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A necessidade de estabilidade para a legitimidade das decisões judiciais

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6 de fevereiro de 2023, 8h00

O presente artigo tem por objetivo abordar um tema, a nosso ver, tortuoso e um pouco relegado pela doutrina: a necessidade de maior estabilidade dos precedentes judiciais vinculantes e procedimentos cautelosos para sua revogação.

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Afinal, após a elaboração de um precedente, em especial nos casos dos precedentes tidos como "fortes" ou obrigatórios, as decisões devem ser seguidas e, até mesmo, festejada pelos Tribunais, de modo a manter estável a sua própria jurisprudência.

Entretanto, o volume mórbido de processos e recursos tem permitido a inconstância na jurisprudência, inclusive contra precedentes firmados. Os Tribunais Superiores, ao contrário do que seria desejável, acabam produzir contradições nos entendimentos firmados, causando verdadeira insegurança jurídica.

Neste breve artigo, sem pretender esgotar a questão, iremos abordar a questão da necessidade de preservação da jurisprudência e da necessidade de dar-se maior atenção ao tema, com vistas a obter a tão desejada estabilidade jurídica.

No Brasil, a jurisprudência passou a ser reconhecida como fonte formal do direito, mas, o seu papel sempre foi relegado a um nível mais secundário, juntamente com os costumes e a analogia1. Para nós, a fonte primária, por excelência, sempre foi a norma legal escrita, e não a norma interpretada2.

Contudo, especialmente após a promulgação do novo Código de Processo Civil, e diante da necessidade de uniformização das decisões judiciais, em atenção aos princípios da isonomia e da segurança jurídica, verificou-se uma verdadeira aproximação com o sistema da common law, acarretando o desenvolvimento da jurisprudência como fonte imediata do direito3.

O Código de Processo Civil de 2015 criou algumas ditas "categorias" de precedentes. Como defendido por Patrícia Perrone e Luis Roberto Barroso4, o sistema de precedentes do novo CPC trouxe uma gradação de eficácia, na seguinte linha: (i) precedentes com eficácia normativa; (ii) precedentes com eficácia meramente persuasiva; e (iii) precedentes com eficácia intermediária. Nessa linha, os precedentes com eficácia normativa seriam os precedentes "em sentido forte, correspondentes aos julgados e entendimentos que devem ser obrigatoriamente observados pelas demais instâncias e cujo respeito enseja reclamação".

A ideia precípua é criar uma regra abstrata, aplicável aos casos futuros que versem sobre a mesma matéria. Como disserta Taruffo5 "O precedente fornece uma regra (‘universalizável’, como se disse) que pode ser aplicada como critério de decisão no caso sucessivo em função da identidade ou, como acontece em regra, da analogia entre os fatos do primeiro caso e os fatos do segundo caso. Naturalmente, a analogia das duas fattispecie concretas não é determinada in re ipsa, mas é afirmada ou excluída pelo juiz do caso sucessivo conforme este considere prevalentes os elementos de identidade ou os elementos de diferença entre os dois casos. É, portanto, o juiz do caso sucessivo que estabelece se existe ou não existe o procedente e desta forma — por assim dizer — 'cria' o precedente".

Nesta linha de pensamento, é de suma importância que os Tribunais, conforme determina o CPC, consigam manter estável a sua jurisprudência, preservando a força dos precedentes, em especial nos casos dos precedentes obrigatórios.

Contudo, o que se vê atualmente é uma revisão constante das decisões já tomadas, sem observar, na prática, nenhum critério dogmático para a superação da jurisprudência (overruling).

A revisão dos precedentes, portanto, deve observar um tempo de amadurecimento para a tese jurídica em si. É necessário, portanto, que a tese jurídica passe por um período de maturação, para o seu pleno desenvolvimento, de modo a garantir que a decisão que nela se embase seja uma decisão justa. E a mesma cautela deve pautar a reforma de temas sumulados ou da jurisprudência já firmada.

Como já defendido pelos professores Marinoni e Mitidiero6 em obra obrigatória sobre o tema, a ideia de processo justo deve ser pensada a luz de uma adequada organização das cortes que integram o sistema responsável pela prestação de tutela adequada, efetiva e tempestiva de direito. Esta ideia passa, necessariamente, por dois vieses: (i) a perspectiva interna, no sentido de viabilizar uma adequada distribuição de competência, racionalizando a atividade judiciária; e (ii) uma perspectiva externa que deverá ser verificada sob a ótica do denominado microssistema de precedentes.

