Observatório Constitucional

IRDR e o Juizado Especial: vinculação (in)constitucional?

Autores

  • Fábio Lima Quintas

    é editor-chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional pós-doutor em Ciências Jurídico-Processuais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra doutor em Direito do Estado pela USP mestre em Direito do Estado pela UnB professor no curso de graduação em Direito no mestrado e no doutorado acadêmico do IDP (Brasília) e advogado.

  • Luciano Ramos de Oliveira

    é sócio do Archanjo Ramos e Sarmento Advogados LLM em Direito dos Negócios e Governança Corporativa pelo IDP mestre e doutorando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) professor do IDP-Online e da Universidade de Brasília (UnB) e membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC).

11 de fevereiro de 2023, 8h00

Um dos tópicos controversos sobre a sistemática processual estabelecida pelo Código de Processo Civil de 2015 diz respeito à vinculação dos Juizados Especiais à tese firmada pelos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais em IRDR, conforme disposto no artigo 985, inciso I (parte final), do CPC [1], havendo discussão sobre a constitucionalidade de tal vinculação.

Para parte da doutrina, essa vinculação representaria uma sujeição indevida dos Juizados Especiais Cíveis à jurisdição dos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais, o que não seria admissível em vista da competência constitucionalmente estabelecida para os Juizados Especiais [2].

Temos entendimento diverso.

Partimos do propósito estabelecido pelo legislador nacional, ao instituir o IRDR, instituto concebido para enfrentar a realidade de haver "posicionamentos diferentes e incompatíveis, nos Tribunais, a respeito da mesma norma jurídica", o que "leva a que jurisdicionados que estejam em situações idênticas tenham de submeter-se a regras de conduta diferentes, ditadas por decisões judiciais emanadas de tribunais diversos", o que, por consequência, "fragmenta o sistema, gera intranquilidade e, por vezes, verdadeira perplexidade na sociedade" [3].

Será que o regime estabelecido para os Juizados Especiais estaria imune a esse propósito estabelecido pelo legislador nacional para a jurisdição?

Vale lembrar que o artigo 98, inciso I, da Constituição estabelece o dever de criação dos Juizados Especiais Cíveis para julgamento de causas cíveis de menor complexidade, tendo o Estado (o legislador nacional) se desincumbido desse mister ao editar a Lei nº 9.099, de 1995, para, revogando a Lei nº 7.244, de 1984, instituir os Juizados Especiais Cíveis e Criminais perante os Tribunais de Justiça, com o fim de melhorar qualitativamente o acesso à justiça e a prestação da tutela jurisdicional [4].

Entendemos que não há óbice constitucional à alteração desse microssistema dos Juizados Especiais Cíveis por lei ordinária nacional, para tratar da competência e das características da jurisdição prestada por esses órgãos [5], desde que mantida a essência desse microssistema.

Poderia se objetar que a ausência da vinculação das decisões dos Juizados Especiais ao entendimento dos tribunais integraria a essência desse microssistema. Aqui cabe fazer a provocação: se todos os tribunais do país estão vinculados ao sistema de decisões obrigatórias previstas no CPC, por qual razão os Juizados Especiais estariam imunes aos postulados da coerência e integridade do sistema jurídico buscados pela Jurisdição?

Na nossa opinião, as especificidades dos Juizados Especiais não justificam a tolerância à existência de duas interpretações para a mesma questão jurídica, sob pena de violação aos princípios da isonomia e da segurança jurídica [6]. Admitir essa incoerência no sistema jurídico implicaria relegar os jurisdicionados à sorte de sua demanda depender da sua distribuição para este ou àquele órgão [7], o que encaixa muito bem a expressão jurisprudência lotérica, de José Maria Rosa Tesheiner, no sentido de que a vitória ou sucumbência das partes se deem pela sorte de distribuição do processo para um ou outro órgão [8], situação que não convive com o Estado de Direito e o tratamento isonômico que deve ser dado aos jurisdicionados [9].

