Opinião

Órgão jurisdicional e aplicação de medida cautelar nos atos golpistas

Autores

  • Ricardo Rodolfo Rios Bezerra

    é profissional graduado em Direito no IDP pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal no IDP pós-graduando em anticorrupção e compliance no IDP aluno especial do mestrado na UnB e autor de artigo escolhido para publicação na coleção do IDP Grandes Temas da Graduação.

  • Walacy Pereira Viana

    é estagiário do escritório Maciel Marinho Advocacia.

11 de fevereiro de 2023, 6h37

O CPP antes e depois do advento da Lei 13.964/2019 (pacote anticrime)
Todos sabemos que a Constituição consagrou o sistema acusatório [1] como modelo de persecução penal. Inclusive, como uma de suas características, outorgou ao Ministério Público ("Parquet"), entre as múltiplas funções institucionais, o monopólio da titularidade da ação penal pública que age em nome do Estado (Artigo 129, I, da CF/1988).

Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil
Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Anteriormente ao pacote (Lei 13.964/2019), o artigo 311 do CPP, dispunha que "em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público, ou do querelante, ou mediante representação da autoridade policial, quando houver prova da existência do crime e indícios suficientes da autoria". A Lei 13.964/2019 eliminou a possibilidade do magistrado de decretar a prisão preventiva ex officio em qualquer fase da persecução penal, seja no curso da investigação criminal ou do processo.

A posição adotada pelo pacote anticrime foi no sentido de consagrar a sistemática do sistema acusatório preconizando que a produção de provas ficará a cargo das partes, enquanto ao juiz é atribuída a função de julgar, sem acumular também a de investigar, como era de costume no sistema inquisitivo.

As regras introduzidas no Código de Processo Penal a respeito da aplicação das medidas cautelares valem também aos casos de prisão em flagrante, em que o acusado, quando submetido à audiência de custódia no prazo legal, não poderá sofrer a conversão da prisão em flagrante em preventiva ou até mesmo em prisão temporária, de ofício pelo magistrado. Aury Lopes Jr. destaca que é "imprescindível que exista a representação da autoridade policial ou o requerimento do Ministério Público. A 'conversão' do flagrante em preventiva equivale à decretação da prisão preventiva" (Lopes Junior, Aury Direito processual penal / Aury Lopes Junior. – 17. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2020, p. 960).

Se extrai que a atual redação do ordenamento jurídico processual penal determinou que o cabimento da prisão preventiva está condicionado a prévia provocação do Ministério Público, do querelante ou do assistente ou da autoridade policial, e retirou a possibilidade de atuação ex offício do magistrado da causa.

Jurisprudência
O que anteriormente ao pacote anticrime — ou Lei Anticrime — seria concebível vislumbrar a decretação de ofício da prisão preventiva, por expressa previsão legal, posteriormente à sua promulgação, as decisões do Poder Judiciário e em especial tocante as jurisprudências dos tribunais superiores precisaram se adequar a alteração legislativa.

Em destaque às decisões em grau superior, podemos citar o HC 673.223/BA [2], de relatoria do ministro Antônio Saldanha Palheiro, que em seu voto destacou que o intitulado Pacote Anticrime enfraqueceu qualquer resquício do sistema inquisitório no nosso processo penal, notadamente a eliminação da possibilidade de decretação de ofício de prisão preventiva pelo magistrado processante.

O Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu de igual forma, conforme se extrai do julgamento do HC 188.888/MG [3], que apresentou entendimento no sentido de que "se tornou inviável, mesmo no contexto da audiência de custódia, a conversão, de ofício, da prisão em flagrante de qualquer pessoa em prisão preventiva, sendo necessária, por isso mesmo, para tal efeito, anterior e formal provocação do Ministério Público, da autoridade policial ou, quando for o caso, do querelante ou do assistente do MP".

O ministro Edson Fachin, em seu voto, acrescentou que não há distinção ontológica entre a prisão preventiva resultante de conversão e a resultante de decretação, de modo que, o artigo 310, do CPP, deve ser interpretado à luz do sistema penal acusatório consagrado pela Constituição Federal e, de forma sistemática, com os demais dispositivos reguladores da prisão preventiva.

Contudo, a aplicação desta nova roupagem dada aos dispositivos das medidas cautelares, principalmente na questão da decretação da prisão preventiva, não encontra entendimento uníssono na jurisprudência.

