Opinião

É preciso que o jornalismo dê voz aos inocentes

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8 de fevereiro de 2023, 6h08

"Em nossos dias, um cidadão oprimido só tem um meio de se defender: dirigir-se à nação inteira e, se ela lhe for surda, ao gênero humano. E só há um meio para fazê-lo, a imprensa." (Tocqueville)[1]

Se nós, cidadãos brasileiros, tivéssemos de refletir sobre qual das duas operações prestou maior serviço à Justiça, a "lava jato" ou a "vaza jato", creio que, hoje, a segunda não mereceria receber menos louvor do que primeira. De minha parte, creio que a última prestou à Justiça brasileira o maior serviço que ela recebeu nos últimos anos. Talvez o mais relevante — e que merece ser enfatizado — foi o de ter mostrado que a imprensa, longe de ser uma "enxerida" no sistema de Justiça, é antes um elemento sine qua non de sua correta, honesta e justa administração. Mirabeau [2] costumava alertar: dê ao acusado o juiz que você quiser, corrupto, parcial, inimigo dele mesmo, desde que ele faça tudo em público.

Governantes, instituições públicas e agentes públicos em geral odeiam a imprensa, rectius imprensa livre. "É ela", ensina Tocqueville, "cujo olho sempre aberto põe incessantemente a nu os mecanismos secretos da política e força os homens públicos a comparecer sucessivamente diante do tribunal da opinião".[3] Não é coincidência que os regimes totalitários se apressam a suprimir a imprensa como medida orquestrada de governo. Se não podem suprimir a imprensa materialmente, recorrem a alternativas mais ou menos sutis contra os(as) jornalistas, mas sempre tendentes a silenciar essas sentinelas da liberdade. "A imprensa", diz nosso Rui, "é a vista da Nação". "Por ela é que a Nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou roubam, percebe onde lhe alvejam, ou nodoam, mede o que lhe cerceiam, ou destroem, vela pelo que lhe interessa, e se acautela que a ameaça."[4]

Em nossos tempos, a imprensa não é apenas um meio de se conseguir essa fiscalização, mas o único. A publicidade é o grande elemento depurador das instituições, e com a Justiça criminal não poderia ser diferente. O trabalho que a imprensa faz, e o trabalho que ela ainda não faz mas tem o potencial de fazer, em favor do inocente, é um dos trabalhos mais dignos a que se pode propor um(a) jornalista. Dê ao inocente condenado o Habeas Corpus, o advogado, a revisão criminal; sem a imprensa livre, o seu grito de socorro não ecoará para além das salas dos tribunais, e talvez nem mesmo ali poderá surtir efeito.

O erro judiciário, para ser reconhecido e reparado, precisa ser objeto de intensa publicidade e divulgação, para que a vigilância do público possa constranger os poderes constituídos a fazerem os devidos reparos necessários ao aprimoramento da justiça criminal. Como bem observou Benjamin Constant, os tempos modernos, mais do que os antigos, precisam da imprensa como elemento sine qua non da própria administração da Justiça:

"Nas políticas de grande escala dos tempos modernos, a liberdade de imprensa, sendo o único meio de publicidade, é, em virtude de tal fato, seja qual for o tipo de governo, a única salvaguarda para nossos direitos. Collatinus podia expor o corpo de Lucrécia na praça pública de Roma e todos ficavam informados da afronta que havia sido cometida contra ele. O devedor plebeu podia mostrar aos seus indignados concidadãos os ferimentos nele infligidos pelos gananciosos patrícios e pelos credores agiotas. Em nossa era, entretanto, a vastidão dos estados é um obstáculo para esse tipo de protesto. Injustiças limitadas sempre permanecem desconhecidas de quase todos os habitantes de nossos gigantescos países. (…). Todas as defesas – civil, política ou judicial – tornam-se ilusórias sem liberdade de imprensa. (…). Se a publicação ostensiva não for garantida, essa violação não poderá ser controlada, pois ficará coberta por um véu. Os próprios tribunais podem prevaricar nos seus julgamentos e subverter o devido processo. A única salvaguarda para tal processo é, mais uma vez, a publicação ostensiva. A inocência pode ser posta em grilhões. Se a publicação ostensiva não alertar os cidadãos sobre o perigo que paira sobre todas as cabeças, as masmorras, favorecidas pelo silêncio generalizado, reterão indefinidamente suas vítimas."[5]

Não há nada mais prazeroso do que ver jornalistas engajados(as) na causa dos inocentes. Certamente o(a) advogado(a) é uma força que, tal como a imprensa, socorre o oprimido. A questão é saber se essas forças, isoladamente consideradas, conseguem realmente atingir o objetivo a que se propõem. Parece-me que, se existem duas forças que se reforçam reciprocamente, duas forças sem as quais o inocente não consegue ser atendido, essas forças são a imprensa e o(a) advogado(a). A defesa reclama o socorro da imprensa tanto quanto aquele a quem ela presta assistência. A imprensa é, explicam Lailler e Vonoven, "le plus puissant auxiliaire de l'innocent condamné'.[6] Sem ela, "l’erreur judiciaire serait rarement réparée"[7], pondera Guilhermet.

