Opinião

STJ exuma desnecessidade do ato de ofício

Autor

  • Thiago Turbay Freiria

    é mestre em raciocínio probatório pela Universitat de Girona (Espanha) e Università Degli Studi di Genova (Itália) mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) pós-graduado pela Universitat de Girona (UdG) e diplomado em Direito Probatório pela Universidad Alberto Hurtado (Chile).

11 de fevereiro de 2023, 7h07

A Ação Penal nº 957/MG fez retornar à agenda institucional, na abertura do ano judicial (1/2), as cismas dogmáticas que julgávamos superadas [1] em relação à corrupção passiva. O relator da ação, ministro Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), chegou a defender que a tipificação exigente da realização do ato de ofício está contida, exclusivamente, no artigo 317, §1º do Código Penal, sendo despiciendo a realização de ação ilícita conectada com o plexo de atribuições funcionais se a capitulação for acoplada no caput, na visão do ministro Herman. O julgamento foi paralisado após pedido de vista do ministro Og Fernandes.

Antes, houve um acalorado debate entre o relator e o ministro Salomão, que inaugurou a divergência, no meu entender, correta e dogmaticamente alinhada à melhor doutrina. O ministro Salomão é certeiro, exige-se o ato de ofício [2]. Vamos ao caso!

A imputação deduzida pela Procuradoria-Geral da República dispõe de um desvalor de comportamento da ação qualificada como ilícita, em razão do autor  desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais  ter exercido influência sobre a nomeação de parentes, o que se deu, fundamentalmente, por este gozar de boas relações no plano institucional e privado.

Categoricamente, o relator deduz em seu voto a tese de que a aplicação normativa do artigo 317, caput, do Código Penal, dissipa a necessidade do ato de ofício, ou do conector "em razão da função", para fins de consecução do delito de corrupção passiva. Pois bem, voltamos às cismas dogmáticas [3] (Freira: 2021, p. 9-11), que já parecem ter envelhecido mal.

O delito de corrupção passiva circunscreve uma moldura normativa em que o desvalor do comportamento  nota-se, não há necessidade de desvalor de resultado [4] – exsurge a partir da proibição do agir dispondo da posição especial de poder a qual detém (o plexo de atribuições, radicado na autoridade concedida pela assunção de competências e atribuições inerentes ao exercício funcional), ainda que caracterizado por uma potência de agir, cuja motivação tenha se dado por meio de solicitação, oferta e recebimento, para si ou outro agente indicado, de vantagem indevida.

Peruzzotti assevera que a dimensão legal da corrupção se refere aos "mecanismos institucionais desenhados para assegurar que as ações de funcionários públicos estejam relacionadas a um marco legal e constitucional" [5]. Depreende-se que é preciso preencher o pacto do injusto penal tendo em conta a força executória de um poder regulado e a detenção de legitimidade do agir, que orbita sua esfera de atribuição.

Não há força interpretativa justificada que aparte os verbos nucleares contidos no injusto penal de corrupção passiva do exercício de um poder autorizado por normas válidas. A corrupção passiva exige  para sua conformação  haver uma proposição fática que revela um agir desviado do direito, cujo desvalor está contido na norma incriminadora, que se realiza por meio de um agir funcionalmente motivado por uma vantagem indevida, a ação ilegitimamente interessada.

Doravante, não é qualquer conduta passível de responsabilização penal. O agir proibido, interseccionado pelo injusto penal, exige a realização de condutas incorporadas à esfera de poder fático e normativo do autor, que lhes são concedidos pela função exercida, o que implica o exercício concreto de autoridade [6], excetuando-se aquelas meramente virtual e simbólica.

Portanto, é necessário haver um caráter autoritativo. Essa esfera de poder, a qual me refiro, convencionou-se chamar de plexo de atribuições [7], expressado pelas ações permitidas pelos atributos objetivos da função, perfectibilizado pelo agir substantivo autorizado por norma que disciplina o âmbito de permissão. Vale dizer, são as condutas que se incorporam à esfera de decisões disponíveis, que compõe a ambiência da função exercida. Aquilo que a função incorpora à esfera subjetiva do autor no exercício dos poderes autorizados, sem a qual não teria o autor a capacidade de exercê-los.

Para calibrar a explicação, parto do seguinte exemplo: a habilitação para conduzir veículos automotores empresta ao detentor habilitado poderes fáticos e normativos que lhe agregam caráter autoritativo. Uma vez perdida a autorização, deixa de tê-los. O exercício dos poderes que ele possuía são interrompidos. Havendo transgressão, portanto, não se conjugaria uma infração em razão dos poderes havidos, mas um defeito de conformidade em razão de não os ter.  Só poderá haver punição em razão da habilitação se ele puder exercer os poderes concedidos concretamente. Voltando à capitulação pelo artigo 317, caput, do CP, o desvalor da conduta exige conexão necessária com o exercício permitido da função.

Agora, se o condutor habilitado conduzir veículo para o qual não está habilitado, ou conduzir veículo automotor com infração das regras de trânsito, expondo à perigo a comunidade, certamente haverá punição em razão do exercício desviado do poder concedido. Esse será o caso da capitulação pelo artigo 317, §1º do CP.

