Público X Privado

Evolução da desconsideração da personalidade jurídica e o veto ao PL 3.401

Autores

  • Luis Inácio Lucena Adams

    é sócio de Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown ex-advogado geral da União ex-procurador Geral da Fazenda Nacional pós-graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e bacharel pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

  • Mauro Pedroso Gonçalves

    é sócio de Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown doutorando e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) professor de Direito Processual Civil na especialização da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC) e coordenador regional do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr) em Brasília.

  • Caio Viana de Barros Thomé

    é associado de Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da Universidade de São Paulo (USP).

  • Carolina Marcondes Fraga

    é estagiária de Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown e bacharelanda em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo.

13 de fevereiro de 2023, 8h00

Em breve, o veto ao Projeto de Lei (PL) nº 3.401/2008, que trazia novas previsões para a desconsideração da personalidade jurídica, será apreciado pelo Congresso Nacional. Esse projeto não continha a melhor técnica legislativa, até porque nem indicava, de forma explícita, a revogação ou a alteração de outros dispositivos legais sobre o mesmo assunto. Além disso, em sua parte substancial, apenas refletia o conteúdo de normas que já estavam em vigor e o entendimento jurisprudencial sobre a matéria.

Spacca
Com relação à evolução legislativa, verifica-se que o Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406/2002, CC), em seu artigo 50, definiu o abuso da personalidade jurídica como desvio de finalidade e confusão patrimonial. Posteriormente, o Código de Processo Civil de 2015 (Lei nº 13.105/2015, CPC) criou o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (artigos 133 a 137), que garantiu, especialmente, o contraditório prévio (artigo 135). Em 2019, a Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019), ao alterar o artigo 50 do CC, determinou a extensão das obrigações da pessoa jurídica apenas para os bens particulares dos administradores ou sócios que teriam sido beneficiados pelo abuso, bem como especificou os atos que caracterizariam o desvio de finalidade (§§ 1º e 5º) e a confusão patrimonial (§ 2º).

O esforço legislativo e a formação da jurisprudência vêm sendo orientados pelo parágrafo único do artigo 49-A do CC, incluído pela Lei da Liberdade Econômica: "A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos". De fato, a preocupação dos Poderes Legislativo e Judiciário sempre foi voltada à segregação dos riscos da atividade empresarial para impulsionar a atividade econômica, trazer maior segurança jurídica e aumentar a previsibilidade do ambiente de negócios do Brasil.

Neste artigo, serão comentados os principais aspectos do vetado PL nº 3.401/2008, em comparação à legislação em vigor e à jurisprudência de nossos tribunais.

Em primeiro lugar, cumpre ressaltar que a parte substancial do PL nº 3.401/2008 — constante em seus artigos 2º, caput [1], e 6º[2], relativos aos limites da desconsideração da personalidade jurídica — já estava em consonância com a lei e a jurisprudência. Afinal, os artigos 50, caput [3], do CC e 134, § 4º[4], do CPC exigem que a extensão das obrigações da pessoa jurídica só pode ocorrer sobre os bens particulares dos administradores ou sócios beneficiados pelo abuso. É o que também se extrai do Enunciado nº 7 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (CJF), aprovado em 2002: "Só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a prática de ato irregular e, limitadamente, aos administradores ou sócios que nela hajam incorrido".

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) também restringiu os efeitos da desconsideração. Por exemplo, a 3ª Turma, em acórdão da relatoria do ministro Villas Bôas Cueva, reconheceu que a desconsideração da personalidade jurídica "deve atingir somente os sócios administradores ou que comprovadamente contribuíram para a prática dos atos caracterizadores do abuso da personalidade jurídica" [5]. No mesmo sentido, a 2ª Seção, em acórdão relatado pela ministro Isabel Gallotti, consignou que a aplicação do instituto deve ocorrer apenas para "casos extremos", pois "entendimento diverso conduziria, no limite, em termos práticos, ao fim da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, ou seja, regresso histórico incompatível com a segurança jurídica e com o vigor da atividade econômica" [6].

Com efeito, a lei e a jurisprudência partem da sensata premissa, amplamente reconhecida por nossos tribunais, de que seria ilógico responsabilizar sócios [7], administradores [8] ou ex-sócios [9] por atos que não teriam sido por eles praticados. A propósito, no caso de ex-sócio, a jurisprudência exige, evidentemente, que a inadimplência contratual e o ato que ensejou a desconsideração tenham ocorrido quando ainda integrava o quadro societário da empresa [10].

