Opinião

Impossibilidade jurídica de atuação da Defensoria como "curadora do feto"

Autores

  • Nálida Coelho Monte

    é defensora pública e coordenadora do Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem-SP) graduada pela UFPI (Universidade Federal do Piauí) e membra da Comissão da Mulher do Condege.

  • Anne Teive Auras

    é defensora pública no Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem-SC).

  • Thaís Dominato Silva Teixeira

    é defensora pública no Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem-MS) graduada em Direito pela Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente (SP)(2002); pós-graduada em Direito de Família e Sucessões pela Escola Paulista de Direito (2011); pós-graduada em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS 2021; membra da Comissão da Mulher do Condege.

  • Mariana Martins Nunes

    é defensora pública no Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem-PR).

  • Flávia Brasil Barbosa do Nascimento

    é defensora pública no Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem-RJ).

13 de fevereiro de 2023, 9h12

Mês passado repercutiu na imprensa a informação de que, em processo que tramita na 1ª Vara de Infância e Juventude da comarca de Teresina (PI), teria havido nomeação de Defensora Pública para "representar os interesses do feto", em ação judicial na qual uma criança de 12 anos estaria grávida, pela segunda vez, após a ocorrência de vários estupros [1].

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Não se trata da primeira ocasião em que a figura do "curador do feto" ganha as manchetes nacionais em casos submetidos ao Poder Judiciário envolvendo crianças vítimas de violência sexual [2]: o caso da menina catarinense de 11 anos que, em audiência judicial, foi convencida a manter a gestação também contou, segundo noticiou a imprensa, com a nomeação de advogado para atuar na defesa do feto. O tema também é abordado no Projeto de Lei nº 478/2007, que tramita na Câmara e dispõe sobre o chamado Estatuto do Nascituro. De acordo com o PL, o Ministério Público deve requerer ao juízo que nomeie curador especial ao nascituro sempre que, no exercício do poder familiar, haja colidência entre "o interesse dos pais com o do nascituro".

O contexto acima narrado demonstra que a figura do "curador do feto" já é realidade nos processos judiciais, ainda que essa possibilidade não possua amparo legal.

O texto a seguir é fruto da atuação cotidiana de Defensoras Públicas na defesa intransigente de mulheres e meninas vítimas de toda forma de violência e opressão [3] e da convicção, apoiada em manifestações expressas de órgãos de proteção de direitos humanos [4], de que as normas jurídicas devem ser interpretadas a partir de uma perspetiva de gênero, sobretudo se considerarmos o contexto de desigualdades existente no país. O Conselho Nacional de Justiça, por exemplo, reconheceu "a influência que as desigualdades históricas, sociais, culturais e políticas a que estão submetidas as mulheres ao longo da história exercem na produção e aplicação do direito e, a partir disso, identifica a necessidade de criar uma cultura jurídica emancipatória e de reconhecimento de direitos de todas as mulheres e meninas" [5]. A suposta neutralidade da norma ou de formas de pensar o mundo é, além de falaciosa,  cúmplice da manutenção de estruturas desiguais da sociedade brasileira. Urge reconhecer que o processo de produção de conhecimento é político. Do contrário, permaneceremos aprisionadas em um mundo pensado por homens e construído para homens.

Em primeiro lugar, é importante estabelecer como premissa que a nomeação de curador para o feto, na prática, esvazia o direito ao aborto legal de meninas e mulheres vítimas de violência sexual, na medida em que protela a realização de uma intervenção médica que, necessariamente, precisa se efetivar o quanto antes. Isso é, inclusive, demonstrado pelo caso noticiado da menina de 12 anos no Piauí, no qual o aborto legal não foi realizado em virtude de recurso da curadora do feto [6]. O estabelecimento de óbices ao aborto legal não é novidade no Brasil — muitas mulheres e meninas acabam ficando sem atendimento médico, em razão da "objeção da consciência" oposta pela/o profissional de saúde ou pela exigência do registro de boletim de ocorrência ou do desfecho de investigações policiais [7]. A nomeação de curador para o feto é mais um desses obstáculos.