Nos dois exemplos, há necessidade de se atrelar a função, sob pena de tornar deserto o pacto do injusto que conforma o delito. O que os difere é o exercício do poder funcional, não a ausência dele. O ato de ofício é absolutamente necessário. É ele quem estabelece a gradação veritativo-condicional que permite avaliar a conduta, estabelecendo o grau de colocação em risco do bem jurídico protegido, no caso concreto.

O ato de ofício deve ser objeto de prova, o que permitirá averiguar os fatos determinados para considerar suficientemente provada a hipótese inculpatória. Caso contrário, estabelecer-se-á uma presunção iure et de iure (não derrotável por prova em contrário), que radicará uma única possibilidade: sempre condenar por corrupção passiva.  Bastará haver funcionário público, ou equivalente, e vantagem indevida – o que, tampouco, fornece conteúdo claro sobre o que é proibido.

Com essas observações gerais, fica a fé de que as instituições recobrem seus tônus dogmático e crítico, como o fez no voto divergente.

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Referências Bibliográficas
RENDT, HANNAH. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa de Almeida. São Paulo: Perspectiva, 1972.

Crime e Política: Corrupção, financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois eleitoral e enriquecimento ilícito / Organização Alaor Leite, Adriano Teixeira.  Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017. pág. 19.

Direito Penal como crítica da pena: Estudos em homenagem a Juarez Tavares por seu 70º Aniversário em 2 de setembro de 2012. Org. Luís Greco e Antonio Martins. Trad. Alaor Leite; Andre Ribeiro Giamberardino; Antonio Martins; Augusto Assis; Eduardo Saad Diniz; Fernanda Lara Tórtima; Luís Greco; Rui Carlo Dissenha. São Paulo: Marcial Pons, 2012. 

QUANDT, Gustavo de Oliveira. Algumas considerações sobre os crimes de corrupção ativa e passiva. A propósito do julgamento do "Mensalão" (APn 470 do STF). RBCC  Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 106. 181-204, 2014.

MARTÍN, Adán Nieto. La privatización de la lucha contra la corrupción. Revista Penal México, nº 4, marzo-agosto de 2013.

FREIRIA, Marcelo Turbay; FREIRIA, Thiago Turbay. Reflexões iniciais acerca do crime de corrupção e a necessidade de haver o ato de ofício. Revista dos Tribunais [recurso eletrônico]. São Paulo, nº 994, ago. 2018

FREIRIA, Thiago Turbay. A corrupção passiva, o ato de ofício e demais cismas dogmáticas. In: Boletim IBCCRIM, v. 29, nº 342, p. 9–11, maio, 2021. São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2021.

RUIVO, Marcelo Almeida. O bem jurídico do crime da corrupção passiva no setor público / Marcelo Almeida RuivoRevista Portuguesa de Ciência Criminal, Coimbra, Ano 25, nº 1-4 (janeiro-dezembro 2015), p. 264-283.

TAMASAUSKAS, Igor. Corrupção Política: análise, problematização e proposta para seu enfrentamento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. 

Wunderlich, Alexandre. "Artigo 317 ― Corrupção passiva". In: REALE ]únior, Miguel, Direito penal, jurisprudência em debate, Rio de Janeiro: GZ editora, 2013, v. 4, p. 35-55.

 


[1] O tema teve grande repercussão já no julgamento da Ação Penal nº 470, oportunidade em que o Min. Luiz Fuz decidiu pela necessidade do ato de ofício. Veja em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/AP470VotoMinLF. pdf. Acesso em: 02/2/23.

[2] A questão foi abordada por mim e Marcelo Turbay em artigo publicado na Revista dos Tribunais (2018, p. 878 e ss.) em que tratamos da conformação típica da corrupção passiva. que envolve os verbos nucleares do delito, o ato funcional e a vantagem indevida.

[3] Em 2021, o Boletim IBCCRIM publicou o artigo "A corrupção passiva, o ato de ofício e demais cismas dogmáticas". Na ocasião, concluiu que não é possível capitular o delito do artigo 317, em qualquer das suas modalidades, extraindo o ato de ofício. Em maior relevo, asseverei que o ato de ofício deveria ser determinado, não bastando estar descrito genericamente.

[4] Idem 3. Defendi tese oposta no artigo referenciado. Sustentei, naquela ocasião, que o resultado é o que permite averiguar o grau de comprometimento ao bem jurídico, o que condiz com a realização do pacto do injusto penalmente relevante.

[5] Shecaria apud Peruzzotti, 2012, pp. 604. 

[6] Sirvo-me da formulação realizada por Hannah Arendt (1972, p. 163-164) para quem a autoridade exerce uma contraposição com a força e persuasão, realizada pelo uso de argumentos condutores de ações coercitivas pacíficas, derivadas da estrutura e da convivência política, disciplinada pelas normas.

[7] A expressão foi utilizada pelos professores Luis Greco, Adriano Teixeira, Alaor Leite e Gustavo Quandt, que reproduzo admitindo sua explicação como correta. Todavia, expressarei aqui minha formulação. O plexo de atribuições é o exercício de poder derivado de uma posição funcional regulada pelo direito, o qual estabelece uma relação autoritativa em relação àqueles que não possuem a mesma faculdade e deveres, oriundos da função exercida. O plexo de atribuições, portanto, é caráter distintivo.

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