Diário de Classe

Espiando a democracia através do espelho trincado: será possível?

Autores

  • Francisco Kliemann a Campis

    é mestrando em Direito pela Unisinos bolsista do programa de excelência da Capes membro do Dasein — Núcleo de estudos Hermenêuticos e advogado.

  • Claudia Ernst P. Rohden

    é doutora em Direito Público (Unisinos) mestre em Filosofia e Ética Social (Unisinos) advogada professora das Faculdades Integradas São Judas Tadeu e integrante do grupo de pesquisa Dasein.

4 de fevereiro de 2023, 8h00

Alice estava sentada. Após folhear o álbum de retratos, parou e passou a olhar o horizonte, pensativa… O que cogitava essa menina tão criativa e inteligente? O que havia naquele álbum de retratos? Uma intensa curiosidade aflorou e fomos bisbilhotar. Qual não foi nossa surpresa ao ver uma gama de fotografias da história de um país onde os símbolos dos Poderes da República se viram absurdamente golpeados. Não acreditamos ou não quisemos ver o que estava por detrás do espelho. Mas Alice, em sua ingenuidade, estava a olhar o que não queria ter visto… o que ela pensou? Não sabemos ainda. Provavelmente, o caos, o nonsense. Na verdade, estávamos, novamente, no país das maravilhas, espaço do ilógico, do irracional e, sinceramente, não sabíamos quando e se conseguiríamos sair de lá…

A passagem da história de Alice, de Lewis Carroll, aqui subvertida, serve para introduzir questões fundamentais no contexto atual da política brasileira: o que sucedeu em nosso país? Será que não aprendemos com as experiências passadas? Abortamos o papel das supremas cortes e dos tribunais na democracia hodierna? Será que podemos fazer de conta que o golpe de Estado tentado (e anunciado), no dia 8 de janeiro de 2023, não abalou a democracia do país? Ao realizar tais questionamentos, Alice, resolveu adentrar nesse novo mundo que se descortinou à sua frente. Nunca imaginou que teria que realizar tal enfrentamento: como viver no Brasil, como viver no país das maravilhas? Ela não sabia como fazer isso, apesar de o faz de conta fazer parte de sua vida. Todavia, vendo que não tinha alternativa, resolveu abraçar essa nova realidade. Para isso, decidiu descobrir, porque, apesar da consciência de que seria muito difícil fugir do país das maravilhas, tinha a certeza de que não ia desistir.

Após sua decisão, Alice foi conversar com a Rainha Vermelha e o Rei Vermelho, pois queria saber como tudo começou. Precisava descobrir como funcionava a jurisdição brasileira. O monarca e a monarca explicaram que a jurisdição constitucional, no Brasil, acompanhava o sistema norte-americano, inovando para um sistema misto, que assenta o critério de controle difuso resguardado pelo fundamento de controle concentrado pela ação direta de inconstitucionalidade, congregando a ação de inconstitucionalidade por omissão. Portanto, a competência do Supremo Tribunal Federal está na matéria constitucional.

Esclareceram que o STF não tinha competência exclusiva para o exercício da jurisdição constitucional, uma vez que o sistema está alicerçado no critério difuso, ou seja, qualquer tribunal ou juiz está autorizado a conhecer a prejudicial de inconstitucionalidade, por meio de exceção [1]. O STF "constitui-se, no sistema brasileiro, na corte constitucional por excelência, embora configurada segundo um modelo muito diferente das cortes constitucionais europeias. Ele é, em outras palavras, o guarda da Constituição […]" [2].

Disseram que a aplicação do Direito precisa obedecer a uma teoria da decisão judicial. Há de se buscar a resposta correta, a partir da Crítica Hermenêutica do Direito, atendendo ao que está disposto na Constituição Federal[3] — foram estas as suas palavras.

Após a explicação, a Rainha Vermelha se arrependeu do que disse, se enfureceu e gritou: – Chegaaaaa! Mais uma pergunta e vou mandar cortar-lhe a cabeça! Nada disso você precisa saber! Vamos manter tudo como está! Só me obedeça!

Então, qual é o papel das supremas cortes e tribunais constitucionais?, pensou Alice. E logo lhe veio a resposta: – Fazer cumprir a Constituição. Ponto. Como assim ponto? Onde ficou este ponto? Questionou a si mesma em voz alta.

Logo, apareceu a Lebre de Março que disse: – Espere um minuto, Alice.