É sabido que o artigo 72 do Código de Processo Civil estabelece que o/a juiz/a nomeará curador especial ao incapaz, caso não tenha representante legal ou se os interesses deste colidirem com os daquele, enquanto durar a incapacidade e ao réu preso revel, citado por edital ou por hora certa. O objetivo seria a garantia do devido processo legal.

A nomeação de curador especial não está prevista no permissivo legal autorizador do aborto (artigo 128 do Código Penal) que exige, para a sua realização, apenas o consentimento da gestante ou de seu representante legal. Esse procedimento, prescinde, inclusive, de autorização judicial.

Não bastasse isso, fetos/embriões não possuem capacidade de ser parte ou estar em juízo, como decorrência lógica da ausência de personalidade jurídica. Não há dispositivo legal, no ordenamento jurídico internacional ou nacional, que admita essa possibilidade.

No âmbito do direito internacional, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos estabelece que "toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção". A partir do julgamento do caso Artavia Murillo y otros vs. Costa Rica, a Corte Interamericana de Direitos Humanos recriou as discussões em torno do dispositivo acima e chegou à conclusão de que a intenção da norma não é  elevar o embrião ao status de pessoa. Na verdade, a concepção é juridicamente protegida porque se pretende proteger a pessoa que gesta, já que aquela ocorre dentro do corpo desta.  Ou seja, a proteção do nascituro se realiza através da proteção da mulher.  Tampouco a Convenção Sobre os Direitos da Criança, em seus artigos 1 e 6.1, estabelece, de maneira explícita, a proteção absoluta da pessoa não nascida.

A mesma conclusão é obtida a partir da análise da legislação brasileira. No âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu que a Constituição Federal  não dispõe sobre o início da vida humana ou o preciso instante em que ela começa "[…] E quando se reporta a 'direitos da pessoa humana' e até aos ‘direitos e garantias individuais' como cláusula pétrea está falando de direitos e garantias do indivíduo-pessoa, que se faz destinatário dos direitos fundamentais 'à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade', entre outros direitos e garantias igualmente distinguidos com o timbre da fundamentalidade (como direito à saúde e ao planejamento familiar)".

Na mencionada ação ficou consignado que a expressão "criança" também não se confunde com embrião ou feto, "pelo que somente é tido como criança quem ainda não alcançou 12 anos de idade, a contar do primeiro dia de vida extrauterina" (ADI 3.510). Isso porque o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) conceitua criança como a pessoa até doze anos de idade incompletos e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade, sem fazer menção ao embrião ou feto.

Evidência disso é que o ECA, ao dispor sobre o direito à vida e à saúde em seu artigo 8º, garante a todas as mulheres o acesso aos programas e às políticas de saúde e de planejamento reprodutivo e às gestantes nutrição adequada, atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério, além de atendimento pré-natal, perinatal e pós-natal integral no âmbito do Sistema Único de Saúde. De forma explícita, a proteção à vida e à saúde do feto ocorre a partir da proteção da mulher gestante. No mesmo sentido, a Lei Federal 11.804/2008 assegura à mulher gestante o direito aos alimentos. A proteção ao embrião ou feto, portanto, ocorre tão somente enquanto forma de proteção à própria pessoa que gesta, e não de forma independente.

A análise da legislação internacional e nacional evidencia que embrião/feto, de forma autônoma, não pode ser titular de direitos que são assegurados apenas a pessoas já nascidas, já que destituídos de personalidade civil, que somente será adquirida a partir do nascimento com vida (artigo 2º do Código Civil e ADI 3.510). Ausente a personalidade jurídica, também se encontra ausente a capacidade de ser parte (autor e réu em relação processual). As figuras da assistência, representação processual e curadoria destinam-se ao suprimento material e processual da capacidade de direito ou da capacidade de estar em juízo, o que não se aplica a fetos/embriões, porquanto destituídos de personalidade jurídica e capacidade de direito. Tanto é assim que  o art. 142, parágrafo único, do ECA estabelece que somente à criança e à/ao adolescente deve ser nomeado curador especial, em caso de conflito de interesses com genitoras/genitores.

