Opinião

Democracias líquidas e descompasso entre direito formal e direito substancial

Autor

  • Reis Friede

    é desembargador federal diretor-geral da Escola de Magistratura Federal da 2ª Região (biênio 2023/25) ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21) mestre e doutor em Direito e professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).

4 de fevereiro de 2023, 6h07

A pseudodemocracia brasileira, alternativamente muito bem rotulada como democracia líquida, democracia de fachada ou mesmo democracia meramente formalizante — a exemplo de tantas outras latino-americanas —, também se caracteriza (em maior ou menor grau) pelo absoluto descompasso entre o direito formal, descrito, por vezes até de modo extenuante, nas inúmeras leis, consolidações, códigos e na própria Constituição, e o direito substancial (real e verdadeiro), efetivamente aplicado pelo Estado e, igualmente, entre os particulares, em suas relações privadas.

Uma das maiores provas desse inconteste fato é facilmente constatada no reconhecido distanciamento entre os Princípios Gerais do Direito (expostos, através de formidáveis teorias, na legislação vertente) e a aplicação cotidiana dos mesmos.

Por exemplo, afirma-se (descritivamente), com extrema veemência, em todos os textos legais (sem qualquer exceção), a máxima segundo a qual "todos são inocentes até que se prove a sua correspondente culpa". Todavia, na vida real brasileira — com especial destaque — opera-se justamente o oposto: "todos são presumivelmente culpados até que cada um possa comprovar, de modo inequívoco, a sua inocência".

Essa assertiva é tão genuína que o próprio Ministério Público, muitas vezes de forma até mesmo induzida ou inconsciente, acredita que, se o réu não consegue provar sua inocência, resta evidente que ele é culpado.

O próprio cidadão, bastante comumente (e por inequívoco vício cultural), atribui a prolação de uma sentença de absolvição, por falta de provas, como uma inconteste comprovação de incompetência dos órgãos investigativos e acusatórios que, no escopo deste contexto analítico, não souberam comprovar a evidente culpa do réu, posto que, para o senso comum, praticamente não existem inocentes. Neste sentido, resta sempre conclusivo para o conjunto da sociedade (em sua maioria) que todos são corruptos e os poucos inocentes (que, excepcionalmente, existem) o são apenas e tão somente pela correspondente falta de oportunidade de não terem se corrompido.

E não se trata aqui de uma simples aplicação, invertida, do princípio epigrafado (reputado universal no mundo democrático) por parte tão somente do Estado, considerando que, mesmo em relações estritamente privadas (ou naquelas em que envolvem o cidadão e agentes públicos), a simples "palavra" do indivíduo brasileiro é absolutamente irrelevante, em função da imperiosa necessidade de apresentação de provas documentais, com o correspondente reconhecimento de firma (e todos os demais tipos de burocracias cartorárias redundantes) para que se possa, muitas vezes, apenas e tão somente, comprovar que o nome que você afirma ter é, de fato, o seu nome verdadeiro. Não é, portanto, sem razão que a falsificação, a corrupção e tantos outros métodos reativos à esta realidade se apresentam com grande constância (e mesmo veemência), considerando que, em muitos casos, é muito mais fácil apresentar um documento falsificado (que cumpre com mais rigor e precisão os regulamentos formais, aparentando, por consequência, ser dotada de maior credibilidade) do que um documento verdadeiro e oficial que muitas vezes, aos olhos da autoridade ou mesmo dos particulares, simula não ostentar a verdade retratada. Destarte, a aparência (e particularmente o excessivo formalismo cartorário) representa, para a cultura brasileira, algo (supreendentemente) muito mais importante do que a substância material e a verdade real.

Em várias situações cotidianas, o burocrata verde e amarelo prefere — mesmo reconhecendo não se tratar de algo verdadeiro e crível — o documento que se apresenta dotado de todos os requisitos a que ele está obrigado a exigir, do que seu correspondente original, mesmo que este venha a simplesmente comprovar uma pseudo verdade, posto que a forma é, no Brasil (de forma singular), muito mais importante que a substância.

O servidor público, de modo geral (até por imposição cultural), não está (sinceramente) preocupado (e os brasileiros de modo geral também não estão) com a verdade real e sim (e muito particularmente) com o cumprimento rigoroso dos inúmeros (e muitas vezes desconexos e ilógicos) regulamentos normativos, como se não entendesse que as leis (de modo geral) são constituídas para serem interpretadas dentro de seu contexto finalístico e não na literalidade estrita de seus comandos, edificando (e constantemente reafirmando), desta feita, a concepção organicista segundo a qual todos os cidadãos nacionais são pessoas completamente desprovidas de um mínimo de inteligência racional e, portanto, necessitam (em qualquer circunstância e de modo permanente) da tutela estatal.

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