Público & Pragmático

Emenda Constitucional 113: insegurança jurídica na correção dos precatórios

Autores

  • Guilherme Benício de Castro Neto

    é advogado graduado pela Universidade Federal da Paraíba mestrando em Direito Administrativo Contemporâneo no IDP/Brasília e secretário legislativo-geral da Assembleia Legislativa da Paraíba.

  • Tomás Tavares de Alencar

    é formado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) advogado mestrando em Direito Administrativo no IDP especialista em Direito Eleitoral e Direito Administrativo com atuação expressiva em favor entes municipais e gestores públicos e presidente da Comissão de Direito Municipal da Ordem dos Advogados do Brasil — Seccional de Pernambuco.

5 de fevereiro de 2023, 8h00

No Direito Administrativo brasileiro, precatório se refere a uma requisição judicial ao presidente do tribunal vinculado à Fazenda Pública condenada ao pagamento de quantia certa, realizada pelo juiz da execução de sentença, por meio de ofício requisitório, a fim de que sejam expedidas as ordens de pagamento às respectivas repartições competentes em proveito do credor [1].

O sistema de execução de sentenças por quantia certa através da expedição de precatório é uma experiência brasileira única no mundo [2], ou seja, uma "jabuticaba" constitucionalizada pela primeira vez na Carta de 1934, abrangendo inicialmente apenas a Fazenda Pública Federal.

As Constituições que se sucederam mantiveram essa sistematização: a Carta de 1937 regulou mais claramente o procedimento; a Constituição de 1946 estendeu para todas as fazendas públicas esse regime; a de 1967 criou a obrigatoriedade da inclusão no orçamento de crédito necessário ao adimplemento do débito e delegava a competência para expedição do precatório ao órgão responsável pela sentença [3].

Após mais de 20 anos do regime autoritário, a Constituição Federal de 1988 consagrou o Estado de Direito Democrático; previu a soberania popular (artigo 1°, parágrafo único da CF/88); estabeleceu a separação dos Poderes, com autonomia do Poder Judiciário; e proclamou a universalidade da jurisdição [4], decorrendo desses princípios a norma prevista no caput do artigo 100, a qual determina que os pagamentos devidos por qualquer Fazenda Pública, em virtude de sentença judiciária, sejam feitos exclusivamente na ordem cronológica até o final do exercício seguinte se apresentados anteriormente até 1° julho, e após a Emenda Constitucional 114, até o dia 2 de abril.

Embora esta previsão de regularidade de pagamentos possua mais de 33 anos, na prática, não é totalmente cumprida e os débitos em atraso dos estados e municípios ainda crescem, atingindo um patamar de mais de R$ 125 bilhões de reais em 2019 [5], sendo a União Federal, até então, a pessoa de direito público que melhor conseguia honrar seus compromissos, mantendo-os em dia até o exercício financeiro de 2021.

Contudo, o crescimento dessa despesa prevista, de cerca de R$ 55 bilhões em 2021 para mais de R$ 89 bilhões [6], inicialmente, em 2022, fez com que o governo federal buscasse alternativas para não adimplir a totalidade desses valores e conseguir espaço fiscal para elevar outros gastos discricionários em ano eleitoral.

Entre essas ferramentas para reduzir o passivo com precatórios, veiculada na Emenda Constitucional 113, está a fixação da Selic como critério único de correção monetária e juros moratórios para todos os tipos de débitos, abolindo a existência dos juros de mora de forma autônoma, matéria que deve voltar a ser discutida no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

Nessa linha de intelecção, é possível vislumbrar na alteração em comento, prováveis inconstitucionalidades: lesionar o princípio da separação dos poderes (artigos 2° e 60, §4°, III, da CF/88); o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (artigo 5°, inciso XXXVI, da CF/88); o direito à propriedade (artigo 5°, inciso XXII, da CF/88); e direitos e garantias individuais (artigo 60, §4°, VI).

Essa alteração representa um enorme retrocesso no reconhecimento da eficácia das decisões do Poder Judiciário e na segurança jurídica, pois, em âmbito nacional, se discutiu na Suprema Corte, por mais de uma década, qual seria o correto índice de correção monetária aplicável aos débitos da Fazenda Pública com aptidão para captar os reais efeitos da inflação.