Deve-se registrar, ainda, que admitir a possibilidade de nomeação de curador para o feto não atinge somente o direito das mulheres e meninas vítimas de violência sexual a terem acesso ao aborto legal. De igual modo, viola a dignidade, a autodeterminação e o acesso à saúde das pessoas que gestam, negando a sua condição de sujeitas de direitos, em um processo de desumanização e controle de seus corpos. Essa desumanização da pessoa que gesta (que passa a ser encarada como um meio para fins alheios) acaba legitimando discursos que a impedem de fazer escolhas sobre os tratamentos de saúde a que deseja se submeter durante a gestação, parto e o pós-parto, o que vai na contramão dos pressupostos voltados à humanização do parto e à prevenção da violência obstétrica, contidos em diversas normativas estaduais e recomendações do Ministério da Saúde.

Assim, a nomeação de curador especial para o feto/embrião reforça a desigualdade entre homens e mulheres, reproduzindo a ideia de que a “existência legítima” da mulher não se justifica em razão de si mesma, mas somente enquanto relacionada ao “outro”, isso é, enquanto mãe no exercício da função reprodutiva.

Esse debate não pode ignorar, ainda, os altos índices de violência sexual a que meninas e mulheres são expostas no Brasil e os impactos da gravidez forçada para crianças e adolescentes.  Uma criança é mãe a cada 20 minutos no Brasil, mais de 70 partos são realizados em meninas por dia e cerca de 20 mil meninas engravidam em decorrência de estupro por ano [8]. A esse respeito, convém esclarecer que, juridicamente, toda gestação de meninas com idade inferior a 14 anos configura estupro de vulnerável, por decorrência lógica do artigo 217-A do Código Penal, circunstância que autoriza a interrupção da gestação.

Além das consequências a médio e longo prazo na vida das meninas, a gestação infantil acarreta risco às suas vidas, em razão dos elevados índices de mortalidade materna e óbito fetal. Sobre o assunto, a Federação Brasileira de Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) alerta, em sua "Nota Informativa aos tocoginecologistas brasileiros sobre o aborto legal na gestação decorrente de estupro de vulnerável" [9], que a imaturidade biológica da menina, na infância e na puberdade, traz como consequência uma maior taxa de complicações obstétricas, de modo que as taxas de mortalidade materna entre gestantes menores de 14 anos chegam a ser cinco vezes maiores do que entre gestantes entre 20 e 24 anos. Uma das medidas fundamentais para minimizar os efeitos da violência sexual é viabilizar a interrupção da gestação, se esse for o desejo da pessoa gestante.

Ao desempenhar a ilegal função de ser curadora do feto, a Defensoria Pública deixa de proteger de forma eficaz crianças, adolescentes e mulheres vítimas de violência sexual, dificultando ainda mais o acesso ao aborto legal.

O papel da Defensoria Pública, em caso de gravidez decorrente de violência sexual, deve ser o de assegurar que a menina e a mulher tenham voz ativa e direito de participação no processo, zelando para que suas escolhas sejam respeitadas, concedendo-lhe informações relevantes para tomada de decisões com base no consentimento livre e informado, auxiliando-lhe a compreender as consequências e implicações desses caminhos, e evitando qualquer tipo de coação no curso do processo decisório. 

Por fim, importante consignar que o princípio constitucional da igualdade como não discriminação (artigo 3º, inciso IV) deve pautar o atuar da Defensoria Pública, sobretudo na estruturação de seus órgãos de atuação. Nesse sentido, a atuação como "curador do feto"  que carece de qualquer respaldo legal, constitucional e convencional  é absolutamente incompatível com a missão constitucional atribuída à Defensoria Pública na promoção e defesa dos direitos humanos, haja vista que viola a dignidade de mulheres e meninas, reproduz violência, discriminação de gênero e gera vitimização secundária.

