Opinião

Caso Brumadinho e a responsabilidade penal da pessoa jurídica

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7 de fevereiro de 2023, 19h27

Em janeiro de 2019, uma tragédia ambiental impactava todo o país. Uma barragem da mineradora Vale se rompia na cidade de Brumadinho, localizada na região metropolitana de Belo Horizonte. O vasto lamaçal decorrente do acidente atingiu diversas residências no local e causou a morte de aproximadamente 270 pessoas.

Presidência da Republica
Presidência da República

Quase um ano após o ocorrido, o Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG) ofereceu denúncia contra 16 pessoas físicas, conferindo a elas a prática do delito de homicídio qualificado (270 vezes) e dos crimes contra a fauna e a flora, além de crime de poluição. A denúncia também incluía duas pessoas jurídicas, essas responsáveis por crimes contra a fauna e a flora e ao crime de poluição.

A denúncia fora recebida e a ação penal tramitou na 2ª Vara Cível, Criminal e de Execuções Penais da comarca de Brumadinho. No decorrer do trâmite processual, diversos recursos foram interpostos pela defesa dos acusados, os quais suscitavam conflito de competência, apontando que a ação deveria ser processada e julgada pela Justiça Federal.

Foi quando no ano de 2021, o vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Olindo Menezes, proferiu decisão monocrática no RHC nº 151.405/MG, dando provimento ao recurso da defesa para que a ação tramitasse na Justiça Federal.

O MP-MG recorreu do recurso ao Supremo Tribunal Federal e obteve a cassação da decisão do STJ, mantendo a competência na Justiça Estadual.

Ocorre que em dezembro de 2022, após novo recurso da defesa dos réus, o caso foi à julgamento pela 2ª Turma do STF, que por maioria dos votos, decidiu que o órgão competente para processar e julgar a ação penal em questão seria a Justiça Federal. Sendo assim, em janeiro de 2023, a Justiça Federal recebeu a denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal, o qual optou por ratificar os termos daquela oferecida pelo Parquet estadual.

Daí, surgem certos imbróglios jurídicos, especificamente no que tange o questionamento: A pessoa jurídica pode ser autora de um delito criminoso de acordo com a legislação brasileira?

O atual Código Penal brasileiro não nos fornece, em específico, o conceito de crime, iniciando sua codificação apenas indicando as espécies punitivas que recaem sobre os autores de delitos criminosos. Assim, recorremos à doutrina quando se trata da definição de "crime". Rogério Greco nos traz três conceituações, tendo a primeira sido dividida em dois aspectos, formal e material, traduzindo-se [1], "sob o aspecto formal, crime seria toda conduta que atentasse, que colidisse frontalmente com a lei penal editada pelo Estado". "Considerando-se o seu aspecto material, conceituamos o crime como aquela conduta que viola os bens jurídicos mais importantes."

A terceira e última conceituação é a majoritariamente adotada pela doutrina, em que abrange o conceito analítico de crime, dividindo este em fato típico, ilícito e culpável, assim como rege a teoria tripartida.

Em relação à responsabilidade penal da pessoa jurídica, importa atentar aos requisitos presentes no conceito analítico, especificamente, ao da culpabilidade.

De acordo com a teoria finalista do Direito Penal, integram a culpabilidade a imputabilidade, a potencial consciência sobre a ilicitude do fato e a exigibilidade de conduta diversa. Veja que o segundo requisito, qual seja a potencial consciência sobre a ilicitude do fato, imediatamente se esbarra na conhecida "Teoria da Ficção Legal", oriunda do Direito Civil e fundada por Savigny [2], a qual afirma que a pessoa jurídica é um ente fictício, ou seja, não possui vontade própria, assim, à luz dessa teoria, não há como pessoas jurídicas serem autoras de crimes, uma vez que não preenchem os seus requisitos legais.