Sustentava-se a inconstitucionalidade do artigo 1°-F da Lei nº 9.494/97 (BRASIL, 1997), introduzido pela Lei nº 11.960/2009 (BRASIL, 2009), que fixava a taxa referencial da caderneta de poupança para atualização das dívidas não tributárias da Fazenda Pública, utilizada pelo governo federal como um artifício para reduzir o endividamento público.

O STF historicamente já possuía, há tempos, vários julgados que conduziam à inconstitucionalidade da TR, ou outro índice que não representasse de fato a inflação, como se extrai do voto do ministro Moreira Alves no julgamento da ADI n° 493, ainda no ano de 1992: […] o índice de correção monetária é um número-índice que traduz, o mais aproximadamente possível, a perda do valor de troca da moeda, mediante comparação, entre os extremos de determinado período, da variação do preço de certos bens (mercadorias, serviços, salários, etc.), para a revisão do pagamento de obrigações que deverá ser feito na medida dessa variação. […] É, pois, um índice que se destina a determinar o valor de troca da moeda, e que, por isso mesmo, só pode se calculado com base em fatores econômicos exclusivamente ligados a esse valor. Por isso, é um índice neutro, que não admite, para seu cálculo, se levem em consideração fatores outros que não os acima referidos.

Mais recentemente, no julgamento das ADIs nº 4.357 e 4.425, o Supremo Tribunal Federal reiterou tal compreensão ao pontuar inidoneidade da remuneração da caderneta de poupança para mensurar o fenômeno inflacionário, como ficou registrado na ementa, pois não refletia os efeitos da variação dos preços: […] a inflação, fenômeno tipicamente econômico-monetário, mostra-se insuscetível de captação apriorística (ex ante), de modo que o meio escolhido pelo legislador constituinte (remuneração da caderneta de poupança) é inidôneo a promover o fim a que se destina (traduzir a inflação do período).

Dessa forma, o STF julgou inconstitucional o artigo 5º da Lei n° 11.960/2009, que alterou o artigo 1º-F da Lei nº 9.494, o qual previa o índice de correção monetária dos débitos da fazenda pública conforme a remuneração da caderneta de poupança. Contudo, a questão não restou pacificada, de modo que, mesmo após a decisão nas ADIs 4.357 e 4.425, diversos juízes e tribunais continuaram a aplicar a taxa referência (TR) ou os índices da caderneta de poupança com a finalidade de atualização monetária em razão da incerteza quanto à modulação dos efeitos da decisão da Suprema Corte.

A celeuma judicial só chegou a um fim após o julgamento dos embargos de declaração no RE 870.947/SE (Tema 810) com repercussão geral. Neste processo, o STF entendeu pela inconstitucionalidade da TR como critério de correção monetária dos débitos públicos por violar o direito à propriedade, previsto no artigo 5º, inciso XXII, da CF/88, pois o respectivo índice não é capaz de manter o valor da moeda. Ou seja, não servia aos fins para os quais foi previsto: a correção monetária, determinando assim a aplicação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA-E).

Dessa forma, após mais de uma década de grande embate no âmbito judicial, a Emenda Constitucional 113/2021 revisou as decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal nas ADIs 4.357 e 4.425, bem como no RE 870.947/SE, com a finalidade de lesar os credores por meio do estabelecimento de índice de correção monetária que não capta o real efeito inflacionário e é administrado pelo Conselho de Política Monetária, vinculado ao Banco Central, e em última análise, ao próprio governo federal.

Assim, é possível que o Banco Central e o governo possam provocar direta ou indiretamente uma diminuição do valor real dos créditos com o passar do tempo e o enriquecimento ilícito do próprio Estado em detrimento dos credores de precatórios alimentares, sobretudo, servidores públicos.

Apenas para demonstrar na prática a situação narrada, se um credor tivesse um precatório a ser atualizado de agosto de 2020 até agosto de 2021 pelo critério unicamente de correção monetária decidido pelo STF nas ADIs 4.357 e 4.425 e no RE 870.947/SE o acumulado, medido pelo Índice de Preços Amplo ao Consumidor (IPCA), seria de 9,68%, sem ainda a incidência de juros legais; se o precatório fosse atualizado pela Selic, no mesmo período, o acumulado seria de apenas 3,96%, demonstrando o caráter lesivo de tal mudança.