 


[1] DUPLA VIOLÊNCIA: Defensoria pede para proteger feto de menina de 12 anos grávida pela segunda vez após estupro no PI e juíza aceita. Reportagem de Paula Guimarães. The Intercept, 30 de janeiro de 2023. Disponível em https://theintercept.com/2023/01/30/aborto-juiza-piaui-antecipa-estatuto-nascituro-crianca-estuprada/. Acesso em 01/02/2023.

[2] SUPORTARIA FICAR MAIS UM POUQUINHO’: Em audiência, juíza de SC induz menina de 11 anos grávida após estupro a desistir de aborto legal. Reportagem de Paula Guimarães, Bruna de Lara e Tatiana Dias. The Intercept, 20 de junho de 2022. Disponível em https://theintercept.com/2022/06/20/video-juiza-sc-menina-11-anos-estupro-aborto/. Acesso em 01.02.2023.

[3] LEWIN, Ana Paula de Oliveira Castro Meirelles; PRATA, Ana Rita Souza. Da atuação da Defensoria Pública para promoção e defesa dos direitos da mulher. In.: Revista Digital de Direito Administrativo, Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, vol. 3, n. 3, p. 525-541, 2016.

REBELLO, Arlanza Maria Rodrigues. Para mudar o rumo da prosa: um novo olhar sobre a Lei nº 11.340/06. In.: Gênero, Sociedade e Defesa de Direitos: a Defensoria Pública e a atuação na defesa da mulher. Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Coordenação de Defesa da Mulher, CEJUR. Rio de Janeiro: DPERJ, 2017. P. 44-58.

MELO, Monica de. Direito fundamental à vida e ao aborto a partir de uma perspectiva constitucional, de gênero e de criminologia. Curitiba: Appris, 2022.

Prata, Ana Rita e MACHADO, Paula. A PEC DO CAVALO DE TROIA COMO ARMA CONTRA AS MULHERES. Disponível em < https://agenciapatriciagalvao.org.br/mulheres-de-olho/dsr/pec-do-cavalo-de-troia-como-arma-contra-as-mulheres-por-ana-souza-prata-e-paula-machado-de-souza/> acesso em 07/02/22.

[4] A recomendação geral nº 33 Cedaw , que trata do acesso à justiça para mulheres, reconhece que as mulheres tem especial dificuldade de acesso à justiça, em virtude de leis de caráter discriminatório ou com impacto de diferenciado para mulheres. Disponível em < https://assets-compromissoeatitude-ipg.sfo2.digitaloceanspaces.com/2016/02/Recomendacao-Geral-n33-Comite-CEDAW.pdf> acesso em 07/02/22.

[5] CNJ. Protocolo para Julgamento em Perspetiva de Gênero 2021. Disponível em < https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf> acesso em 07/02/22,

[7] Em relação ao tema: Nudem. Relatório sobre acesso ao aborto legal no Estado de São Paulo. Disponivel em < https://assets-institucional-ipg.sfo2.cdn.digitaloceanspaces.com/2021/10/Relatorio-NUDEM-Aborto-Legal-2021.pdf> acesso em 07/02/22.

DINIZ, Débora. Aborto Legal no Brasil: um estudo nacional. Disponível em < https://www.scielo.br/j/csc/a/L6XSyzXN7n4FgSmLPpvcJfB/?lang=pt> acesso em 07/02/22.

[8] UMA CRIANÇA É MÃE A CADA 20 MINUTOS NO BRASIL. Reportagem de Daniela Valenga. Catarinas, 12 de outubro de 2021. Disponível em https://catarinas.info/uma-crianca-e-mae-a-cada-20-minutos-no-brasil/#:~:text=Em%20m%C3%A9dia%2C%20uma%20crian%C3%A7a%20%C3%A9,ao%20direito%20de%20ser%20crian%C3%A7a.. Acesso em 02/02/202

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