Essa opinião, no entanto, precisa ser confrontada com a decisão firmada pelo STF, no julgamento do RE 586.789 (no regime repercussão geral), no qual se assentou que não cabe aos Tribunais Regionais Federais a competência de apreciar e julgar mandados de segurança contra decisões dos Juizados Especiais Federais, ante a existência das Turmas Recursais [10].

A decisão firmada pelo STF nesse julgamento é suficiente para afastar o que estamos a defender? Entendemos que não.

A primeira observação que fazemos é que o STF, nesse julgamento, ratificou o arranjo processual estabelecido pelo legislador, que expressamente previu a Turma Recursal como instância revisora. A segunda observação é que a circunstância de não haver previsão de recurso (ou mandado de segurança) para o TRF não leva necessariamente à conclusão de que certas decisões (desse TRF) não possam ser de observância obrigatória.

Nesse segundo aspecto, merece ser lembrado que o Supremo Tribunal Federal, nos autos dos EDcl no RE nº 571.572-8/BA (de relatoria da ministra Ellen Gracie, DJ 27/11/2009), no regime processual anterior, criou, mesmo sem previsão legislativa expressa, inédito mecanismo para salvaguardar a uniformização da interpretação jurisprudencial no território nacional, ao ampliar as hipóteses de cabimento da reclamação constitucional perante o STJ (artigo 105, inciso I, f, da Constituição) para alcançar decisões proferidas pelos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei nº 9.099, de 1995) que se mostrassem em desacordo com a jurisprudência consolidada no âmbito daquela corte, justamente como mecanismo de preservação da autoridade das decisões do STJ.

Extraímos desses julgados, assim, a compreensão de que o STF não ofereceu aos Juizados Especiais um salvo conduto para criarem uma jurisprudência que contraria decisões vinculantes.

Parece convergir com essa compreensão o entendimento recente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que decidiu ser aplicável tese assentada em IRDR aos Juizados Especiais, para preservar a isonomia e a segurança jurídica, dispondo que, "embora não se atribua ao Tribunal de Justiça a competência para reapreciar as decisões dos Juizados Especiais (…) sobressai evidente opção política no sentido da sua vinculação ao microssistema de tutela de demandas repetitivas; postura que prestigia a visão molecular do processo e da jurisdição, dos valores da segurança jurídica, da igualdade na aplicação do direito" (IRDR nº 70075024752 [11]). Dando um passo além, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais firmou enunciado (nº 76) para admitir IRDR com base em demandas repetitivas em curso nos Juizados Especiais [12] (e sobre essa possibilidade, não vamos emitir juízo de valor nesse espaço).

A conclusão parcial que apresentamos é no sentido de que não parece contrariar a Constituição a instituição de mecanismos voltados a preservar a coerência e a integridade na interpretação do Direito. Por outro lado, a introdução de mecanismos que perseguem a necessidade de observância da decisão judicial (proferida em IRDR) não necessariamente demanda emenda constitucional, na perspectiva de se trata de regramento processual que pode ser estabelecido pela legislação ordinária (nacional, nos termos do artigo 22, inciso I, da Constituição).

Por fim, somos da opinião de que a eficácia vinculante disposta no julgamento do IRDR não viola a garantia da independência funcional dos magistrados. Partimos da premissa de que a independência funcional é uma proteção constitucional do jurisdicionado e não pode ser invocada para que os magistrados não observem precedentes obrigatórios e "julgue conforme suas convicções, impondo sua visão de mundo em detrimento do Direito" [13]. A observância pelo magistrado às decisões vinculantes implica "um posicionamento conforme o sistema por parte do juiz, e consequentemente, íntegro". Há apenas atribuição de "um ônus extra, de fundamentar devidamente o juízo formulado, sob pena de nulidade da decisão" [14], sobretudo no afastamento de decisões obrigatórias no caso concreto [15].