No mundo concreto da aplicação de uma norma jurídica, Carlos Maximiliano (Hermenêutica e Aplicação do Direito, Editora Livraria de O Globo, 1923, p. 11) destaca que a aplicação "consiste em enquadrar um caso concreto numa norma jurídica adequada. Submete às prescrições da lei uma relação da vida real; procura e indica o dispositivo adaptável a um facto determinado".

A aplicação do artigo 311 após a exclusão da atuação ex offício encontrou duas vertentes que merecem guarida.

O primeiro entendimento é no sentido de que, uma vez que o órgão ministerial não tenha provocado pela decretação da prisão preventiva, mas sim pela aplicação de medidas cautelares diversas, o magistrado poderia aplicar a cautelar máxima de restrição da liberdade, uma vez que lhe é permitido atuar pela sua livre motivação (RHC nº 145.225/RO) [4].

Essa vertente jurisprudencial fundamenta que o julgador não está vinculado ao requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou da representação da autoridade policial. Assim, a simples provocação pela imposição de determinada cautelar permite que o magistrado aplique a medida que se entender mais eficaz ao caso concreto.

Já a segunda posição dicotômica da aplicação da norma jurídica diz que, uma vez que o Ministério Público tenha se manifestado pela aplicação de medidas cautelares menos gravosas, o magistrado não poderia determinar uma medida que restrinja a liberdade do acusado, uma vez que a atuação seria considerada de ofício (HC 222.066/MG) [5].

Por se tratar de alteração legislativa recente, a hermenêutica normativa e a adequação ao caso concreto ainda é objeto de discussão no campo doutrinário e jurisprudencial.

Caso concreto
No último dia 8 de janeiro, os prédios do Congresso, do STF e o Palácio do Planalto sofreram ataques por grupos extremistas e apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, motivados pela discordância do resultado das eleições presidenciais ocorridas em outubro de 2022, quando o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva venceu o ex-presidente na disputa presidencial.

Ao menos 1.406 pessoas foram presas em flagrante delito. No último dia 20 de janeiro, foi concluída a análise das prisões após a audiência de custódia. No total, 942 pessoas tiveram a prisão em flagrante convertida em prisão preventiva e 464 obtiveram liberdade provisória, mediante medidas cautelares diversas.

Em cumprimento à função constitucionalmente atribuída a Defensoria Pública da União (DPU) e a Defensoria Pública do Distrito Federal (DP-DF) juntamente com o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), elaboraram em conjunto um relatório de monitoramento de direitos humanos com a promoção de medidas jurídicas perante o STF e a Vara de Execuções Penais do Distrito Federal.

O relatório constatou (tópico 3.1.2) que prisões em flagrante foram convertidas em cautelar máxima mesmo com o expresso requerimento do Ministério Público pela imposição de medidas cautelares diversas da prisão.

Já na manhã de quinta-feira (2/2/2023), o ministro do STF Alexandre de Moraes determinou o restabelecimento da prisão do ex-deputado federal Daniel Silveira em face do reiterado desrespeito às medidas restritivas estabelecidas anteriormente (artigo 282, §4º, do CPP).

O ministro destaca que em anterior decisão, do dia 25/3/2022, em que havia determinado a imposição de outras medidas cautelares diversas à prisão, consignou que "a reiteração do descumprimento injustificado de quaisquer dessas medidas acarretaria, natural e imediatamente, o restabelecimento da ordem de prisão (art. 282, § 4º, do Código de Processo Penal)".

A controvérsia que se extrai da medida tomada pelo ministro do STF é: teria agido de ofício ao restabelecer a prisão do Daniel Silveira por descumprimento de outras cautelares já impostas?

O artigo 282, § 4º, do CPP, diz que:

"Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a:
§ 4º. No caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas, o juiz, mediante requerimento do Ministério Público, de seu assistente ou do querelante, poderá substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em último caso, decretar a prisão preventiva, nos termos do parágrafo único do art. 312 deste Código."

Consoante a redação do artigo, o desrespeito a medidas cautelares já impostas revelam possível a acumulação ou a substituição por uma nova medida pelo juiz, mediante requerimento do MP, do assistente ou do querelante.

