Opinião

Licitações: o empate ficto da ME/EPP difere do empate real

Autor

  • Laércio José Loureiro dos Santos

    é mestre em Direito pela PUC-SP procurador municipal e autor do livro Inovações da Nova Lei de Licitações (2ª ed. Dialética 2023 — no prelo) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia (coord.: Marcelo Figueiredo Ed. Juspodivm 2023).

6 de fevereiro de 2023, 13h08

Em apertada síntese, o autor alemão Robert Alexy [1] faz referência à superioridade axiológica dos princípios em relação às normas.

A preferência da ME/EPP é uma norma e não um princípio devendo submeter-se aos princípios da vinculação ao edital, vedação ao enriquecimento sem causa e competitividade.

A interpretação de alguns operadores do direito de que a preferência seria um mero critério de desempate acarretaria a subversão do sistema axiológico descrito por Alexy, transformando-se uma norma (preferência da ME/EPP) num princípio que superaria os reais princípios aqui descritos.

Tal subversão axiológica ocorre com a interpretação gramatical e literal do artigo 44 da Lei complementar 123/2006 num empobrecimento das regras preconizadas por Carlos Maximiliano[2], já que a interpretação literal/gramatical é infinitamente mais restrita que a interpretação sistemática.

Interpretação sistemática
As regras sobre a preferência da ME/EPP estão assim previstas:

"Art. 44. Nas licitações será assegurada, como critério de desempate, preferência de contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte. (Vide Lei nº 14.133, de 2021
§ 1o Entende-se por empate aquelas situações em que as propostas apresentadas pelas microempresas e empresas de pequeno porte sejam iguais ou até 10% (dez por cento) superiores à proposta mais bem classificada.
§ 2o Na modalidade de pregão, o intervalo percentual estabelecido no § 1o deste artigo será de até 5% (cinco por cento) superior ao melhor preço.
Art. 45. Para efeito do disposto no art. 44 desta Lei Complementar, ocorrendo o empate, proceder-se-á da seguinte forma: (Vide Lei nº 14.133, de 2021)
I – a microempresa ou empresa de pequeno porte mais bem classificada poderá apresentar proposta de preço inferior àquela considerada vencedora do certame, situação em que será adjudicado em seu favor o objeto licitado;
II – não ocorrendo a contratação da microempresa ou empresa de pequeno porte, na forma do inciso I do caput deste artigo, serão convocadas as remanescentes que porventura se enquadrem na hipótese dos §§ 1o e 2o do art. 44 desta Lei Complementar, na ordem classificatória, para o exercício do mesmo direito;
III – no caso de equivalência dos valores apresentados pelas microempresas e empresas de pequeno porte que se encontrem nos intervalos estabelecidos nos §§ 1o e 2o do art. 44 desta Lei Complementar, será realizado sorteio entre elas para que se identifique aquela que primeiro poderá apresentar melhor oferta.
§ 1o Na hipótese da não-contratação nos termos previstos no caput deste artigo, o objeto licitado será adjudicado em favor da proposta originalmente vencedora do certame.
§ 2o O disposto neste artigo somente se aplicará quando a melhor oferta inicial não tiver sido apresentada por microempresa ou empresa de pequeno porte.
§ 3o No caso de pregão, a microempresa ou empresa de pequeno porte mais bem classificada será convocada para apresentar nova proposta no prazo máximo de 5 (cinco) minutos após o encerramento dos lances, sob pena de preclusão" (grifos nossos).

O artigo 44 da LC 123/06 teve interpretação autêntica pelo próprio estatuto da ME/EPP considerando o mencionado empate como uma ficção para que se assegure a afetiva apresentação economicamente mais vantajosa à administração pública. Ou seja, uma "chance a mais" para a ME/EPP apresentar proposta mais vantajosa ao poder público.

Em nenhum momento a referida lei complementar estabelece uma preferência pela simples razão de ser ME/EPP em detrimento da vantajosidade a ser buscada pela administração pública.

Nesse diapasão é o artigo 49, II da mesma LC 123/06:

"Art. 49. Não se aplica o disposto nos arts. 47 e 48 desta Lei Complementar quando: (Vide Lei nº 14.133, de 2021)
(…)
III – o tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte não for vantajoso para a administração pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado;"

Nesse sentido é o parecer da Zenite exarado para a Superintendência Regional da Receita Federal (10ª Região Fiscal) no sentido que na hipótese de empate real (não o ficto) deve haver sorteio entre todos os licitantes.

O parecer da Zenite[3] destacou:

"Em vista do exposto, conclui-se que havendo o empate real (não ficto) entre a proposta de uma microempresa e a oferta de uma grande empresa, a microempresa não será de plano considerada vencedora. Cumpre à Administração convocá-la para exercer o direito de preferência previsto pela Lei Complementar nº 123/06 e oferecer lance inferior. Se nenhuma licitante beneficiada por esse direito exercer essa prerrogativa, o desempate deverá ser feito nos moldes da Lei nº 8.666/93, o que, via de regra, exigirá o sorteio" (grifos nossos).