Da mesma forma, o artigo 5º, caput [11], do PL nº 3.401/2008, que vedava a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica por analogia ou interpretação extensiva, apenas reiterava o entendimento doutrinário e jurisprudencial. O Enunciado nº 146 da III Jornada de Direito Civil do CJF, aprovado em 2005, estabelece que: "Nas relações civis, interpretam-se restritivamente os parâmetros de desconsideração da personalidade jurídica previstos no art. 50 (desvio de finalidade social ou confusão patrimonial)".

Outrossim, seria pleonástico em nosso ordenamento jurídico o artigo 3º, caput [12], do PL n. 3.401/2008, que trata da ampla defesa. O artigo 135 [13] do CPC já garante o contraditório prévio no incidente de desconsideração da personalidade jurídica, com a possibilidade de apresentação de defesa e produção das provas cabíveis.

O PL nº 3.401/2008 também geraria uma redundância com relação ao texto do artigo 5º, § 2º: "a mera inexistência ou insuficiência de patrimônio para o pagamento de obrigações contraídas pela pessoa jurídica não autoriza a desconsideração da personalidade jurídica". De fato, a jurisprudência já se consolidou no sentido de que a falta de bens da empresa para satisfazer o crédito não enseja a desconsideração da personalidade jurídica [14].

Diante do exposto, observa-se, resumidamente, que o desafio da lei e da jurisprudência sempre foi assegurar o equilíbrio entre, de um lado, providenciar aos credores mecanismos eficazes de recuperação de crédito e, de outro, não impor ônus desproporcionais a sócios ou a administradores, com a preservação da autonomia patrimonial da empresa. Enquanto os meios para se saldar uma execução podem ser constantemente aprimorados, a definição da alocação dos riscos da atividade da pessoa jurídica evita a restrição de investimentos e a estagnação da atividade econômica. A resposta a essa equação já está consolidada na legislação vigente e na jurisprudência aplicável, de modo que o veto do PL não traz prejuízos à evolução do instituto da desconsideração da personalidade jurídica.

 


[1] "Art. 2º A parte que postular a desconsideração da personalidade jurídica ou a responsabilidade pessoal de membros, de instituidores, de sócios ou de administradores por obrigações da pessoa jurídica indicará, necessária e objetivamente, em requerimento específico, quais os atos por eles praticados que ensejariam a respectiva responsabilização, na forma da lei específica, o mesmo devendo fazer o Ministério Público nos casos em que lhe couber intervir no processo."

[2] "Art. 6º Os efeitos da decretação de desconsideração da personalidade jurídica não atingirão os bens particulares de membro, instituidor, sócio ou administrador que não tenha praticado ato abusivo da personalidade em detrimento dos credores da pessoa jurídica e em proveito próprio."

[3] "Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019)"

[4] "§ 4º. O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica."

[5] STJ, 3ª Turma, REsp 1.861.306/SP, rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 2/2/2021.

[6] STJ, 2ª Seção, EREsp 1.306.553, rel. min. Isabel Gallotti, j. 10/12/2014.

[7] "[…] 4. A desconsideração da personalidade jurídica, em regra, deve atingir somente os sócios administradores ou que comprovadamente contribuíram para a prática dos atos caracterizadores do abuso da personalidade jurídica. 5. No caso dos autos, deve ser afastada a responsabilidade da herdeira do sócio minoritário, sem poderes de administração, que não contribuiu para a prática dos atos fraudulentos. 6. Recurso especial não provido." (STJ, 3ª Turma, REsp 1.861.306/SP, rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 2/2/2021).

[8] "[…] A administradora não-sócia que ainda exerce poderes de administração, embora possa ser responsabilizada em tese, não concorreu para a prática de ato irregular ou fraudulento. Afastada a responsabilidade dos administradores, que nunca foram sócios, ressalvada a possibilidade de que busque o credor a desconsideração da personalidade jurídica para alcançar bens das pessoas jurídicas que figuram como sócias da devedora principal SANTA APOLÔNIA. Ausência de condenação ao pagamento de honorários, conforme precedente do STJ. Recurso provido em parte." (TJ-SP, 1ª Câmara de Direito Privado, AI 2174637-27.2022.8.26.0000, Ac. 16249785, rel. des. Francisco Loureiro, j. 21/11/2022).