Na análise do item (ii), tem-se que, no modelo judiciário atual, é imprescindível que, cada vez mais, tenhamos um olhar das Cortes Supremas (STJ e STF) como vinculadas uma a compreensão menos individual das decisões e de maior da sua dimensão enquanto viabilizadores de uma unidade ao Direito, na qualidade de formadoras de precedentes. Nesse sentido, Daniel Mitidiero7 afirma que "o Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça devem ser pensados como cortes de interpretação e não como cortes de controle, como cortes de precedentes e não como cortes de jurisprudência, sendo dotados de meios idôneos para a consecução da tutela do direito em uma dimensão geral de forma isonômica e segura".

Por outro lado, para que se possa, a nosso ver, viabilizar o entendimento das Cortes Superiores como cortes de interpretação, é imperiosa a atuação delas uma análise mais acurada sobre a formação/criação do precedente ou sua reforma.

Não se pode mais admitir, no nosso estágio de formação e à luz das regras constitucionais e dos princípios processuais, que o Direito vire um mero "jogo de sorte" no âmbito das Cortes Superiores em Brasília.

Esse tipo de atuação foge, por completo, do que foi pretendido pelo novo Código de Processo Civil. Se queremos, e no nosso entender devemos buscar, que o nosso sistema se aprimore cada vez mais no sentido de convergir para um sistema de precedentes propriamente dito, é necessário que as decisões que serão utilizadas como precedentes sejam decisões judiciais amadurecidas e que detenham um caráter verdadeiramente dogmático.

Assim, a utilização de mecanismos abruptos para a revisão dos precedentes, como questões de ordem ou afetações inesperadas, sem a obediência aos critérios legais de modificação da jurisprudência e o indispensável amplo debate, com a modificação do entendimento nas Cortes Superiores, não pode ser aceita pelo Poder Judiciário.

É imprescindível, na atividade jurisdicional de formação do precedente judicial, que o Julgador (ou o órgão julgador) (a) analise todas as alegações contrapostas; (b) faça uma verificação racional sobre as teses doutrinárias relativas ao tema; (c) supere se for o caso o entendimento anterior sobre a questão; e (d) permita também conforme a hipótese a participação de terceiros que possam contribuir para a decisão (amicus curie8).

Dierle Nunes e Alexandre Melo Franco Bahia9, em texto crítico sobre a forma de aplicação dos precedentes no Brasil, afirmam que "Para que tal desiderato se implemente, haverá́ a absoluta necessidade de respeito ao iter de formação das decisões e um contraditório dinâmico que, no CPC-2015, se apresenta numa série de dispositivos: nos arts. 10 e 933, passando pela busca de escolha de causas representativas com “abrangente argumentação e discussão” (art. 1.036, §6), do respeito da regra da congruência e não surpresa que determina ao relator (em recursos repetitivos) a promoção da identificação com precisão da questão a ser submetida a julgamento e a vedação ao órgão colegiado decidir questão não delimitada (arts. 1.037, I e §2o), assegurando a manifestação dos amici curiae (arts. 983, caput, e 1.038, I) e a realização de audiências publicas (arts. 983, §1o e 1.038, II)".

Veja-se, em linha de análise comparativa, que o processo de formação das leis10 é complexo e tem por base a representação inerente às democracias contemporâneas. No nosso país, no qual é adotado o sistema bicameral, todo e qualquer projeto de lei precisa ser aprovado tanto pela Câmara dos Deputados, quanto pelo Senado Federal, conforme iniciativa. A lei, nesse sentido, é o resultado de um processo legislativo democrático, e a sua legitimidade advém da representação política exercida pelos Legisladores eleitos pelo povo.

Nessa perspectiva, com a inclusão dos precedentes, como aqui se defende, como fonte normativa primária do Direito, altera-se, também, a legitimidade democrática do próprio sistema jurídico, já que se passa a ser gerado pelo Poder Judiciário11.

Assim, também sob esta ótica, deve-se pensar na importância na formação democrática e transparente do precedente, sendo aqui, mais do que no processo judicial individual, absolutamente forçosa a necessidade de fundamentação da decisão judicial hábil à formação do precedente ou a sua reforma.

É imprescindível, enfim, um aprofundamento teórico dogmático da matéria levada a julgamento para que, com base em teorias contrapostas, seja feita uma análise da questão jurídica de maneira racional, garantindo-se a estabilidade da jurisprudência.