Em contrapartida, sob a ótica da "Teoria da Realidade", a pessoa jurídica não se trata de um ente fictício, sendo dotada de personalidade real. No entanto, o ordenamento jurídico brasileiro adota uma teoria mista, tendo sido majoritariamente aceita pela doutrina e pela jurisprudência. Nessa, a pessoa jurídica é concebida como um ente ficto em sua criação, mas que contêm atuação própria no meio social em que está inserida.

Entretanto, quando analisamos a legislação penal, não se tem as mesmas diretrizes. A doutrina não difere de posicionamentos quando se trata dos sujeitos ativos do crime, assim como define Nucci [3]: "É a pessoa que pratica a conduta descrita pelo tipo penal. Animais e coisas não podem ser sujeitos ativos de crimes, nem autores de ações, pois lhes falta o elemento vontade".

Valendo-se do referido ensinamento, não há como responsabilizar penalmente as pessoas jurídicas, uma vez que não possuem consciência individual e, portanto, não contém dolo, tampouco culpa. Ocorre que a Constituição Federal dispõe de artigos que tratam sobre a responsabilização destes entes, à exemplo dos artigos 173, § 5 [4], e 225, § 3 [5]. Mas veja, estes dispositivos direcionam às pessoas jurídicas apenas sanções cíveis e administrativas, seguindo as orientações do próprio Direito Civil e Administrativo. Além do mais, a CF/88 não se contrapõe a norma legal disposta no artigo 5°, XLV, em que afirma a responsabilidade penal ser inerente aos seres humanos.

Contudo, lembra-se que após o caso de Mariana e Brumadinho, muito se discutiu à respeito dessa espécie de responsabilidade criminal. Coincidentemente, as duas tragédias versavam sobre o Direito Ambiental, o que logo nos remete a legislação específica, qual seja a Lei nº 9.605/98, que cuida dos crimes contra o meio ambiente. Os artigos 2º e 3º dessa norma logo nos traz ao caso da responsabilidade da pessoa jurídica:

"Art. 2.º Quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes previstos nesta Lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida da sua culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la.
Art. 3.º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.
Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo."

É notório que os artigos mencionados imediatamente vão de encontro ao famigerado societas delinquere non potest. Mas como bem destacou Luiz Regis Prado [6], a edição da lei dos crimes ambientais buscou proximidade ao posicionamento do Direito francês, o qual abrange essa especificidade de responsabilidade aos crimes ambientais. Contudo, a inspiração neste modelo falhou quando deixou de utilizar do princípio da especialidade, restando vaga as sanções penais em que estariam sujeitas as pessoas jurídicas, assim como descreveu o autor: "Não há como, em termos lógico-jurídicos, romper princípio fundamental como o da irresponsabilidade criminal da pessoa jurídica, ancorado solidamente no sistema de responsabilidade de pessoa natural, sem fornecer, em contrapartida, elementos básicos e específicos conformadores de um subsistema ou microssistema de responsabilidade penal, restrito e especial, inclusive com regras processuais próprias".

De fato, o imbróglio jurídico desse modelo de responsabilidade penal tem como principal dificuldade a ausência de legislações ordinárias e infraconstitucionais que versem especificamente sobre o assunto. Países como o Canadá, Inglaterra, Austrália, entre outros, já contem em seus ordenamentos a pessoa jurídica como sujeito ativo do crime.

O que há de se perceber é que o Brasil ainda esconde as imputações penais da pessoa jurídica em legislações extravagantes, não adotando um posicionamento próprio. A jurisprudência aos poucos vem considerando a responsabilidade penal da pessoa jurídica como uma realidade, mas ainda lhe falta concretude e especificidade para correlacionar o Direito Penal neste âmbito, tendo em vista sua concepção como sendo ultima ratio do Estado.


[1] Greco, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral, volume I/Rogério Greco – 22ª ed – Niterói, RJ: Impetus, 2020.

[2] Savigny. Traité de droit romain, § 85

[3] NUCCI, Guilherme de S. Manual de Direito Penal. Grupo GEN, 2022.

[4] § 5º. A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular. CF/88.

[5] § 3º. As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. CF/88.

[6] PRADO, Luiz R. Direito Penal do Ambiente. Grupo GEN, 2019.

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