E aqui se revela um ponto importante do raciocínio jurídico inerente à aplicação de decisões proferidas em IRDR. Não se deve cogitar que aplicação dos julgados em IRDR é uma simples subsunção (dedução) do texto constante nos enunciados (teses) aos casos em julgamento. Na aplicação de decisão proferida em IRDR, deve-se considerar que há uma relação indissociável entre as questões de fato e de direito que compõem a decisão do tribunal [16]. Nesse aspecto, o Tribunal de Justiça resolverá a questão jurídica repetitiva formando uma situação-fática padrão [17], que corresponderá à tese a ser aplicada pelos órgãos jurisdicionais. Essa aplicação, isto é, a descrição do fenômeno jurídico decidido pelos Tribunais de Justiça e Regionais, se dará por meio de tipos, em que se atrai um método comparativo com graduação e analogia entre os elementos fáticos firmados na tese e no caso sob exame pelo julgador [18].

Assim, o magistrado não observará a tese jurídica como uma norma geral e abstrata. De forma diversa, irá extrair e descrever o modelo da situação fática posta a julgamento e recomporá o quadro-padrão [19] organizado pelo tribunal no ato de julgamento da tese jurídica em IRDR, apurando, portanto, situações homogêneas para aplicação da consequência jurídica comum prevista na tese jurídica.

Em passo de conclusão, entendemos que a vinculação dos Juizados Especiais Cíveis às decisões firmadas em IRDR pelo tribunal não nos parece inconstitucional. Na verdade, poderia se dizer que essa vinculação é constitucionalmente desejável, porque busca evitar que a prestação jurisdicional ocorra de forma fragmentada ou até mesmo contraditória para a solução da mesma questão jurídica em dois casos similares.

 

 


[1] “Art. 985. Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada: I – a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou região”.

Essa previsão não constava na versão final do Senado Federal (PLS 166/2010), sendo inserida em substitutivo da Câmara dos Deputados.

[2] Nessa linha de entendimento, Marcos Cavalcanti e Georges Abboud sustentam que “não se pode aceitar é que uma a tese jurídica fixada em incidente processado e julgado em órgão jurisdicional estranho ao microssistema dos juizados especiais (TJs e TRFs) alcance vinculativamente os processos ali em tramitação” (ABBOUD, Georges; CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Inconstitucionalidades do incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e os riscos ao sistema decisório. In: Revista de processo. 2015. p. 221-242).

[3] Código de Processo Civil e normas correlatas. Exposição de Motivos. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/512422/001041135.pdf >. Acesso em 28.4.2019.

[4] VIEIRA, Luciano Pereira. Sistemática recursal dos juizados especiais federais cíveis: doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. p. 3-4

[5] Merece ser lembrado, aliás, que o projeto de lei que originou a Lei nº 9.099, de 1995 (PL nº 1.480, de 1989, CD e nº91/90 SF) previa, em dispositivo que veio a ser vetado, a possibilidade de manejar recurso por divergência dirigido ao Tribunal de Justiça (o que demonstra uma clara tentativa em se estabelecer, desde logo, algum mecanismo de uniformização deste sistema). Importante mencionar, ainda, que as razões do veto deste dispositivo não se deram por motivos de violação à autonomia dos Juizados Especiais Cíveis, mas sim pelo aumento de recursos nos tribunais locais e prejuízo à celeridade.

[6] Na prática, para que essa violação ocorresse bastaria que o valor da causa exorbitasse à competência dos Juizados Especiais Cíveis e a demanda fosse julgada pela justiça comum com aplicação da tese firmada em IRDR e outra demanda versando sobre a mesma questão de direito fosse julgada de forma diversa pelos Juizados Especiais— não observando a tese (consequência jurídica para a situação-fática padrão semelhante) firmada pelo Tribunal de Justiça (CAMARGO, Luiz Henrique Volpe. Op. Cit. p. 289).

[7] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil [de 1973]. Vol v. arts. 476 a 565. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 4-5.

[8] TESHEINER, José Maria. Uniformização de jurisprudência. Revista Ajuris – Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, n. 50. Nov. 1990, p. 179..