Para começar, pegue ali, na prateleira central da estante, a obra Verdade e Consenso, de Lenio Streck, e veja o que o autor diz. Pena que só temos a edição de 2017! Leia, em voz alta e em bom som, e sinta o teor do primeiro parágrafo da página 447, concentrando-se naquilo que o professor explica:

"[…] a afirmação de que sempre existirá uma resposta constitucionalmente adequada – que, em face de um caso concreto, será a resposta correta (nem a melhor nem a única) — decorre do fato de que uma regra somente se mantém se estiver em conformidade com a Constituição, seja a partir de uma parametricidade stricto sensu, seja a partir de uma parametricidade decorrente da resolução de conflitos de princípios. Mesmo na mais 'simples' resolução de um 'caso fácil' estará presente o exame da adequação constitucional, porque todo ato interpretativo é ato de filtragem hermenêutico-constitucional" [4]. (grifo nosso)

– Alice! – chama a atenção a Lebre de Março – Entendeu? Você precisa estudar Alice! Não posso lhe dar as respostas prontas. Você já conhece a consequência do que ocorreu (ou parte dela), precisa refletir sobre a causa!

Entretanto, Alice queria saber mais e foi perguntar ao Coelho Branco qual era a causa de tamanho disparate que aconteceu no Palácio da Alvorada e na Suprema Corte? O Coelho Branco, muito perspicaz, mas sempre com muita pressa, disse:

– Alice, a democracia está em risco.

– Como assim, Coelho Branco? – perguntou Alice.

Coelho Branco respondeu:

– Pense na história, Alice! Pense nos anos 30 na Europa, e nos anos 70 na América Latina, só para exemplificar. Mas, eu não tenho tempo agora, preciso correr.

Alice ficou desolada com a falta de atenção que o Coelho lhe dispensou, mas o Gato Cheshire estava no recinto e, como ouviu toda a conversa, Alice pediu:

– Gato Cheshire! Sente aqui comigo! Você acha que a tentativa de golpe realmente aconteceu? Por que ingressamos em uma crise democrática?

Gato Cheshire respondeu:

– Alice – reflita – a democracia morre nas mãos de homens armados [5]. Você recorda que, no ano de 1973, em Santiago, no Chile [6], o presidente Allende realizou um pronunciamento nacional na busca da defesa da democracia que em nada resultou? O povo não foi às ruas, e Allende foi morto. Com isso, terminou a democracia chilena. Da mesma forma, nesse período da Guerra Fria, outros golpes de Estado ocasionaram ruínas democráticas na Argentina, Brasil, Gana, Grécia, Guatemala, Nigéria, Paquistão, Peru, República Dominicana, Tailândia, Turquia e Uruguai. Mas Alice, tenha cuidado, pois a democracia também pode acabar através de líderes eleitos [7], quando estes subvertem o próprio processo que os levou a governar [8]. Hitler é um exemplo disso.

– Por favor, explique mais, Gato – diz Alice.

Gato Cheshire continua:

– Alice, você não se lembra do holocausto? Do que aconteceu na Alemanha?

Alice respondeu:

– Gato, não me ensinaram isso ainda. Me conte!

– Assim…, explicou o Gato Cheshire – na Alemanha, após a Primeira Guerra Mundial, o Movimento Revolucionário Conservador ou Revolução Conservadora, que se caracterizou por sua oposição à República de Weimar, ao liberalismo e ao comunismo se viu dissolvido com a chegada do partido nazista ao poder. Aqui vale um parênteses, Schmitt ingressou no Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores, a convite de Martin Heidegger, em 1 de maio de 1933. Em questão de dias, Schmitt apoiou o partido na queima de livros de autores judeus, alegrou-se com a queima de material "não alemão" e "anti-alemão", e pediu um expurgo muito mais extenso, para incluir obras de autores influenciados por ideias judaicas. Foi ele o responsável por apresentar suas teorias como fundamento ideológico da ditadura nazista e uma justificativa do Estado Führer em relação à filosofia jurídica, particularmente, através do conceito de auctoritas.

Pergunta Alice:

– Gato… o que nos interessa isso?

Respondeu o Gato Cheshire:

– Interessa, e muito, porque os fundamentos, para aqueles que defendem a barbárie que foi realizada, estão nas ideias de estruturação do judiciário apresentada por Schmitt. Aí está o busílis: quem deve ser o guardião da Constituição?

Prossegue o Gato Cheshire:

– Kelsen salienta que o Direito e a Política devem estar separados. Schmitt defende a soberania do líder, o decisionismo. Sustenta que o soberano é quem cria a lei e, assim, concentra a vontade democrática. Ainda, justifica que, por isso, não está subordinado a lei que ele mesmo criou. Ora, ora, qual a garantia que a sociedade pode esperar?

Alice, rapidamente, responde:

– Eu sei. Primeiro, não admitir um "estado de normas" e um "estado de medidas" ou de "estado de exceção" como havia se estabelecido no nazismo [9] e, segundo, atentar para que os atos dos juízes e agentes políticos estejam em conformidade com Constituição [10].

O Gato Cheshire respira fundo e diz:

– Isso, Alice, você está entendendo!

