Opinião

Controle de jornada da advocacia pública e o curioso caso de Jaraguá do Sul (SC)

Autor

11 de fevereiro de 2023, 9h03

A história que será apresentada nas próximas linhas possui personagens reais que se distanciam, embora pertencentes a uma mesma carreira, da realidade da advocacia pública da União ou dos estados/DF, e também (via de regra) da advocacia pública das capitais e demais municípios maiores, cujo porte traz consigo uma concepção institucional geralmente revestida de maior racionalidade.

A dimensão constitucional da advocacia pública municipal — como já ilustrado em artigo anterior neste espaço [1]  nunca foi difícil de enxergar. A simples inserção desta atividade no artigo 132 da Constituição como sendo uma atividade essencial à justiça seria suficiente para legitimar tal proposição, já que, inexistindo hierarquia entre entes federativos (artigo 18, CF), a advocacia pública dos municípios (inclusive aqueles que possuem meia dúzia de ruas e menos de 5 mil habitantes) não é menos essencial à Justiça do que a advocacia pública da União ou dos estados.

Apesar da simplicidade do enunciado constitucional, era evidente que este tema sempre seria tormentoso, ao menos na ótica "interiorana", e como de costume foi necessário que o Supremo Tribunal Federal reiterasse o óbvio ao afirmar que procuradores municipais integram o pilar constitucional da advocacia pública. O paradigmático julgado (RE 663.696/MG) merece ser rememorado:

"Os procuradores municipais integram a categoria da Advocacia Pública inserida pela Constituição da República dentre as cognominadas funções essenciais à Justiça, na medida em que também atuam para a preservação dos direitos fundamentais e do Estado de Direito.
O teto de remuneração fixado no texto constitucional teve como escopo, no que se refere ao thema decidendum, preservar as funções essenciais à Justiça de qualquer contingência política a que o Chefe do Poder Executivo está sujeito, razão que orientou a aproximação dessas carreiras do teto de remuneração previsto para o Poder Judiciário. (…)
O termo 'Procuradores', na axiologia desta Corte, compreende os procuradores autárquicos, além dos procuradores da Administração Direta, o que conduz que a mesma ratio legitima, por seu turno, a compreensão de que os procuradores municipais, também, estão abrangidos pela referida locução. Precedentes de ambas as Turmas desta Corte: RE 562.238 AgR, relator ministro Teori Zavascki, Segunda Turma, DJe 17.04.2013; RE 558.258, relator ministro Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJe 18.03.2011."

E já que a pauta é comparação entre procuradores de entes federativos diversos, o inteiro teor deste brilhante julgado guarda algumas pérolas, como no seguinte trecho:

"O Procurador, quer o estadual, quer o municipal, defende interesse público  e defende interesse público da mesma envergadura, atuando no campo administrativo e também no contencioso. Não cabe assentar fator de discriminação para dizer-se que, no caso, há de haver tratamento diferenciado, conforme se trate de Procurador estadual ou Procurador municipal."

Assim, ao assegurar aos procuradores municipais tratamento idêntico aos demais integrantes da advocacia pública, incluindo estes profissionais no catálogo das funções essenciais à justiça e, por consequência, jungindo-os ao teto remuneratório dos desembargadores de Tribunais de Justiça (artigo 37, IX, da CF), o STF prova que, ao menos no Poder Judiciário, a carreira da advocacia pública é vista como de fato ela é: uma carreira de envergadura constitucional, essencial ao Estado democrático de Direito, e cujo regramento funcional deve ser condizente com tal responsabilidade.

Nas palavras de Gustavo Machado Tavares e Débora Bergantin Megid Amaro[2]:

"A advocacia pública municipal, órgão que exerce atividade típica de Estado, é que entrega ao prefeito as soluções adequadas e aptas à concretização das necessidades da população, seja na assessoria e na consultoria jurídica, seja no contencioso administrativo e judicial."

Fora do Pretório Excelso, porém, a realidade é outra.

Não raro, processos judiciais curiosos que tramitam Brasil a fora escancaram a visão que o advogado público, geralmente de municípios do interior, ostenta perante Chefes do Poder Executivo e demais personagens da máquina pública, talvez por desinformação, interesses políticos contrários, cultura do apadrinhamento, ou, como está na moda, "terceirização de serviços jurídicos", entre tantas outras motivações próprias do universo do Poder Executivo.

