por ele devidos. Paulo de Barros Carvalho leciona que a segurança jurídica visa propagar no seio da comunidade o sentimento de previsibilidade quanto aos efeitos jurídicos da regulação da conduta. O autor afirma:

"Tal sentimento tranquiliza os cidadãos, abrindo espaço para o planejamento de ações futuras, cujas disciplina jurídica já conhecem, confiantes que estão no modo pelo qual a aplicação das normas do direito se realiza. Concomitantemente, a certeza do tratamento normativo dos fatos já consumados, dos direitos adquiridos e da força da coisa julgada, lhes dá a garantia do passado. Essa bidirecionalidade passado/futuro é fundamental para que se estabeleça o clima de segurança das relações jurídicas, motivo por que dissemos que o princípio depende de fatores sistêmicos. […]".

Desnecessário encarecer que a segurança das relações jurídicas é indissociável do valor justiça, e sua realização concreta se traduz numa conquista paulatinamente perseguida pelos povos cultos [1].

Entretanto, a regra não é sempre observada pelos legisladores e executores. No caso da transmissão de um PER/DComp (Pedido de Restituição ou Declaração de Compensação), o contribuinte apura e pleiteia o seu crédito, que poderá ser analisado pela Receita Federal nos cinco anos seguintes. Caso ela identifique qualquer irregularidade na Declaração de Compensação a decisão será enviada ao contribuinte juntamente com a multa de, no mínimo, 50% do crédito declarado (artigo 74, §17º, da Lei nº 9.430/96).

E mais: os abusos normativos, sejam oriundos do Legislativo ou Executivo, são validados pelo Judiciário, por meio do Supremo Tribunal Federal. Entretanto, atualmente estamos diante de uma nova forma de abuso do poder público imposta pelo STF. Isto porque a maioria da corte, até 6/2/2023, já se manifestou pela possibilidade de desconstituição automática de decisões transitadas em julgado. A ideia é que, mesmo que o contribuinte tenha obtido decisão judicial transitada em julgado em seu favor, caso seja proferida posteriormente decisão do STF com novo entendimento (considerando válida a cobrança), a decisão anterior torna-se automaticamente inválida.

A coisa julgada é uma garantia fundamental protegida pela Constituição Federal (artigo 5º, XXXVI da CF). Mas, ainda assim, a fim de que não fossem engessados o Direito e as relações sociais, permitindo-se que seja revisitado tema que já possui decisão transitada em julgado, o ordenamento jurídico brasileiro prevê a ação rescisória, com os requisitos que lhe são próprios. Assim, atentando-se à isonomia existente entre contribuinte e fisco, bastaria a este que ajuizasse a ação competente para que, diante do caso concreto, o juiz avaliasse se a coisa julgada mereceria ser desconstituída. Caberia ao contribuinte demonstrar a inaplicabilidade do precedente sobre seu caso. A decisão do STF permite que esta etapa seja pulada — apenas pelo fisco.

A decisão, mais do que garantir a redução de judicialização ou isonomia entre os contribuintes, permitirá que a regra seja aplicada ao bel prazer do fisco, até mesmo para casos distintos. Ora, até no sistema da repercussão geral há possibilidade de distinguishing (ou seja, permite-se ao litigante que demonstre, se for o caso, a distinção de sua hipótese fática e a razão pela qual o precedente não se aplica). Diante da desconstituição automática da coisa julgada, o contribuinte será invariavelmente surpreendido com grandes autuações, visando o recebimento de valores de que ele não tinha ciência. O contribuinte nem mesmo poderá demonstrar a distinção de seu caso com a hipótese analisada pelo STF.

São dois pesos e duas medidas.

Afinal, diante de tributo inconstitucional, quando reconhecido pelo STF, o tribunal tende a modular os efeitos de sua decisão, a fim de que apenas aqueles que já ajuizaram ações sejam ressarcidos dos valores indevidamente recolhidos. Instiga-se o contribuinte, portanto, à judicialização sempre que, a priori, o tributo pareça inconstitucional. Porém, o tribunal atingiu um novo patamar na modulação dos efeitos de suas decisões ao determinar sua aplicação prospectiva no RE 714.139 (Tema 745). Neste caso, mesmo tendo reconhecido a flagrante inconstitucionalidade de norma que possibilitava o agravamento da alíquota do ICMS sobre a energia elétrica, o tribunal decidiu que sua decisão apenas geraria efeitos a partir de 2024.

Dormientibus non succurrit jus (o Direito não socorre aos que dormem) — quando é o contribuinte que dorme. Caso seja o Fisco, este poderá manter-se em sono profundo.

 


[1] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 17ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005. Pg. 150/151.

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