Fazendo uma análise ainda mais abrangente e um recorte temporal mais exato, basta realizarmos um cálculo simples: suponhamos que em um exemplo hipotético a União Federal devesse judicialmente R$ 1.000,00 a um cidadão em 1/12/2010; se atualizássemos esses valores conforme o IPCA e realizássemos a incidência de juros nos termos definidos pelo STF, essa dívida equivaleria a R$ 3.155,31 em 1/12/2021. Contudo, se pegássemos esses mesmos R$ 1.000,00 e utilizássemos apenas Selic como critério de atualização, teríamos na mesma data apenas R$ 1.917,00 [7], demonstrando-se mais uma vez as perdas que serão suportadas pelos credores e o enriquecimento da administração ao não adimplir seus débitos.

Portanto, a promulgação da Emenda Constitucional 113/2021 sob tal aspecto rompe com uma das finalidades do direito: conferir previsibilidade e segurança às relações entre cidadãos e o Estado. Um novo capítulo de discussão jurídica a respeito da correção monetária dos precatórios deve ser aberto e mais uma vez os credores correm risco de verem seus créditos, reconhecidos por sentença judicial transitada em julgado, serem corroídos pelo fenômeno da inflação.

 


Referências

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, Emenda Constitucional n° 113 de 8 de dezembro de 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc113.htm. Acesso em 27 de outubro de 2022.

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, Emenda Constitucional n° 114 de 16 de dezembro de 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc114.htm. Acesso em 27 de outubro de 2022.

BRASIL. Lei nº 11.960, de 29 de junho de 2009. Brasília, DF: Presidência da República, 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11960.htm. Acesso em: 28 out. 2021.

BRASIL. Lei nº 9.494, de 10 de setembro de 1997. Brasília, DF: Presidência da República, 1997. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9494.htm. Acesso em: 28 out. 2021.

 

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4.357/DF. Relator: min. Ayres Britto. Data de julgamento: 14/3/2013. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6812428. Acesso em: 28 out. 2021.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4.425/DF. Relator: min. Ayres Britto. Data de julgamento: 14/3/2013. Brasília, 2013. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=5067184. Acesso em: 28 out. 2021.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 493/DF. Relator: min. Moreira Alves. Data de julgamento: 25/6/1992. Disponível em: http://www.memphissoftware.com.br/livros/stftr.pdf. Acesso em: 28 out. 2021.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 870.947/SE. Relator: min. Luiz Fux. 2017. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=14080728. Acesso em: 28 out. 2021.

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[1] BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil (promulgada em 05 de outubro de 1988) Volume VI, Tomo II. 2ª ed. São Paulo: Editora Saraiva. 2001.

[2] DANTAS, Francisco Wildo Lacerda. O sistema do precatório. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, nº 22, p. 61-102, 1998.

[3] MARQUES, Bianca Cardoso. Sistema de precatório brasileiro e a (in)efetividade das decisões judiciais. 2015. Dissertação (mestrado em Saúde da Família) – Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, 2015.

[4] JUSTEN FILHO, Marçal. Estado democrático de direito e responsabilidade civil do Estado: a questão dos precatórios. Revista de Direito Público da Economia, Belo Horizonte, v. 5 nº 19, p. 159-208, 2007.

[5] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Mapa anual dos precatórios 2019. 2020. 1 painel interativo. Disponível em: https://paineisanalytics.cnj.jus.br/single/?appid=24bb0aae-4341-48e7-b3b5-3606607894c4&sheet=60a7540d-d58d-43af-a15e-fa179c7a5233&lang=pt-BR&opt=ctxmenu,currsel. Acesso em: 27 de outubro de 2022.

[6] PODER DATA. Governo terá de pagar R$ 89 bilhões de dívidas judiciais em 2022. https://www.poder360.com.br/governo/governo-tera-de-pagar-r-89-bilhoes-em-dividas-judiciais-em-2022/. Acesso em 27 de outubro de 2022.

Autores

  • é advogado graduado pela Universidade Federal da Paraíba, mestrando em Direito Administrativo Contemporâneo no IDP/Brasília e secretário legislativo-geral da Assembleia Legislativa da Paraíba.

  • é formado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), advogado, mestrando em Direito Administrativo no IDP, especialista em Direito Eleitoral e Direito Administrativo, com atuação expressiva em favor entes municipais e gestores públicos, e presidente da Comissão de Direito Municipal da Ordem dos Advogados do Brasil — Seccional de Pernambuco.

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