O exemplo de Jaraguá do Sul talvez seja o mais contemporâneo e, com certeza, um dos mais aviltantes no que concerne ao tratamento dispensado a uma carreira de tamanha importância.

Eis a novela. A Associação dos Procuradores do Município de Jaraguá do Sul (SC) impetrou mandado de segurança objetivando que o Município se abstivesse de exigir controle de jornada dos procuradores municipais, medida imposta por um decreto municipal.

A sentença, com largas narrativas, ponderações filosóficas, e até mesmo um quadro em que se consta o nome de alguns dos procuradores com mais "atividades externas" de modo a justificar que não são todos os que precisam sair do recinto de trabalho (sim, é isto mesmo que você leu), denegou a ordem pleiteada.

Mas o melhor ainda estava por vir, era a decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. O recurso apelatório interposto pelos procuradores não foi provido, e a ementa da decisão colegiada restou redigida da seguinte forma (Apelação 5000665-13.2019.8.24.0036/SC):

"ADVOGADOS PÚBLICOS – MUNICÍPIO DE JARAGUÁ DOSUL – CONTROLE DE PONTO – VALIDADE.
A advocacia é atividade essencial, uma prerrogativa da cidadania, Nem por isso, porém, há razão para tratar os advogados públicos, que antes de tudo são servidores, como uma categoria escoteira, alheia aos deveres que são próprios de todos e, especialmente, não trazem nenhuma (nenhuma!) ofensa à liberdade funcional. Pode-se exercer com perfeição ética a profissão na repartição e em horários previamente delimitados.
Sentimento republicano que não permite casuísmo, cabendo a cada unidade federativa fixar autonomamente a forma de controle de trabalho de seus funcionários; aliás, não fosse assim, seria o caso de ser defendido que nem sequer os advogados privados estariam submetidos a comparecer às sedes de seus empregadores. Só que a tese só surge ante a Administração, como se ali não houvesse espaço para um isonômico rigor na frequência ao labor.
Recurso desprovido."

"Categoria escoteira", deveres que não trazem "nenhuma (nenhuma!) ofensa à liberdade funcional", "sentimento republicano que não permite casuísmo", "tintas sindicais"; a dureza do Acórdão, que utiliza-se até mesmo de uma interjeição exclamativa, não permitiu que a hostilidade aos advogados públicos passasse despercebida.

O voto do relator não foi menos teratológico, e trouxe em adendo intrigantes comparações:

"(…) espero deixar claro aqui, não tem nenhum (nenhum!) comprometimento ante a exigência de uma consequência estatutária usual: há relação de trabalho entre Poder Público e qualquer servidor (advogados não são uma categoria escoteira, um espectro na repartição)".
"Se contadores, garis, médicos, bibliotecários, recepcionistas e assim indefinidamente devem obediência a uma jornada, revelando materialmente que seu tempo está, na repartição (na repartição!), à disposição da Fazenda Pública, não detecto nenhuma razão, repito, para retirar dos advogados a mesma atenção".

"Não há, insisto, vilipêndio a algum direito dos advogados. Melhor, em face da inata responsabilidade e do liame público adjacente, exige-se conduta, pode-se dizer, trivial e que em última análise vem em benefício dos próprios profissionais  os quais certamente são os mais interessados em não deixar lastro de incorreção no exercício do cargo , não existindo agravo que reflita na atividade final desempenhada".

"Também não empolga a alegação de que se esteja sendo inobservada a Súmula 9 do CFOAB, a qual possui esta redação: 'O controle de ponto é incompatível com as atividades do Advogado Público, cuja atividade intelectual exige flexibilidade de horário'.
Os conselhos profissionais não podem ser vistos como uma guilda medieval, que egoisticamente escolhem quem exercerá uma profissão e são limites. Não será uma interpretação, lamentavelmente com tintas sindicais, que governará as leis locais."

Sem descurar da importância de qualquer cargo público, é legítimo igualar de forma estanque as atribuições de um advogado público (que exerce atividade típica de Estado) às de um contador, gari, médico, bibliotecário ou recepcionista? Registrar o ponto deve de fato ser uma medida buscada por advogados públicos para que não deixem lastro de "incorreção" no exercício de suas funções?