O mesmo parecer Igam exarado para a Câmara de Vereadores de Descalvado (SP), citando o TCE-SC em caso idêntico:

"Nesse diapasão, constata-se que, quando o objeto licitatório for a contratação de fornecimento de vale alimentação, e o edital prever a proibição de taxa negativa, não se pode aplicar as hipóteses de preferências contidas na LC 123/06, senão sempre será vencedora uma ME/EPP.
Com a proibição de apresentação de taxa negativa ocorrerá o empate na taxa mínima admitida de 0% (zero por cento), impossibilitando a apresentação de proposta de valor inferior pelas ME/EPP.
Assim, conclui-se que, no caso de proibição de apresentação de taxa de administração negativa, o sorteio deverá ocorrer entre todas as empresas licitantes o sorteio deverá ocorrer entre todas as empresas licitantes não se aplicando as regras da LC123/06, sob pena de isonomia e competitividade do certame" (destaques no original).

Ressalta-se ainda o disposto no artigo 49 do Estatuto das Micros e Pequenas Empresas [4] segundo o qual o referido tratamento diferenciado para MEs e EPPs poderão ser dispensados se não for vantajoso para Administração Pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contrato.

Também a jurisprudência do TCE-SP vai no mesmo diapasão:

"Ainda sobre essas disposições do Estatuto das Micro e Pequenas empresas que passaram a vigorar a partir das alterações do ano de 2014 (LCF nº 147/14), pelo art. 48, III, c.c. o art. 49, III, da LCF nº 123/06, ficou estabelecido que “deverá estabelecer, em certames para aquisição de bens de natureza divisível, cota de até 25% (vinte e cinco por cento) do objeto para a contratação de microempresas e empresas de pequeno porte” (g.n.), o que não se aplica caso “o tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte não for vantajoso para a administração pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado" (proc. 00012858.989.16-3. Tribunal Pleno – Seção Municipal. Seção: 3/8/2016. Conselheiro substituto: Valdenir Antônio Polizeli – grifos nossos).

Com a devida venia, a preferência estabelecida no artigo 44 da LC 123/06 deve ser interpretada em conjunto com seus respectivos incisos, com o artigo 45 e, também, com o artigo 49, II todos da mesma lei no sentido de que tal preferência somente será aplicado se for vantajoso para a administração pública.

A ausência de vantajosidade acarretará a aplicação de outros critérios de desempate, inclusive o sorteio nos termos do artigo 45 e artigo 3º §2º e incisos da Lei Federal 8.666/93

A interpretação meramente literal da preferência da ME/EPP prevista na Lei Complementar 123/06 conduziria à uma subversão axiológica que transformaria a preferência em mero privilégio das empresas de menor porte ao arrepio de outros princípios fundamentais para a administração pública, tais como a competitividade e a vedação ao enriquecimento sem causa.

A preferência é uma ficção que assegura à ME/EPP uma chance a mais em relação às demais empresas do mercado e não um critério que suplantaria a necessidade de oferta efetivamente vantajosa para a administração pública.

No caso de empate real, outros critérios deverão ser aplicados para o desempate sem nenhuma nova preferência. No caso da Lei Federal nº 14.133/21 os critérios serão aplicados homogeneamente a todos os licitantes, nos termos do artigo 60 não havendo a previsão de sorteio previsto na provecta e moribunda Lei Federal nº 8.666/93.


[1] "Teoria dos Direitos Fundamentais", Ed. Malheiros, tradução de Virgílio Afonso da Silva, abril de 2008, passim

[2] Hermenêutica e interpretação das normas”, Ed. Forense, 2001, passim.

[3] Parecer subscrito por Rodrigo V. Junkes.

[4] Art. 49. Não se aplica o disposto nos arts. 47 e 48 desta Lei Complementar quando:

I – os critérios de tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte não forem expressamente previstos no instrumento convocatório;

I – (Revogado); (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014) (Produção de efeito)

II – não houver um mínimo de 3 (três) fornecedores competitivos enquadrados como microempresas ou empresas de pequeno porte sediados local ou regionalmente e capazes de cumprir as exigências estabelecidas no instrumento convocatório;

III o tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte não for vantajoso para a administração pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado;

IV – a licitação for dispensável ou inexigível, nos termos dos arts. 24 e 25 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.

  1.  – a licitação for dispensável ou inexigível, nos termos dos arts. 24 e 25 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, excetuando-se as dispensas tratadas pelos incisos I e II do art. 24 da mesma Lei, nas quais a compra deverá ser feita preferencialmente de microempresas e empresas de pequeno porte, aplicando-se o disposto no inciso I do art. 48. (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014)

Autores

  • é mestre em Direito pela PUC-SP, procurador municipal e autor do livro, Inovações da Nova Lei de Licitações (2ª Ed. Dialética, 2.023) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia (Coordenador: Marcelo Figueiredo, Ed. Juspodivm, 2.023).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!