Tribuna da Defensoria

Defensoria Pública e a atuação processual em favor do nascituro: uma reflexão

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7 de fevereiro de 2023, 8h00

Recentemente, foram trazidas a público informações a respeito de um caso oriundo do estado do Piauí, colocando em discussão os limites da atuação da Defensoria Pública na tutela de interesses de nascituro.

O caso narrado pela imprensa, cujo processo encontra-se em segredo de justiça, dá conta de uma adolescente de 12 anos, grávida por ter sido vítima de estupro, que, ao buscar a interrupção de sua gestação por meio de autorização judicial, acabou enfrentando percalços em razão da configuração procedimental perante o juízo [1].

É certo que a falta de acesso aos elementos dos autos e a impossibilidade de se conferir valor absoluto às declarações da matéria jornalística nos impedem de realizar uma análise do caso concreto, o que implica apenas a interpretação da situação em abstrato, apesar da gravidade que o caso reflete.

Ao menos, a partir da reportagem jornalística e das notas publicadas pela Defensoria Pública [2] daquele estado e de sua associação de classe [3], pode-se inferir que no procedimento para interrupção de gravidez mencionado houve a atuação de três órgãos de atuação distintos da Defensoria Pública: A – um órgão para a tutela de interesses da adolescente gestante; B – outro órgão para a defesa de interesses do genitor da adolescente; C – e um terceiro órgão de atuação para a tutela dos interesses do nascituro, tudo a partir da perspectiva dialética que norteia a instituição, na forma do artigo 4º-A, V da LC n. 80/94.

Diante deste quadro, lançamos aqui neste estudo os seguintes questionamentos: A Defensoria Pública é apta para tutela de interesses de nascituros? Em procedimentos jurisdicionais para a interrupção de gravidez, deve a Defensoria Pública também tutelar os interesses do nascituro, sem prejuízo da atuação em favor da mulher grávida? Em caso positivo, de que forma?

Nesta breve reflexão, pretendemos problematizar os aspectos da atuação da Defensoria Pública na defesa do nascituro, diante da necessidade de um suporte teórico mais robusto para justificar a atuação institucional, a partir da leitura de suas funções institucionais e objetivos, deixando claro em que espaços a instituição deve postular e com quais objetivos.

Deixamos claro que o presente estudo se distanciará dos debates estabelecidos pelos ideais feministas e religiosos que envolvem a temática do aborto, já que a natureza dialética da Defensoria Pública lhe permite conviver em espaços de dissenso, desde que alinhada aos objetivos previstos no artigo 3º-A da LC n. 80/94.

Ademais, veremos que as questões que envolvem o nascituro não se restringem ao confronto com o direito ao aborto e transcendem essa perspectiva, sendo inadequada a sua redução a uma única perspectiva de atuação.

Apenas para contextualização de como o uso de convicções pessoais não devem se confundir com políticas institucionais, trazemos o exemplo da Defensoria Pública da União que sofreu forte pressão por meio de notas [4] e ofícios [5] expedidos com cobranças a respeito da não criação de um grupo de trabalho no âmbito da instituição para a tutela de interesses do nascituro, em especial para casos que envolvessem o direito ao aborto.

Relembre-se também que no sistema interamericano, a Comissão Interamericana já teve a oportunidade de se manifestar a respeito do direito ao aborto no caso Baby Boy vs. Estados Unidos, a partir da cláusula do artigo 14 da Convenção Americana, quando prevê que: "Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente".

De acordo com a interpretação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a inclusão da expressão "em geral" procura compatibilizar o direito à vida desde o momento da concepção, sem prejuízo das normativas dos Estados membros que assegurem o direito ao aborto, o que significa reconhecer que a Convenção não proíbe a realização do procedimento de interrupção de gravidez.

A partir dessas perspectivas, não nos parece que a controvérsia do direito ao aborto, ainda não convenientemente discutida no âmbito da Defensoria Pública, seja uma condicionante a definição dos espaços de atuação da Defensoria Pública, mormente quando verificados outras hipóteses justificadoras da atuação institucional, como procuraremos expor neste ensaio.

A atuação institucional em favor do nascituro não é novidade. Em 2017, durante o XIII Congresso da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos, houve a realização de espaço livre para debates (Escrevendo a Defensoria), onde vários colegas apresentaram resumos sobre temas de interesse institucional.

