Voto de qualidade no Carf: um fantasma à solta
7 de fevereiro de 2023, 6h03
É certo que o fundamento do "processo" administrativo tributário não é o direito das partes, mas sim a verificação da possibilidade de concretização ou não do lançamento [1].
A assertiva aparentemente simples guarda primados principiológicos relevantes: 1) o lançamento do crédito tributário decorre da lei e obedece aos ditames da lei; 2) uma vez lançado o crédito tributário, o contribuinte pode requerer a sua revisão; 3) a revisão gera um processo administrativo (lato sensu), o qual não traduz um litígio entre o contribuinte e o fisco, mas um procedimento de descoberta da verdade material; 4) o processo de revisão buscará saber se o lançamento do crédito tributário está correto ou não, onde as regras tributárias e os princípios da legalidade, da finalidade, da impessoalidade, da eficiência e da moralidade administrativa são a tônica, já que a administração somente age conforme a lei e não é lícito ao Estado pretender impingir derrotas ao direito subjetivo individual do cidadão contribuinte sob o pálio da defesa do interesse público ou do bem comum [2].
Em termos práticos, a atividade tributária é plenamente vinculada, de modo que o lançamento e a revisão do tributo se revestem dos mesmos atributos dos atos administrativos vinculados (CTN, artigo 142, § único) e, por isso, devem obediência aos princípios constitucionais administrativos, em especial da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da eficiência (CF, artigo 37, caput) e da motivação (CF, artigo 93, inciso X).
A tributação como resultado da ideia de solidariedade social implica uma limitação direta e concreta ao direito fundamental à propriedade (CF, artigo 5º, inciso XXII), dada a expropriação de parcela do patrimônio do contribuinte pelo Estado, campo onde incide, por regra universal, a vedação à imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público (Lei nº 9.784/99, artigo 2º, § único, inciso VI), pois o princípio constitucional geral e explícito de tributação denominado proporcionalidade razoável (CF, artigo 150, inciso IV) veda a tributação com efeitos de confisco, significando que o tributo não deve subtrair mais do que uma parte razoável do patrimônio ou da renda do contribuinte [3].
Em matéria de constituição e lançamento do crédito tributário, os parâmetros delimitadores do interesse público e da razoabilidade estão na própria lei tributária e nas garantias asseguradas ao contribuinte, valendo todas as limitações constitucionais ao poderio estatal de tributação, que não é exaustivo (CF, artigo 150).
Feitas tais digressões, os questionamentos sobre a validade do duplo voto de desempate da Fazenda Pública — o chamado voto de qualidade ou voto de Minerva (Decredo Federal 70.235/72, artigo 25, §9º) — nos julgamentos dos processos administrativos fiscais junto ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) assumem especial destaque no debate jurídico, especialmente no momento presente.
Indo direto ao ponto, o voto de qualidade viola, além de outros, os princípios do devido processo legal, da impessoalidade, da isonomia, do in dubio pro contribuinte e deturpa a essência do órgão colegiado deliberativo, transformando-o empiricamente em um tribunal fiscal de supremacia da arrecadação fazendária em detrimento obrigatório do contribuinte, sujeito ainda à insegurança jurídica do contexto político do momento.
É que o crédito tributário, uma vez constituído, goza de presunção de liquidez e certeza. Não obstante, por outro lado, somente poderá ser mantido se não houver incerteza quanto à sua conformação legal e jurídica (CTN, artigos 147, §2º e 149, inciso I).
E no caso dos julgamentos dos processos administrativos fiscais junto ao Carf, o fato é que o empate expressa, em si mesmo, formal e materialmente, a própria incerteza da conformação legal e jurídica do crédito tributário.
Em tal circunstância, como artifício de solução da demanda fiscal, o voto de qualidade já materializa, per si, a quebra do princípio do in dubio pro contribuinte, já que a incerteza da conformação legal e jurídica do crédito tributário configura presunção real e deveria ser automaticamente resolvida in dubio pro contribuinte (CTN, artigo 108, inciso I c/c artigo 112).
A experiência acumulada demonstra que a estrutura do Carf e o processamento das demandas fiscais favorecem, com o voto de qualidade, a arrecadação em detrimento do cidadão contribuinte de forma obrigatória, ferindo os princípios da isonomia, paridade e a heterogenia contida no código genético do órgão.
Criado pela Medida Provisória nº 449, de 3/12/2008 e subordinado ao Ministério da Fazenda, o Carf é — ou deveria ser — um órgão colegiado fundado na paridade de representação pela Fazenda Nacional e pelos contribuintes (Lei nº 11.941/2009, artigo 25, §7º e artigos 1º e 23 do seu Regimento Interno).