É a exteriorização, por uma Corte de Justiça estadual, da mentalidade já tão trivial no Poder Executivo interiorano.

Ocorre que tal linha de pensamento é bastante atípica no Judiciário, o qual, via de regra, preza pelas carreiras que exercem funções essenciais à Justiça, até porque vale relembrar que advogados públicos, advogados privados, juízes, promotores de justiça e defensores públicos não possuem entre si hierarquia de qualquer espécie, muito pelo contrário, comungam de um mesmo universo, tanto que, como já mencionado, possuem o mesmo teto remuneratório.

O fato é que, embora o vilipêndio perpetrado tivesse destinatário certo (os procuradores municipais de Jaraguá do Sul), o Acórdão inevitavelmente acabou por vituperar a advocacia pública como um todo, talvez seja por isto que, sem qualquer hesitação, a Vice-Presidência do Tribunal de Justiça admitiu prontamente o recurso especial interposto pelos procuradores.

O STJ (REsp 1982186/SC), por sua vez, ao ver o tamanho da problemática, sobretudo pela repercussão do Acórdão sobre a advocacia pública nas suas diversas esferas de atuação, remeteu o caso para o STF sob fundamento de que o julgamento envolvia análise de validade da legislação local em face de lei federal (Estatuto da Advocacia), demandando interposição de recurso extraordinário.

E assim, novamente "sobrou" para o Supremo Tribunal Federal se posicionar sobre o famígero caso e pôr um fim de uma vez por todas neste imbróglio, e o desfecho não poderia ser outro, eis alguns trechos das palavras lapidares do Eminente ministro Edson Fachin, relator do caso (RE 1400161/SC):

"Verifico que o acórdão recorrido está em dissonância com a disciplina constitucional da advocacia com função essencial à justiça do artigo 133 da CRFB.
O Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, que disciplina tal artigo, em seu artigo 7º, I, dispõe sobre o direito do advogado de exercer suas funções com liberdade em todo o território nacional. (…)
É necessário esclarecer que liberdade inscrita no dispositivo inclui independência e flexibilidade na atuação funcional, além dos limites físicos do ambiente de trabalho, compreendendo compromissos externos, exercício em horários além da jornada, feriados e fins de semana para que sejam atendidos os prazos processuais.
Tais prerrogativas se estendem aos integrantes da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria da Fazenda Nacional, da Defensoria Pública e das Procuradorias e Consultorias Jurídicas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas entidades de administração indireta e fundacional. Sendo assim, aplicam-se integralmente ao procurador público, eis que está amparado pelo referido diploma. Além disso, cabe ressaltar o teor da súmula nº 9 do Conselho Federal da OAB que estabelece: O controle de ponto é incompatível com as atividades de Advogado Público, cuja atividade intelectual exige flexibilização de horário. Dito isso, inegável é a incompatibilidade de controle de ponto de cumprimento da jornada regular dos advogados públicos ante a natureza de trabalho que compõe a profissão pela liberdade de atuação e flexibilidade de horários, inerentes à profissão. (…)
O legislador municipal, embora tenha atribuído ao Chefe do Poder Executivo a prerrogativa de regulamentar a duração da jornada de trabalho, não estendeu à referida forma de controle relativamente aos advogados públicos, cuja atividade é em princípio incompatível com a metodologia do controle de frequência."

As palavras da nossa Corte Suprema são reconfortantes diante de um panorama de menoscabo cotidiano da advocacia pública municipal, que se vê diuturnamente vulnerável a perseguições políticas por meio de violações de prerrogativas tão basilares para o cumprimento de sua missão institucional.

E assim a novela chegou ao fim, com uma bela lição deixada aos detentores de Poder que insistem em ignorar mandamentos constitucionais e legais essenciais ao funcionamento da justiça. Que esta lição seja absorvida para a própria melhoria da máquina pública, que deve canalizar sua atenção não em rotinas anacrônicas e meramente protocolares, mas sim na busca de uma produtividade efetiva, centrada na obtenção de soluções que melhor atendam ao interesse coletivo.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!