Um destes resumos, de autoria do professor Cleber Alves, já problematizava a questão da tutela do nascituro como vulnerável [6], ainda que limitando-se a questão do aborto, quando pontuou que:

"O ordenamento jurídico brasileiro embora não atribua personalidade civil ao nascituro, expressamente protege seus direitos desde o momento da concepção (Artigo 2º, do Código Civil), sendo manifesta sua condição de ser vivo, integrante da espécie humana. A Convenção Americana dos Direitos do Homem, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro (Decreto 678/92), com caráter de supra legalidade, tendo em vista o disposto no seu Artigo 4º, item 1, também fundamenta a proteção ao nascituro, desde a concepção. A condição de vulnerabilidade do nascituro, pela própria realidade do contexto de sua vital dependência de outrem, no caso a gestante, é incontestável. Nos casos de pretensão da gestante de interrupção da gravidez, invocando permissivo legal para tal conduta, configura-se inequivocamente um embate entre os direitos alegados pela mulher para embasar sua pretensão e o direito à vida do nascituro, que igualmente são assegurados pelo ordenamento jurídico. Há, nesses casos, conflito entre direitos humanos. Diante da situação de vulnerabilidade, parece-nos indispensável que, na relação jurídico-processual em que esteja sendo discutida a possível interrupção da gravidez, se assegure a presença de um ator que desempenhe o papel de defender os direitos do nascituro. Pelo perfil constitucional e legal próprio da Defensoria Pública, sustentaremos, nesta “comunicação livre”, que esse papel deve ser desempenhado por um defensor público."

O tema focado no direito à vida do nascituro recebeu outras tímidas provocações até começar a ser incluído nas normas estaduais que regem as Defensorias Públicas. Em pelo menos três Defensorias Públicas, o regime jurídico específico conta com a previsão da atuação institucional em favor do nascituro, apesar de a origem destas normas evidenciarem peculiaridades no processo legislativo e nos seus escopos.

Nos referimos aos casos das Defensorias Públicas do Amazonas, Rio de Janeiro e Paraná, cujos dispositivos transcrevemos para maior ilustração, com o importante alerta de que todos foram incluídos por reformas legislativas no ano de 2022:

"DPEAM – LCE nº 01/1990

Art. 3.º

(…)

XI – exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos do nascituro, da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa com deficiência, da mulher vítima de violência doméstica, familiar ou obstétrica e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado;

(Incluído pela Lei Complementar 241 de 27/12/2022)

Art. 4.º

(…)

§3.º Considera-se juridicamente necessitado o nascituro, a criança, o adolescente, o idoso, a pessoa com deficiência, a mulher vítima de violência doméstica, familiar ou de gênero e outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado.

(Incluído pela Lei Complementar 241 de 27/12/2022)

DPERJ – LCE 06/77

Art. 6º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras:

XXVIII – atuar nas demandas em que seja parte o nascituro para a defesa dos seus direitos.

(Artigo 6º com redação dada pela Lei Complementar 203, de 29 de junho de 2022)

DPEPR – LCE 136/2011

Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública do Estado do Paraná na orientação jurídica e defesa dos necessitados, na forma do artigo 5º, inciso LXXIV da Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988, dentre outras:

XXII – atuar nas demandas em que seja parte o nascituro para a defesa dos seus direitos. (Incluído pela Lei Complementar 248 de 1/8/2022)"

Das três normas apontadas, aquela que rege a Defensoria Pública amazonense parece ser a mais bem redigida, pois considera o nascituro um segmento vulnerável e atribui, na mesma linha do que foi feito no Rio de Janeiro e Paraná, uma função institucional específica para a defesa de seus direitos, à proximidade do que se tem denominado como defensor da criança, apesar de ser necessário um maior desenvolvimento teórico dessa temática.

A respeito do defensor da criança, Adriano Leitinho [7] explica que:

"O defensor da criança e do adolescente veio exatamente para dar vez e voz a toda criança e adolescente, funcionando como representante dos interesses pessoais e individuais destes, nos procedimentos judiciais ou administrativos que lhes digam respeito e lhes afetem de alguma forma, equilibrando a relação processual em nome do princípio da igualdade das partes, e, garantindo a ampla defesa e o contraditório da criança e do adolescente."

Façamos a ressalva de que no caso específico da Defensoria Pública do Amazonas, a inclusão do dispositivo partiu por iniciativa do próprio Defensor Público Geral, com o objetivo de tutelar problemas cotidianos aos interesses de nascituros, a exemplo de alimentos gravídicos e inclusão de nome e sobrenome no registro de óbito em casos de natimortos e outras pretensões correlatas, sem que a instituição tencionasse atuar em ações de interrupção de gravidez, como se observa do texto do projeto de lei e sua exposição de motivos [8].

E aqui há um aspecto muito importante a ser considerado. A atuação em favor dos interesses de nascituro não se restringe aos pedidos de interrupção de gravidez, sendo possível a adoção de uma série de outras providências cuja pertinência é indiscutível, a exemplo dos alimentos gravídicos, tutela do nome, imagem e honra, identidade genética e pretensão indenizatória e que podem ser patrocinadas com amparo da Defensoria Pública, sem que haja um aparente dissenso teórico.