[9] CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo brasileiro. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2017. p.484

[10] Eis a ementa do julgado: “CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. COMPETÊNCIA PARA O EXAME DE MANDADO DE SEGURANÇA UTILIZADO COMO SUBSTITUTIVO RECURSAL CONTRA DECISÃO DE JUIZ FEDERAL NO EXERCÍCIO DE JURISDIÇÃO DO JUIZADO ESPECIAL FEDERAL. TURMA RECURSAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO. I – As Turmas Recursais são órgãos recursais ordinários de última instância relativamente às decisões dos Juizados Especiais, de forma que os juízes dos Juizados Especiais estão a elas vinculados no que concerne ao reexame de seus julgados. II – Competente a Turma Recursal para processar e julgar recursos contra decisões de primeiro grau, também o é para processar e julgar o mandado de segurança substitutivo de recurso. III – Primazia da simplificação do processo judicial e do princípio da razoável duração do processo. IV – Recurso extraordinário desprovido.” (RE 586789, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 16/11/2011, no regime de repercussão geral, DJ 27/2/2012)

[11] IRDR nº 70075024752. Rel. Des. Marilene Bonzanini. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Dj 18.12.2018. (grifos originais)

No mesmo sentido o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais submeteu a tese firmada no IRDR nº 0124879-52.2017.8.13.0000: “SAMARCO MINERAÇÃO S/A., devidamente qualificada na Inicial, apresentou o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, oriundo da Ação Indenizatória n.º 00056.22-43.2016.8.13.0105, com o propósito de que haja a fixação de tese de direito garantidora da isonomia, da efetividade e da segurança jurídica nas resoluções das causas que encerram controvérsia quanto à mesma questão de direito, em trâmite perante o Poder Judiciário do Estado de Minas Gerais, relativamente à incompetência dos Juizados Especiais para processar e julgar as ações cominatórias e indenizatórias propostas em decorrência do rompimento da barragem de Fundão, situada em Mariana, que tenham como fundamento a dúvida/insegurança acerca da qualidade da água fornecida pelo sistema público de distribuição das cidades que captam água do Rio Doce, tendo em vista se tratar de matéria técnica, que demanda a produção de prova pericial complexa e incompatível com o procedimento da Lei nº 9.099/1995.”.

[12] Disponível em: https://www.tjmg.jus.br/portal-tjmg/jurisprudencia/consulta-de-jurisprudencia/enunciado-76.htm#.Y-VW_XbMJPZ

[13] QUINTAS, Fábio Lima. “Imparcialidade judicial: uma ficção gramatical?”, publicado no CONJUR em 20 de fevereiro de 2021, disponível em https://www.conjur.com.br/2021-fev-20/observatorio-constitucional-imparcialidade-judicial-ficcao-gramatical

[14] SMITH, Carl Olav; QUINTAS, Fabio. A aplicação dos precedentes vinculantes: um estudo empírico sobre fatores de influência na convicção dos juízes vitaliciandos na apreciação de demandas de massa. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 8, p. 27, 2021.

[15] Sofia Temer pondera que a “independência funcional dos magistrados não pode significar, contudo, comprometimento da unidade da jurisdição, da coerência da ordem jurídica e da uniformidade na prestação jurisdicional”, isso porque a independência “não é ofendida pela eficácia vinculativa dos precedentes dos órgãos que lhe são superiores, como também não é violada pela revisão das suas decisões, o que ocorre em razão do tão festejado duplo grau de jurisdição”. (TEMER, Sofia. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. 3.ed. Salvador: Ed. Juspodvim, 2018. p p. 244)

[16] TEMER, Sofia. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. 3.ed. Salvador: Ed. Juspodvim, 2018. p. 74.

[17] Ibidem, p. 75.

[18] CABRAL, Antônio do Passo. Convenções Processuais. 2.ed. Salvador: Ed. Juspodvim, 2018. p. 97.

[19] CABRAL, Antonio do Passo. Op.cit. p. 96.

Autores

  • é editor-chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional, pós-doutor em Ciências Jurídico-Processuais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, doutor em Direito do Estado pela USP, mestre em Direito do Estado pela UnB, professor vinculado ao PPG do IDP (Brasília) e advogado.

  • é doutorando e mestre em Direito pela UnB e advogado.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!