[9] "CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. EX-SÓCIO. […] 2 – No entanto, a medida excepcional é, por si só, insuficiente para alcançar o patrimônio do ex-sócio, para o que se faz necessário que ele tenha concorrido para prática do ato ilícito, não comprovado no caso." (TJDFT, 4ª Turma Cível, Acórdão 1172552, 07041537320178070000, rel. des. Fernando Habibe, j. 15/5/2019).

[10] "[…] 4. O simples fato de o contrato entre as partes ter sido firmado quando a ré/agravante participava da sociedade não autoriza a sua responsabilização pelos danos ocorridos em momento posterior à sua retirada, em especial porque, à primeira vista, a ré/agravante sequer obteve proveito econômico decorrente do contrato, cuja contraprestação pecuniária foi iniciada após a averbação da cessão de suas cotas sociais. […]" (TJDFT, Acórdão 1325022, 07456081320208070000, rel. des. Josapha Francisco dos Santos, 5ª Turma Cível, j. 10/3/2021).

"[…] 2. Não se aplicam os arts. 1.003 e 1.032 do CC para os casos de desconsideração da personalidade jurídica, a qual tem como fundamento o abuso de direito efetivado quando a parte ainda integrava o quadro societário da pessoa jurídica alvo da execução. Acórdão recorrido em harmonia com a jurisprudência desta Corte Superior, atraindo a incidência da Súmula 83/STJ. 3. Agravo interno desprovido." (STJ, AgInt no AREsp nº 1.347.243/SP, rel. min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. 18/3/2019).

[11] "Art. 5º. O juiz somente poderá decretar a desconsideração da personalidade jurídica ouvido o Ministério Público e nos casos expressamente previstos em lei, sendo vedada a sua aplicação por analogia ou interpretação extensiva."

[12] "Art. 3º. Antes de decidir sobre a possibilidade de decretar a responsabilidade dos membros, dos instituidores, dos sócios ou dos administradores por obrigações da pessoa jurídica, o juiz estabelecerá o contraditório, assegurando-lhes o prévio exercício da ampla defesa."

[13] "Art. 135. Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias."

[14] "[…] 1. Consoante entendimento desta Corte Superior, ‘a existência de indícios de encerramento irregular da sociedade aliada à falta de bens capazes de satisfazer o crédito exequendo não constituem motivos suficientes para a desconsideração da personalidade jurídica, eis que se trata de medida excepcional e está subordinada à efetiva comprovação do abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial’ (AgInt no AREsp 1,712,305/SP, rel. ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, 4ª TURMA, julgado em 12/04/2021, DJe de 14/4/2021). […] 3. Agravo interno provido para conhecer do agravo e dar provimento ao recurso especial.” (STJ, AgInt no AREsp nº 2.028.471/MT, rel. min. Raul Araújo, 4ª Turma, j. 26/9/2022).

"[…] os valores envolvidos, por si só, não justificam a desconsideração e inquéritos e processos judiciais em curso igualmente não demovem o Princípio da Presunção de Inocência”, sendo necessário “elemento concreto de comprovada má-fé […]" (STJ, AgInt no REsp 1.538.258, rel. min. Luis Felipe Salomão, j. 26/8/2022).

:[…] A existência de indícios de encerramento irregular da sociedade, aliada à falta de bens capazes de satisfazer o crédito exequendo, não constituem motivos suficientes para a desconsideração da personalidade jurídica, eis que se trata de medida excepcional e está subordinada à efetiva comprovação do abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, inocorrentes na hipótese." (TJDFT, EMA 07035.08-09.2021.8.07.0000, Ac. 162.2866; rel. des. Mario-Zam Belmiro Rosa, 8ª Turma Cível, j. 27/9/2022).

Autores

  • é ex-ministro-chefe da Advocacia-Geral da União.

  • é sócio de Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown, doutorando e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professor de Direito Processual Civil na especialização da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília, membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC) e coordenador regional do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr) em Brasília.

  • é associado de Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP).

  • é estagiária de Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown e bacharelanda em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo.

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