Opinião

Foi golpe sim!: as 'pedaladas fiscais' de Dilma e o constitucionalismo abusivo

Autor

  • Pedro Estevam Alves Pinto Serrano

    é bacharel mestre e doutor em Direito do Estado pela PUC-SP com pós-doutoramento em Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e em Direito Público pela Université Paris Nanterre. Professor de Direito Constitucional e de Teoria do Direito na graduação no mestrado e no doutorado da Faculdade de Direito da PUC-SP.

4 de fevereiro de 2023, 12h54

Ronald Dworkin, o maior pensador do direito anglo-saxão da segunda metade do século 20 e do início do século 21, escreveu em 1999 um artigo para o periódico The New York Review intitulado "A Kind of Coup" (em tradução livre, "Um Tipo de Golpe"), no qual valeu-se da palavra "golpe" para se referir à hipótese do impeachment inconstitucional, banalizado e utilizado fora de situações de extrema emergência e gravidade.

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O autor chegou a valer-se de uma figura de linguagem para comparar a excepcionalidade do impeachment ao uso da arma nuclear numa guerra: ambos destinados apenas para uma situação de extrema gravidade e emergência.

A banalização do impeachment — isto é, sua utilização em questões menores, cotidianas, de meras ilegalidades ou inconstitucionalidades, que são indesejáveis, mas podem ocorrer no cotidiano da administração pública — é uma forma de usar de um instituto criado pela Constituição para golpeá-la. Atualmente, os juristas norte-americanos chamam isso de constitucionalismo abusivo.

A Constituição de 1988, no Brasil, segue a mesma linhagem. No seu artigo 85, ela não indica como razão jurídica o impeachment a mera ilegalidade ou inconstitucionalidade. Ela usa a expressão "atentar contra" a Constituição. Ou seja, exige-se uma conduta extremamente grave.

Da conjunção do presidencialismo com o regime democrático impõe-se a exigência de gravidade dolosa. Possíveis irregularidades em atos meramente contábeis e ilegalidades não justificam, à luz da determinação constitucional, o impeachment do presidente da República.

O impeachment possui duas dimensões: uma jurídica e uma política. A dimensão jurídica é vinculada: deve haver a presença do crime de responsabilidade. A política implica que, mesmo havendo o crime de responsabilidade, o Legislativo pode, discricionariamente, deixar de aplicar a sanção de impeachment. Ou seja, ao contrário da Justiça penal, ele não está obrigado a aplicar a sanção quando houver o crime de responsabilidade.

Destaque-se, aqui, que há um erro em interpretar a Constituição à luz da vetusta lei 1.079/1950, não o contrário. As condutas elencadas na lei só podem ensejar impeachment se possuírem a gravidade que a Constituição determina.

No regime presidencialista, o mandato não pode ser interrompido por mero voto de desconfiança do Legislativo. Ademais, não se pode aplicar a regra da culpa grave para, num equivocado mecanismo hermenêutico de interpretação da Constituição pela lei, entender-se que ela bastaria para o impeachment.

Assim considerando, jamais pode-se ter que "pedaladas fiscais", práticas contábeis que sempre foram adotadas por todos os governantes e voltaram a ser exercitadas depois do governo Dilma Rousseff (PT), poderiam ensejar o impeachment da ex-presidente, inclusive por atos que ela pessoalmente não praticou.

No caso da ex-presidente Dilma, não houve crime de responsabilidade em sua dimensão vinculada ou jurídica, mas mesmo assim o Parlamento aplicou a sanção de impeachment — e o Judiciário silenciou a respeito. Segundo as lições de Ronald Dworkin, isso é golpe. Não foram os progressistas brasileiros que criaram a expressão "golpe" para designar esse tipo de situação. Foi um dos maiores juristas de nossa história. Não há outra interpretação que possa decorrer de nossa Constituição. Foi golpe sim!

*Artigo originalmente publicado na Folha de S.Paulo.

Autores

  • é bacharel, Mestre e Doutor em Direito do Estado pela PUC/SP com Pós-Doutoramento em Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em Ciência Política pelo Institut Catholique de Paris e em Direito Público pela Université Paris-Nanterre; Professor de Direito Constitucional e de Teoria do Direito na Graduação, no Mestrado e no Doutorado da Faculdade de Direito da PUC/SP e advogado.

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