A Lagarta, que acompanhava toda a conversa, resolveu concluir o assunto:

– Alice e Gato, a conversa está boa, mas vamos objetivar isso. Não quero viver no país das maravilhas e vocês só estão mostrando que isso será muito difícil. Estou muito nervosa! Isso parece um jogo de xadrez e precisamos que a democracia vença e que a corte suprema e os tribunais garantam os direitos fundamentais. Para isso, todos os poderes precisam ser respeitados e o sistema jurídico precisa estar aparelhado e funcionar bem, pois é a espinha dorsal de todas as sociedades e economias. Preservá-lo, portanto, parece uma prioridade óbvia! Será que entendem o que é óbvioooooo?!

Alice pondera:

– Mas como o direito é um instrumento nas mãos de criaturas inventivas e interpretadoras chamadas seres humanos, ele pode ser usado para promover objetivos muito diferentes, inclusive, opostos. A resposta está no respeito a Constituição Federal que apresenta as possibilidades e os limites do sistema jurídico e dos tribunais na proteção da democracia [11] e do Estado de direito. Portanto, o que precisamos compreender é que muito pouco se pode esperar das cortes e tribunais, quando assolados por um regime opressivo. Segue Alice, em uma verborragia infindável:

– Ora, um judiciário operante é a espinha dorsal de um sistema legal funcional que, por sua vez, é um pilar importante de uma sociedade bem organizada. Quando é que vamos aprender que a imposição da força, a destruição não é o melhor caminho? Vamos fazer de conta que nada disso aconteceu é o que, talvez, eu pudesse dizer… só que não… não tem como esquecer o que aconteceu.

Alice chora e, aos soluços, pede ao Gato Cheshire:

"Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para ir embora daqui?"

"Depende bastante de para onde quer ir", respondeu o Gato.

"Não me importa muito para onde", disse Alice.

"Então não importa o caminho que tome", disse o Gato.

"Contanto que eu chegue a algum lugar", Alice acrescentou à guisa de explicação.

"Oh, isso certamente vai conseguir", afirmou o Gato, "desde que ande o bastante" [12].

Esse último diálogo, excerto retirado da obra de Lewis Carroll, serve de mote, e também de metáfora, para ilustrar a necessidade de chegar a "algum lugar" na política brasileira; no caso em pauta, esse lugar é o da democracia. Para isso, precisamos "andar bastante", como diz o Gato Cheshire. Os acontecimentos trágicos de afronta às instituições democráticas no dia 8 de janeiro assim o demonstram. Portanto, o espelho trincado que embaça a realidade desses acontecimentos, interpretando-os como manifestações legítimas precisa ser quebrado, e isso pode (e deve) ocorrer através da ação de todos os brasileiros conscientes da importância das instituições num regime democrático, mas especialmente dos poderes da República, dentre eles, o Poder Judiciário.

 


Referências

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

DINAMARCO, Cândido Rangel; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Processo. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2021.

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. E-book.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 44. ed. São Paulo: Malheiros, 2022.

STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017.

______. Hermenêutica e Jurisdição: Diálogos com Lenio Streck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017.

______. Verdade e consenso. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

VENEMA, Mark. Supreme Courts under nazi Occupation. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2022.

 


[1] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 44. ed. São Paulo: Malheiros, 2022. P. 564.

[2] DINAMARCO, Cândido Rangel; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Processo. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2021. P. 213.

[3] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017. PP. 253-254.

[4] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. P. 447.

[5] LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. E-book. Posição 143.

[6] “[…] O Chile estivera tomado pela inquietação social, a crise econômica e a paralisia política. […] Cf. LEVITSKY; ZIBLATT, 2018. E-book. Posição 138.

[7] "O paradoxo trágico da via eleitoral para o autoritarismo é que os assassinos da democracia." Cf. LEVITSKY; ZIBLATT, 2018. E-book. Posição 227.

[8] LEVITSKY; ZIBLATT, 2018, Posição 151.

[9] Cf. VENEMA, Mark. Supreme Courts under nazi Occupation. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2022. P. 20.

[10] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e Jurisdição: Diálogos com Lenio Streck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017. P. 98.

[11] "As democracias funcionam melhor – e sobrevivem mais tempo – onde as constituições são reforçadas por normas democráticas não escritas. Duas normas básicas preservaram os freios e contrapesos dos Estados Unidos, a ponto de a tomarmos como naturais: a tolerância mútua, ou o entendimento de que partes concorrentes se aceitem umas às outras como rivais legítimas, e a contenção, ou a ideia de que os políticos devem ser comedidos ao fazerem uso de suas prerrogativas institucionais. Essas duas normas sustentaram os Estados Unidos durante a maior parte do século XX." Cf. LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. E-book. Posição 236.

[12] CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. PP. 76-77.

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