Todavia, se a despeito da igualdade numérica entre tais representantes é instituído o voto de desempate, e se tal voto incumbe sempre ao representante da Fazenda Nacional (Dec. Fed. 70.235/72, artigo 25, §9º), então a paridade e a isonomia não subsistem, pois a solução do processo de exigência de tributos ou contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal estará, ao final, sempre ao crivo exclusivo da própria administração tributária federal, que terá o benefício do voto em dobro.
Não é em vão que, exatamente por esse desequilíbrio de forças, somente entre os anos de 2017 e 2019, entre todos os julgamentos do Carf, mais de 4/5 dos votos de qualidade foram favoráveis à Fazenda Nacional [4], relevando-se aí, na prática, o perfil fiscalista e a deturpação do modelo do voto em dobro, contrário à essência paritária do órgão.
Vale lembrar que a Medida Provisória nº 899/19, chamada MP do Contribuinte Legal, publicada em 10/10/2019, veio para dispor sobre a possibilidade de transação resolutiva de litígio entre União e sujeitos passivos tributários (CTN, artigo 171), e acabou dando origem ao Projeto de Lei de Conversão nº 2/2020, cuja redação final aprovada pelo Plenário da Câmara dos Deputados previu a inclusão de dispositivo na Lei nº 10.522/02 para tornar inaplicável o voto de qualidade nos empates em julgamentos de processos administrativos de determinação e exigência do crédito tributário, e estabelecer a resolução favorável ao contribuinte em tais hipóteses.
A iniciativa gerou a Lei nº 13.988/2020, que corrigiu a distorção institucional ao incluir na Lei nº 10.522/2002 o artigo 19-E, prevendo que em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do artigo 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte.
Mas em 13/1/2023, foi publicada a Medida Provisória nº 1.160/2023, que reinstituiu o voto de qualidade ao prever já no artigo 1º que na hipótese de empate na votação no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o resultado do julgamento será proclamado na forma do disposto no §9º do artigo 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972.
A Exposição de Motivos do Ministério da Fazenda justificou a medida alegando que o modelo paritário de votação com resolução favorável ao contribuinte em caso de empate teria causado uma reversão do entendimento do tribunal em grandes temas tributários, e que cerca de R$ 59 bilhões (cinquenta e nove bilhões de reais), por ano, deixarão de ser recolhidos.
Porém, as estatísticas do próprio Carf militam em sentido contrário. Os números revelam que a alteração promovida pela Lei n. 13.988/2020 não favoreceu os contribuintes, dado que a quase totalidade dos julgamentos (94,7%) foram favoráveis à Fazenda Nacional, sendo que apenas 1,3% dos empates foram resolvidos a favor do contribuinte desde a inovação legislativa.
Além disso, os mesmos dados mostram que desde a extinção do voto de qualidade em 2020, a média de julgamentos unânimes subiu de 76,4% (2017 a 2019) para 81,2% (2020 a 2022) ao mesmo tempo em que os julgamentos majoritários caíram de 17,2% (2017 a 2019) para 14,9% (2020 a 2022) e os votos de qualidade caíram de 6,4% (2017 a 2019 para 2,6%, sugerindo o surgimento de uma postura jurisprudencial defensiva pro Fazenda que evita empates e impede a incidência do artigo 19-E Lei nº 10.522/2002.
Não se pode olvidar que além de fazer valer o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório na sua esfera de atuação, o Carf também carrega a missão de dar ao crédito tributário a certeza de sua legítima constituição, o que, para nós, não admite o duplo voto da Fazenda nos julgamentos empatados, seja pelas razões de direito ou pelas razões empíricas expostas.
Na ordem constitucional vigente, a Receita Federal, o Carf, o Ministério da Fazenda, a Fazenda Nacional e todos os demais órgãos e entidades jurídicas estatais integram a administração pública, sujeitando-se assim, indistintamente, aos princípios republicanos, especialmente os da legalidade, da eficiência e da impessoalidade, ao passo em que ao cidadão contribuinte são assegurados direitos e garantias universais de índole constitucional, como a razoabilidade tributária e a limitação do poder estatal de tributar, o qual estará sempre adstrito à finalidade pública e à moralidade.
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[1] SCHOUERI, Luís Eduardo; SOUZA, Gustavo Emílio Contrucci A. de. Verdade material no "processo" administrativo tributário. In: ROCHA, Valdir de Oliveira. (Coord.). Processo administrativo fiscal. 3º v., p. 140-173, São Paulo: Dialética, 1998.
[2] MARINS, JAMES, Direito Processual Tributário Brasileiro (administrativo e judicial), São Paulo: Dialética, 2001, p. 348.
[3] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 696.
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