Opinião

Permanência e continuidade para fins de demarcação de terra indígena

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13 de fevereiro de 2023, 19h13

Em artigo recente neste portal, discutia-se se as terras já consolidadas para uso agropecuário poderiam ou não atender as finalidades constitucionais que autorizam seu reconhecimento como terras "tradicionalmente ocupadas", em particular, o uso dessas terras para "atividades produtivas" tipicamente indígenas [1]. Verifica-se, como demonstrado no trabalho, a impossibilidade de conversão de áreas já consolidadas em áreas onde o modelo produtivo fosse realmente guiado pelos usos, costumes e tradições dos povos originários, ou seja, ocorreria, na verdade, em certas demarcações, um esvaziamento do sentido do artigo 231 da Constituição Federal.

À parte isso, o texto constitucional trata os direitos indígenas sobre as terras que ocupam em termos de "direitos originários", significando que tais direitos são anteriores a seu eventual reconhecimento formal por parte do governo brasileiro, tendo qualquer manifestação deste com relação ao reconhecimento das terras como sendo tradicionalmente ocupadas, natureza meramente declaratória de uma situação jurídica anteriormente existente, a qual carecia, entretanto, de eficácia jurídica para garantia dos povos.

Em que pese ter restado consignado no julgado que o decidido aplicar-se-ia apenas ao caso concreto, não se pode desconsiderar na matéria o importante precedente do Supremo Tribunal Federal quanto à Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Além do aspecto das finalidades das atividades a serem desenvolvidas em terras demarcadas, a Corte enfrentou questões relativas à permanência da ocupação das áreas e à continuidade da área a ser demarcada.

Podemos situar os requisitos de permanência e de continuidade como sendo, respectivamente, as dimensões temporal e espacial do fenômeno da demarcação de terras indígenas. Paralelamente à questão da finalidade de tais demarcações, esses requisitos representam um substrato mínimo para operação do que seria um "modelo" para essas demarcações.

Tendo a dimensão temporal em mente, podemos considerar a permanência como se referindo tanto à posse ancestral quanto à garantia de uma posse futura, permanente das áreas habitadas por indígenas. Na perspectiva ancestral, analisamos a ocupação da terra tendo como ponto de partida um momento imemorial, que antecede em muito a própria chegada do homem branco no continente americano. O marco zero para essa análise seria 1500, momento em que portugueses constataram que a terra já era habitada por outros povos.

Quanto à permanência futura, vemos que esta figura como uma garantia, como um dos efeitos do reconhecimento formal das áreas como sendo território indígena. Seria um efeito decorrente da validade, e consequente eficácia, gerados pela declaração do Estado brasileiro no sentido de demarcar tais territórios. A posse imemorial, assim, seria o suporte fático da norma que garante permanência dos habitantes dessa terra com relação ao futuro.

Ainda sob o aspecto temporal, vigora uma ampla discussão no âmbito do RE 1.017.365 (ainda em aberto perante o Supremo) sobre a tese do marco temporal a ser considerado nas demarcações. Segundo a tese, utilizada na decisão de Raposa Serra do Sol de 2009, apenas as áreas que já contavam com ocupação até a promulgação da Constituição Federal de 1988 poderiam ser consideradas como terra indígena, uma vez que o Carta teria trabalhado "com data certa  a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988)  como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam" [2].

Ao se considerar o caráter tradicional da posse indígena, segundo aquele julgado, sua interrupção só poderia ocorrer (sem violar o requisito da permanência) em decorrência de reiterado esbulho por parte de não-índios, devendo ser observada nesses casos conduta de resistência dos indígenas a tais invasões e de afirmação de sua peculiar presença na área.

A data de promulgação da Constituição Federal figuraria como um referencial básico para a declaração de que as terras em litígio são objeto de posse imemorial pelos indígenas. Sem isso, sem um marco preciso para comprovação da posse em questão, e considerada a dinâmica de movimentação de indígenas dentro do território nacional por motivos diversos, não haveria como determinar, de forma precisa, o que seria, de fato, uma "posse imemorial" a merecer a tutela constitucional.

A consequência prática da adoção da tese do marco temporal consiste na impossibilidade de ampliação dos territórios indígenas com relação a áreas que não apresentavam presença indígena documentada anterior à 5/10/1988. Do mesmo modo, opera-se vedação de expansão em virtude da necessidade de segurança jurídica para as áreas vizinhas às terras a serem demarcadas, bem como em decorrência do imperativo lógico, segundo o qual, se for possível a ampliação das áreas, esse fato tornaria questionável o caráter efetivo da posso indígena anteriormente comprovada.