No caso da Defensoria Pública do Paraná, o dispositivo não adveio da iniciativa do Defensor Público Geral, mas de inclusão por meio de emenda parlamentar, apesar da aparente oposição da instituição [9], por autoria do deputado estadual Marcio Pacheco, que assim justificou sua proposição [10]:

"É necessária a medida, visto que esclarece as funções da Defensoria Pública do Estado do Paraná no sentido de proteção dos direitos do nascituro, que já são tutelados pela lei civil, pondo-os a salvo desde a concepção e pela lei penal, tendo em vista a punição do aborto, do infanticídio durante o parto, periclitação da vida e da saúde, dentre outros".

Situação similar ocorreu em relação à legislação do estado do Rio de Janeiro, já que o projeto de lei encaminhado pelo defensor público geral não continha a previsão normativa, sendo incluída por meio de emenda parlamentar acolhida na redação final do texto aprovado pelo parlamento.

Percebe-se, então, que as três instituições que contemplam a atuação em favor do nascituro, em nenhum momento pretenderam o fazer com vistas a atuação em procedimentos de interrupção de gravidez, sendo certo que no caso do Paraná e Rio de Janeiro, as Defensorias Públicas se viram atingidas pelo risco natural do jogo político por trás de um projeto de lei encaminhado ao parlamento estadual.

Apesar dessa realidade normativa, pendem, por ora, outras 25 Defensorias Públicas que não contam com disposições legais semelhantes.

Nunca é demais lembrar que o artigo 2º do Código Civil traz o marco da personalidade civil, assim o definindo como o nascimento com vida, mas com a ressalva da tutela, desde a concepção, dos direitos do nascituro.

Na linha da doutrina [11] e da jurisprudência [12] modernas há quem encare o nascituro como absolutamente incapaz (teoria concepcionista) e lhe garanta a tutela de alguns direitos de índole patrimonial (danos morais) que podem ser amparados pela assistência jurídica da instituição.

Entretanto, parece que o foco maior da tutela do nascituro, infelizmente, ainda gravita em torno da temática do aborto. Tramita no Congresso Nacional o denominado Estatuto do Nascituro cujo objetivo é conferir tratamento jurídico e protetivo à sua personalidade e integridade.

Na mesma linha e mais recentemente, no ano de 2019, foi apresentado o PL 564 na Câmara dos Deputados também tratando da tutela jurídica do nascituro, inclusive a título processual.

O caminho do citado projeto é estender a atuação da curadoria especial do artigo 72 do CPC (absolutamente incapaz) ao nascituro, nos moldes do que já ocorre com a curatela prevista no artigo 1.779 do Código Civil, de forma a solucionar uma possível lacuna de atuação.

Nas Defensorias Públicas que não encontram normativa semelhante às dos estados antes mencionados, parece-nos que a curadoria especial será o caminho natural de atuação, a partir da aprovação do projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional.

Seja a curadoria especial ou uma função autônoma de tutela do nascituro, parece-nos que o grande desafio é compreender o escopo da atuação nas diversas pretensões que lhes sejam favoráveis ou contrárias.

A esse ponto, não se deve olvidar a extinta figura do Código Civil de 1916, o chamado curador ao vínculo, cuja função processual era de velar pela manutenção do casamento nas ações de anulação, mesmo que contra a vontade dos cônjuges. Tratava-se de uma figura interventiva anacrônica, cujo objetivo era realizar uma defesa formal do vínculo matrimonial, sem qualquer contribuição efetiva para o processo, cuja existência foi suprimida pelo Código Civil de 2002.

Estaria a Defensoria Pública ali no procedimento de interrupção de gravidez, enquanto tutora dos interesses do nascituro buscando contribuir ao deslinde da questão ou apenas alargando o rito processual de modo a frustrar eventual interrupção, levando a gestante ao inevitável nascimento da criança, com vistas ao atendimento de interesses estranhos ao processo?

Essa talvez seja a principal reflexão a ser realizada pela Defensoria Pública. A se entender que caiba a intervenção em favor do nascituro, de que maneira a instituição pode contribuir no confronto de interesses entre a gestante e o nascituro, sem comparecer ao processo como um obstáculo ao acesso à justiça da gestante?

Também se torna crucial que a Defensoria Pública possa multifacetar a sua atuação em favor do nascituro em hipóteses em que não haja conflitos de interesses, definindo ela própria, de forma clara, quando intervirá e quando deixará de atuar, evitando que a controvérsia a respeito do aborto impeça a justiciabilidade de outras pretensões incontestes.

A resposta a essas perguntas é que deve permear o debate quanto a conformação dessa nova forma de atuação institucional, no ambiente adequado, com referencial teórico e diversidade de pensamentos, sem que convicções pessoais ditem o perfil de atuação institucional.

 


[9] https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/roger-pereira/defesa-do-nascituro-atribuicao-defensoria-publica-no-pr/

[11] TARTUCE, Flávio. A situação jurídica do nascituro: uma página a ser virada no Direito Brasileiro. In: Questões controvertidas do Código Civil. Parte Geral. Mário Luiz Delgado e Jones Figueiredo Alves (Coord.). São Paulo: Método, 2007.

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