No caso do ex-deputado, em anterior decisão, o ministro havia consignado na decisão que novas violações das medidas cautelares impostas ensejariam em natural restabelecimento da prisão. Logo, não houve comunicação ao Ministério Público para conhecimento do descumprimento das medidas cautelares impostas e, por ser titular da ação, em fiel cumprimento ao sistema acusatório, requerer as medidas que entender necessária.

Deste modo, em atenção ao trecho do artigo que condiciona a substituição/imposição de outra medida em razão do descumprimento de anterior determinação cautelar imposta ao prévio requerimento do Ministério Público, o restabelecimento sem a representação do órgão ministerial será entendido por atuação de ofício.

Conclusão
Toda norma traz consigo um conceito jurídico — que é a ideia geral de pretensão universal que seja passível de aplicação nos diversos cenários de sua abrangência. O Poder Legislativo em exercício ao seu poder legiferante na edição de uma lei, revela o conceito jurídico através de expressões no dispositivo legal. Por vezes, esses termos empregados podem ter aplicação ambígua ou imprecisa, é o que a doutrina chama de termos indeterminados.

O conceito, quando indeterminado, se converte em conceito determinado através do órgão jurisdicional, que tem a função de aplicar ao caso concreto, de forma correta e equitativa, o preceito normativo. Os termos indeterminados propiciam ao juiz a otimização da finalidade precípua da norma jurídica.

A hermenêutica [6] jurídica cuida do estudo e o desenvolvimento de métodos para interpretação da norma. A finalidade é proporcionar bases racionais e seguras para uma interpretação dos dispositivos normativos.

Em uma ação judicial, tanto as partes quanto o julgador operam interpretação da norma jurídica que se amolda ao caso concreto, desenvolvendo uma dimensão axiológica.

Enquanto a norma em si, pressupõe conceito ontológico — que pode ser definido como a "teoria ou ramo da filosofia cujo objeto é o estudo dos seres em geral, o estudo das propriedades mais gerais e comum a todos os seres" — a deontologia — que tem por objeto final não o ser, mas sim o dever-ser — pode ser entendida como a valoração da norma jurídica ao caso concreto.

Havendo a norma uma ordem jurídica, o órgão jurisdicional tem a função deontológica da adequação valorativa da lei ao caso concreto.

A imposição das medidas cautelares, notadamente a medida coercitiva de privação da liberdade do acusado, tem-se que, mesmo que o legislador tenha editado uma lei (13.964/2019) com o objetivo de eliminar qualquer resquício do sistema inquisitivo e reafirmar a regência do sistema acusatório no persecutio criminis, não é possível que ele consiga prever e regular a totalidade das relações sociais, assim, o sistema jurídico aberto permite que o julgador valore a norma jurídica de modo equitativo.

Por tudo isso, enquanto a atuação de ofício do julgador não for objeto de controle concentrado para que da sua decisão obtenha efeito vinculante, a decretação da prisão preventiva ou a substituição das medidas cautelares menos gravosas pela cautelar máxima, sem requerimento expresso do Ministério Público, ainda será passível de discussão.

 


[1] Como observa Renato Brasileiro de Lima (Lima, Renato Brasileiro de Manual de processo penal: volume único / Renato Brasileiro de Lima – 8ª ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2020. p. 41) "De maneira diversa, o sistema acusatório caracteriza-se pela presença de partes distintas, contrapondo-se acusação e defesa em igualdade de condições, e a ambas se sobrepondo um juiz, de maneira equidistante e imparcial"

 

[2] HC n. 673.223/BA, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 9/11/2021, DJe de 12/11/2021

[3] HC 188.888, Relator(a): CELSO DE MELLO, 2ª Turma, julgado em 06/10/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-292 DIVULG 14-12-2020 PUBLIC 15-12-2020

[4] RHC nº 145.225/RO, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em 15/2/2022, DJe de 22/3/2022

[5] HC nº 222.066/MG, relator ministro André Mendonça, julgado em 9/12/2022, DJe de 12/12/2022.

[6] Segundo Ricardo Maurício Freire Soares, as origens da "palavra hermenêutica residem no verbo grego hermeneuein, usualmente traduzido por interpretar, bem como no substantivo hermeneia, a designar interpretação" – Soares, Ricardo Maurício Freire Hermenêutica e interpretação jurídica / Ricardo Maurício Freire Soares. – 4ª ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2019. p. 19.

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