Temos um exemplo disso correndo debaixo de nossos olhos. A recente mudança jurisprudencial a respeito do artigo 226 do Código de Processo Penal somente ocorreu pela atuação conjunta de advogadas brilhantes como Flávia Rahal e Dora Cavalcanti e de jornalistas que colaboram para levar esse trabalho de correção das injustiças ao conhecimento do público, que, do contrário, permaneceria eternamente alheio ao mau funcionamento do sistema de Justiça de seu país. A imprensa jogou luz sobre um tema absolutamente esquecido e maltratado, não mais esquecido e maltratado do que os próprios inocentes jogados às masmorras que receberam essa luz — e esperança — da imprensa.

Note-se que o artigo 226 tem a mesma — rigorosamente a mesma — redação de quando o Código de 1941 foi gestado. E, desde então, ele nunca foi observado, sempre foi esquecido — por polícia, Ministério Público e Poder Judiciário. Só recentemente é que o Poder Judiciário, por meio de corajosa mudança jurisprudencial proporcionada pelo Superior Tribunal de Justiça, vem ora anulando condenações ora absolvendo os acusados que o são por esse perigoso meio de prova. Ora, se não houve qualquer alteração legislativa para mudar essa postura do Judiciário sobre o reconhecimento de pessoas, o que explica toda essa mudança? A atuação diligente e providencial da imprensa. Não fosse ela e esses infelizes ainda estariam expiando uma pena imerecida, estariam ainda esquecidos pelo sistema de Justiça e o erro judiciário permaneceria ocultado.

Por meio da imprensa, torna-se possível que a sociedade exerça uma censura corretiva aos atos do poder, e isso inclui o Poder Judiciário e o Ministério Público. É verdade que a própria imprensa não está isenta de cometer os seus erros, e, tragicamente, ela própria pode se ver transformada em um instrumento, ativo e passivo ao mesmo tempo, de perseguições injustas. "Quanto maior o bem", diz Rui, "maior o mal que da sua inversão procede". "Nada mais útil às nações do que a imprensa na lisura da sua missão. Nada mais nefasto do que ela mesma na transposição do seu papel."[8]

A própria imprensa então, para bem denunciar os erros do Judiciário e do Ministério Público, precisa começar por reconhecer, quando os comete, os seus. E ela o vem fazendo. De outra parte, cumpre à defesa, à advocacia, entender que a imprensa é uma grande aliada nessa tarefa de corrigir erros judiciários.

É importante então que os(as) jornalistas continuem empregando para o bem esse seu grande poder — e alguém dúvida que a imprensa é um poder? (para Wilde [9] é o único: "devorou os outros três"). É preciso dar voz aos inocentes; sem a imprensa, essa voz sai rouca, trêmula, insonora. Com a imprensa, a inocência é entoada à altura que merece ser: ao país inteiro. E isso exige jornalistas destemidos(as), livres e independentes para poderem cumprir honestamente essa difícil mas sobretudo humanista tarefa.


[1] TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América, Livro II, Trad. Eduardo Brandão, 2ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 398.

[2] “L'intérêt des accusés serait suffisamment rempli par la publicité de la procédure. Eux-mêmes ne demandent rien de plus; qu'ils aient des juges suspects, prévaricateurs, ennemis, peu leur importe. La publicité de la procédure est le seul moyen de défense qu'ils réclament.” (Ouvres de Mirabeau: Discours et opinions, Tome II, Paris: Didier Libraire, 1834, p. 20)

[3] A democracia na América, Livro I…, p. 214.

[4] BARBOSA, Rui. A imprensa e o dever da verdade, São Paulo: Editora Papagaio, 2004, p. 32.

[5] CONSTANT, Benjamin. Princípios de política aplicáveis a todos os governos, Trad. Joubert de Oliveira Brízida, Editora Topbooks: Liberty Classics, Rio de Janeiro, 2007, p. 201, 202.

[6] LAILLER, Maurice; VONOVEN, Henry. Les erreurs judiciaires et leurs causes, A. Pedone Éditeur, Paris, p. 39.

[7] GUILHERMET, G. Comment se font les Erreurs Judiciaires, Libraire Schleicher Frères, Paris, p. 208.

[8] Op. cit., p. 35.

[9] WILDE, Oscar. A alma do homem sob o socialismo, Trad. Heitor Ferreira da Costa, Porto Alegre: L&PM, 2013, p. 58.

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