1 ZANETI JR., Hemes. Precedentes (treat like cases alike) e o novo Código de Processo civil. RePro nº 235, p 298/299.

2 Nessa linha, Teresa Arruda Alvim: “Nos sistemas de civil law, normalmente precedentes têm seu valor num conjunto de outras decisões no mesmo sentido, que demonstram haver um certo consenso a respeito da matéria decidida. Excepcionalmente, no civil law, faz-se menção a uma decisão judicial, qualificando-a como um precedente” (ARRUDA ALVIM, Teresa. Precedentes na evolução do direito. Direito Jurisprudencial / Teresa Arruda Alvim, coordenação. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 16)

3 Em sentido contrário, na linha de que no nosso sistema não seria o ideal considerar a jurisprudência como fonte formal do Direito, pois isso poderia ir de encontro com a sistemática dos países de tradição romano-germânica cite-se CÔRTES, Osmar Mendes Paixão. Recurso repetitivos, súmula vinculante e coisa julgada. Brasília: Gazeta Jurídica, 2018.

4 BARROSO, Luis Roberto; MELLO, Patricia Perrone Campos. Trabalhando com uma nova lógica: a ascensão dos precedentes no direito brasileiro. Revista da AGU, a. 15, nº 3, jul-set. 2016, p. 11-13.

5 No original: “il precedente fornisce uma regola (universalizzable, come già si è detto) che puô essere applicata come critério di decisione nel caso sucessivo in funzione dela identità o – come accade di regola – dell’analogia tra i fatti del primo caso e i fatti del secondo caso. Naturalmente l’analogia dele due fattispecie concrete non è data in re ipsa, e viene affermata o esclusa dal giudice del caso sucessivo a seconda che constui ritenga prevalenti gli elementi di identità o gli elementi di differenza tra i fatti dei due casi. È dunque il giudice del caso sucessivo che stabilisce se existe o non existe il precedente, e quindim – per così dire – ‘crea’ il precedente.” (TARUFFO, Michele. Precedente e giurisprudenza., Op. cit., p. 13)

6 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Repercussão geral no recurso extraordinário. 3. ed. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 15.

7 MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas : do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. 3. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 93.

8 Sobre a imprescindibilidade da participação do amicus curie na formação do precedente, remetemos à SCARPINELLA BUENO. Cassio. Amicus Curiae no Processo Civil Brasileiro: um terceiro enigmático. São Paulo : Saraiva, 3ª ed, 2012.

9 NUNES, Dierle, BAHIA, Alexandre Melo Franco. Precedentes no CPC-2015: por uma Compreensão Constitucionalmente Adequada do seu Uso no Brasil, Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro nº 57, jul./set. 2015, p. 22

10 Entende-se por processo legislativo um conjunto de atos, todos realizados pelos órgãos legislativos objetivando a formação das leis constitucionais, das leis complementares, das leis ordinárias, das resoluções e dos decretos legislativos (SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 38. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros editores, 2015).

11 “Com efeito, o processo de formação dos precedentes judiciais constitui importante objeto de estudo da sociologia jurídica principalmente da perspectiva da democratização do processo decisório. Interessa, sob o prisma sociológico, compreender como os atores sociais participam na formação dos precedentes judiciais e se suas intervenções são consideradas pelo órgão julgador na decisão judicial” (CATHARINA, Alexandre de Castro. Movimentos Sociais e a Construção dos Precedentes Judiciais. Curitiba: Juruá, 2015, p. 60).


Referências bibliográficas

ALEXIS, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. Tr. port. Zilda Hutchinson Schild Silva, São Paulo : Landy, 2001.

ARRUDA ALVIM, Teresa. Precedentes na evolução do direito. Direito Jurisprudencial / Teresa Arruda Alvim, coordenação. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2012

BARROSO, Luis Roberto; MELLO, Patricia Perrone Campos. Trabalhando com uma nova lógica: a ascensão dos precedentes no direito brasileiro. Revista da AGU, a. 15, nº 3, jul-set. 2016.

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NUNES, Dierle, BAHIA, Alexandre Melo Franco. Precedentes no CPC-2015: por uma Compreensão Constitucionalmente Adequada do seu Uso no Brasil, Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro nº 57, jul./set. 2015.

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ZANETI JR., Hemes. Precedentes (treat like cases alike) e o novo Código de Processo civil. RePro nº 235/2014.

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