Em nossa visão, a tese do marco temporal acaba por chancelar o sentido tradicional que deve marcar a ocupação de territórios indígenas, estabelecendo um parâmetro seguro para que áreas onde não haja comprovada posse indígena, até certa data, sejam excluídas da tutela constitucional em favor dos indígenas, tendo em vista o bem jurídico específico que o constituinte buscou proteger ao garantir o direito permanente daqueles às terras que de fato ocupam, ou seja, a ocupação tradicional da terra por seu povo nativo.

A questão trata-se, também, de considerar o interesse de inúmeros terceiros de boa-fé que, na constância de sua posse em áreas vizinhas à contestada, veem-se ameaçados pela insegurança de uma eventual ampliação do território demarcado, o que é razão de enorme insegurança jurídica e de consequentes prejuízos para as atividades econômicas desenvolvidas nessas áreas, como o êxodo de produtores e a desvalorização imobiliária, para citar somente alguns. Com o marco temporal, tutela-se tanto o direito dos indígenas (reconhecendo a tradicionalidade da ocupação pela permanência ao menos ate a data da CF/88) quanto o direito de terceiros que desenvolvem suas atividades produtivas e, com base na mesma lei fundamental, tem seu direito de propriedade garantido.

Já com relação ao aspecto espacial da demarcação, verificamos que a continuidade trata da forma de constituição das áreas indígenas, que não devem apresentar interrupções, enclaves ou exclaves, "ilhas" ou "bolsões", mas ser um território contínuo, de modo a privilegiar o desenvolvimento das comunidades indígenas em um só ambiente, integrado e orgânico.

Conforme manifestado pelo governo de Rondônia, autor da ação que deu origem ao precedente de Raposa Serra do Sol [3], a questão de a área indígena dever ser constituída em faixa única é necessária à proteção da produção agrícola do estado, a qual restaria prejudicada pela existência de interrupções territoriais, tendo em vista o limbo em que as áreas intermediárias estariam situadas caso houvesse um mesmo território indígena em diferentes áreas isoladas.

Nota-se que a continuidade das áreas a serem demarcadas oportuniza aos indígenas um espaço único, centralizado para o cumprimento das finalidades constitucionais que levam ao reconhecimento de seus direitos originários, ao mesmo tempo em que produz segurança jurídica para os proprietários dos imóveis vizinhos, tutelando os legítimos interesses desses no desenvolvimento de suas atividades agropecuárias, sem a ameaça de uma eventual expansão das áreas demarcadas.

Da mesma sorte, é natural percebermos que, em se falando de uma posse imemorial comprovada ao menos até certa data, um determinado grupo indígena está ligado à uma área específica, habitando-a por gerações sucessivas e tendo com esta uma relação intrínseca, sendo consequentemente tal área território contínua, sede das atividades e moradia desse povo, não sendo possível cogitar que esse mesmo grupo estenderia suas atividades tradicionais com relação a áreas que se situam além das circunscrições dos territórios que utilizam tradicionalmente para suas atividades produtivas.

Orientado pelo atendimento das finalidades constitucionais das terras indígenas tradicionalmente ocupadas, o modelo de demarcação validado em 2009 pelo Supremo também se encontra pautado pelos requisitos de permanência da ocupação e continuidade das áreas, princípios esses que norteiam a União no exercício de seu dever de demarcar tais áreas.

Como dito linhas acima, a questão do marco temporal ainda permanece em aberto perante a Corte, que no ano de 2022 retirou o processo de pauta, não havendo previsão para julgamento da questão. O precedente de 2009, apesar de ter sido expressamente previsto apenas para o caso de Raposa Serra do Sol, tem sido aplicado pela corte no julgamento de outros casos, demonstrando que as "ressalvas institucionais" propostas por Menezes Direito são representativas de um entendimento que tende a permanecer na matéria.

Por fim, os conflitos fundiários que envolvem demarcações de terras indígenas [4], nos termos do que estabeleceu o Supremo ao reconhecer repercussão geral na matéria, devem ser objeto de análise minuciada por parte do Judiciário, que deve exercer o papel de mediador entre os interesses de indígenas e não-indígenas, sopesando-os e adotando a melhor interpretação do artigo 231 da CF ao caso concreto, como forma de garantir uma pacificação da nação na matéria, e que o reconhecimento dos direitos originários dos povos não entre em rota de colisão fatal com o desenvolvimento nacional em suas esferas econômica, social e cultural.

 


[2] Pet 3.388, relator(a): ministro CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 19/03/2009, DJe-181 DIVULG 24-09-2009 PUBLIC 25-09-2009 REPUBLICAÇÃO: DJe-120 DIVULG 30-06- 2010 PUBLIC 01-07-2010 EMENT VOL-02408-02 PP-00229 RTJ VOL-00212-01 PP-00049.

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