Opinião

Devida diligência na cadeia produtiva: lei alemã pode impactar negócios brasileiros?

Autores

  • Mariana Avelar

    é advogada na Manesco Ramirez Perez Azevedo Marques Sociedade de Advogados mestre e doutoranda em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

  • Mariana Rezende

    é fellow na Bolsa Chanceler Alemão da Fundação Alexander von Humboldt atuando na consultoria Löning - Business and Human Rights e mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

11 de fevereiro de 2023, 15h19

Ponto de partida: do que falamos quando falamos de devida diligência em matéria de direitos humanos e meio ambiente
Se você ainda não está habituado com as discussões sobre a devida diligência das empresas em matérias de direitos humanos e meio ambiente, um breve retrospecto poderá ser útil para esclarecer do que se trata esse dever, que em países de língua inglesa é conhecido como Human Rights and Environmental Due Diligence (HREDD), sigla que usaremos daqui para frente.

A HREDD surge como uma das ferramentas na ampla taxonomia usada para descrever o fenômeno da responsabilidade social das pessoas jurídicas. Seguindo a teorização proposta por John Ruggie e incorporada pelo guia interpretativo proposto pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos, pode-se considerar o dever de devida diligência como um "processo de gerenciamento contínuo que, segundo uma avaliação razoável e prudente, a empresa precisa empreender, à luz de suas circunstâncias (incluindo setor, contexto, tamanho e fatores semelhantes) para cumprir sua responsabilidade de respeitar os direitos humanos".

A consagração do instituto nesses termos ocorreu por sua previsão pelos Princípios Orientadores sobre Empresa e Direitos Humanos da ONU (United Nations Guiding Principles on Business and Human Rights — UNGP) e não demorou para que esse fenômeno se espraiasse para legislações nacionais.

Era uma vez na Alemanha
Lieferkettensorgfaltspflichtengesetz, mas pode chamar de LkSG

Em 1º de janeiro de 2023, entrou em vigor na Alemanha a "Lei de Devida Diligência na Cadeia Produtiva", no original Lieferkettensorgfaltspflichtengesetz e doravante  LkSG para nos poupar do trava línguas.

A legislação é aplicável às empresas com sede ou atividade econômica no país. Inicialmente, abarca empresas com mais de 3.000 pessoas empregadas, passando, a partir de janeiro de 2024, a valer também para empresas com mais de 1.000 pessoas empregadas.

Por que uma empresa brasileira deve se preocupar com a LkSG?
Os efeitos da lei alemã deverão repercutir em empresas e mercados não abarcados imediatamente por seu conteúdo, à medida que as obrigações se desdobrarem ao longo das cadeias de valor. Assim, a lei se torna relevante para as empresas brasileiras que travam algum tipo de relação com empresas alemãs, ainda que esta não seja direta.

Isso porque o ato normativo obriga as empresas a estabelecer um sistema de devida diligência e de gestão de riscos aos direitos humanos ao longo das respectivas cadeias produtivas.

A lei determina também diferentes níveis de responsabilidade das empresas, a depender se se trata da própria atividade, das atividades de fornecedores diretos (com quem a empresa mantém um contrato), ou na atuação de fornecedores indiretos (aqueles com quem a empresa não possui um contrato direto, mas cujos suprimentos são necessários para sua cadeia produtiva.)

Em relação às atividades próprias, as empresas devem estabelecer medidas preventivas, como a adoção de uma política de direitos humanos e de medidas de controle para verificação de compliance com a citada política.

Ademais, as empresas devem adotar práticas de compras de suprimentos que minimizem ou impeçam os riscos identificados. Por exemplo, ao escolher fornecedores diretos, elas devem considerar aspectos de proteção ambiental e dos direitos humanos. Somado a isso, as empresas abarcadas pela lei devem adotar garantias contratuais de que os compromissos assumidos serão não apenas observados pelos fornecedores diretos, mas também devidamente endereçados por eles junto aos fornecedores indiretos ao longo da cadeia produtiva.

Por fim, há também deveres de devida diligência em relação a fornecedores indiretos. Por exemplo, diante de indicações substanciais de um risco de violação de direitos humanos ou de obrigações ambientais, deve-se realizar uma análise de risco junto ao fornecedor, adotar medidas de prevenção e trabalhar, ainda em conjunto com ele, para a minimização e cessação da violação.

Contribuição da LkSG para o debate em BHR: além da lógica de tudo ou nada
O sistema desenhado na lei estimula as empresas a utilizarem sua influência e trabalhar  em conjunto com os fornecedores para promover melhores práticas e inclusive a remediação de eventuais impactos adversos. Isso sem estimular a simples retirada de determinado país ou a finalização da relação comercial, o que deve ocorrer apenas em última instância

Busca-se assim evitar o alegado efeito "cut and run":  a fuga de empresas de determinados países que atuam como fornecedores da cadeia de suprimentos devido aos altos riscos reputacionais e jurídicos associados à implementação, nos países sede, de legislações que visam proteger direitos humanos ao longo das cadeias produtivas. De partida, cumpre destacar que o nexo entre a aprovação de legislações de HREDD e a fuga de empresas é contestada, considerando-se o caráter frequentemente temporário e a multicausalidade desses processos.

Tem-se assim um cenário em que, a fim de garantir sua conformidade com a lei, empresas abarcadas pelo ato normativo tendem a exigir de seus fornecedores compromissos e ações de prevenção de riscos a partir dos parâmetros da lei alemã, ainda que os mesmos parâmetros não são replicados na legislação local.

Desafios e próximos passos
A padronização regulatória por força do efeito Bruxelas pode ter efeitos positivos no sentido de evitar as armadilhas da "corrida ao fundo do poço", que normalmente ocorre quando certo país opta por desregulamentar para obter vantagens competitivas de curto prazo, e o regulatory chill, em que se empregam estratégias de frouxidão regulatória para evitar instauração de mecanismos de arbitragem com investidores. Dito de outra forma, a melhoria da regulação relacionada a agenda BHR é necessária para desincentivar o que a doutrina convencionou denominar de "forum shopping", é dizer, "a prática pela qual as empresas mudam suas sedes para aquelas jurisdições onde acabam sendo menos regulamentadas".

Simultaneamente, embora haja iniciativas de regulação do tema, a falta de legislação nacional compreensiva e alinhada com os parâmetros internacionais pode ensejar desafios para as empresas nacionais, por falta de referencial autoritativo sobre seus deveres de diligência face a riscos aos direitos humanos e obrigações ambientais.

Contudo, a mera cópia irrefletida de regulação pode ensejar a ocorrência de uma ou mais consequências negativas descritas por Anu Bradford em seu livro sobre o Efeito Bruxelas, quais sejam: : 1) proliferação de regulação com alto custo de implementação comparado com o bem-estar social gerado, em prejuízo à inovação; 2) fortalecimento de medidas protecionistas em prol dos países europeus, distorcendo o funcionamento do mercado internacional e 3) ocorrência de imperialismo regulatório em detrimento da soberania de países estrangeiros e da autonomia política de seus cidadãos.

 Assim, destaca-se a urgência, diante da acelerado proliferação de regulações a nível internacional, de  iniciativas como o PL 572, que podem contribuir ao alinhar o cenário doméstico, desde uma perspectiva ciente dos desafios locais, ao ecossistema ESG internacional,  trazendo competitividade ao mercado.

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