Opinião

Extensão da responsabilidade patrimonial: sem equilíbrio não há solução

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9 de fevereiro de 2023, 7h08

Não se conhece fórmula perfeita pra superar os problemas que impedem que a cobrança de dívidas em juízo seja eficiente e efetiva. A busca de soluções começa por um diagnóstico correto e passa por duas vertentes: aperfeiçoamento das técnicas executivas e alargamento da responsabilidade patrimonial. Naquela, debatem-se temas como simplificação e racionalização do processo, incentivos ao adimplemento voluntário, mecanismos de coerção, emprego de tecnologia e delegação de atividades a entes privados; na outra, a atenção se volta para garantias reais ou pessoais, relação entre integrantes de grupo econômico, diferentes formas de fraude contra credores, desconsideração da personalidade jurídica e sucessão empresarial.

Embora ambas sejam relevantes para o mercado, é na segunda que parece residir o maior desafio. Se o sistema não é apto a satisfazer o credor a partir de algum patrimônio, não perde apenas o credor, mas também o interesse público, pela perda dos recursos investidos e aumento do custo do crédito. Se o sistema, no afã de proporcionar resultado a qualquer preço, extrapola os limites pelos quais razoavelmente o patrimônio de determinada pessoa se sujeita à satisfação do crédito, então o prejuízo não é apenas do titular dos ativos afetados, mas da coletividade: abala-se a segurança nas relações e, dessa forma, desestimula-se o investimento.

É realmente difícil dizer onde está o equilíbrio. Contudo, parece possível tentar estabelecer parâmetros para tanto. Eis aqui, então, um decálogo, apresentado como tentativa de contribuição para o debate.

Primeiro: ter sempre em mente que o patrimônio que se sujeita à cobrança é, por regra, o do devedor. Estender essa responsabilidade a terceiros é exceção.

Segundo: interpretar as exceções a essa regra acima de forma restritiva.

Terceiro: fazer a distinção entre as diferentes formas pelas quais um terceiro pode responder por dívidas de outrem. Fraude é uma palavra técnica no Direito, mas pode ter diferentes sentidos e alcances. Para cada eventual fraude há uma forma de reação adequada do sistema. Portanto, fraude de execução não se confunde com desconsideração da personalidade jurídica, diversas por seus requisitos e efeitos. Desconsideração da personalidade jurídica não se confunde com sucessão empresarial, especialmente porque essa última pressupõe que alguém assuma integralmente a posição de outra pessoa; que deixa de existir. Sucessão não se confunde com a aquisição de ativos de devedor em dificuldades econômicas e, quando muito, talvez se possa falar de ineficácia por fraude de execução.

Quarto: ter em mente que fraude, embora seja repugnante e deva ser combatida, não se presume. Inadimplemento é fato relevante para o Direito; nem por isso se pode dizer que todo devedor inadimplente seja fraudador. Como regra, é encargo da parte interessada alegar e provar a ocorrência de fraude, qualquer que seja a modalidade.

Quinto: considerar que a extensão de responsabilidade patrimonial é usualmente subsidiária; só deve cogitar do patrimônio do terceiro se e quando tiverem sido razoavelmente exploradas as tentativas de satisfazer o credor a partir do patrimônio do devedor.

Sexto: a mera existência de grupo econômico, por si só, não autoriza desconsideração de personalidade jurídica. A asserção nem deveria integrar o decálogo, pois traduz o que está literalmente na lei. Talvez devesse dar lugar a outra: não deixar de aplicar a vontade consagrada pelo legislador sob o pretexto de que sua escolha não teria sido a melhor. E, tratando-se de grupo, não se deixar levar pelo viés segundo o qual força econômica seria sinônimo de abuso ou de aptidão para arcar com dívidas contraídas por outrem.

Sétimo: não estender responsabilidade patrimonial sem se dar oportunidade prévia de defesa. Da mesma forma, isso não precisaria ser dito porque exatamente para isso é que foi positivado no Direito brasileiro o incidente de desconsideração. Entendimento contrário pode gerar juízos precipitados e equivocados; medidas de urgência devem ser excepcionais, mediante decisões solidamente fundamentadas.

Oitavo: lembrar que falta de liquidez ou mesmo ausência de patrimônio para satisfação de seus credores não são situações que, por si sós, autorizem extensão de responsabilidade patrimonial a terceiros.

Nono: considerar que o sistema permite uma forma de investigação preliminar, desde que justificadamente pedida pelo interessado, como forma de tutelar o credor e, ao mesmo tempo, não atingir bens de terceiros, em razão jurídica (CPC, artigo 381, II e III).

Décimo: lembrar que desconsiderar as regras anteriores pode até gerar uma falsa sensação de que o sistema foi eficiente e efetivo e que encontrar a todo custo alguém que pague a conta de outrem não é apenas injusto, mas tem perversas repercussões jurídicas e econômicas.

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    é advogado, árbitro, professor titular de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e diretor-presidente da Fundação Arcadas.

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