Opinião

Lei paulista de produtos de cannabis no SUS: próximos passos

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3 de fevereiro de 2023, 11h13

São Paulo criou legalmente uma política estadual de fornecimento gratuito de medicamentos de derivado vegetal à base de canabidiol, em associação com outros canabinóides em caráter de excepcionalidade.

123RF
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A lei estadual utiliza a expressão medicamento de derivado vegetal à base de canabidiol, quando a definição regulatória da Anvisa é de produto da extração da planta medicinal, conforme Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 16/14. Um derivado vegetal pode ser registrado como produto tradicional fitoterápico ou como medicamento fitoterápico, a partir de um insumo farmacêutico ativo vegetal.

De acordo com a nomenclatura regulatória da Anvisa, atualmente existem: produtos de cannabis nacionalmente produzidos (RDC 327/19); produtos derivados de cannabis importados (RDC 660/22); e produtos não regularizados importados para atender demanda judicial (RDC 262/19).

Com exceção do mevatyl, que é um medicamento específico registrado a partir de fitocanabinoides isolados (RDC 24/11), ainda estão sendo produzidas as análises clínicas para registro de medicamento fitoterápico de cannabis. Mesmo que a lei estadual tenha utilizado a expressão "medicamento" e não "produto de cannabis", não haverá maiores problemas de interpretação, porque o regramento estadual é da dispensação excepcional.

Isso porque de acordo com os parâmetros do Supremo Tribunal Federal, há possibilidade de obrigar o Poder Público a importar medicamento sem registro, conquanto que a importação tenha sido autorizada pela Anvisa, com comprovação de incapacidade econômica do paciente, imprescindibilidade clínica e ausência de medicamento similar nas listas do SUS[1].

É perfeitamente cabível a ampliação de assistência farmacêutica. A política de fornecimento correrá às expensas do orçamento do estado de São Paulo, dado que produtos de cannabis não compõem ainda o bloco de assistência farmacêutica de dispensação excepcional federal. Os medicamentos registrados de cannabis não fazem parte da lista do SUS, pois a determinação de sua inclusão ainda está pendente de julgamento no bojo de ação civil pública na justiça federal[2]. O tema ainda requererá pactuação interfederativa nos colegiados do SUS para um planejamento integrado[3].

No estado de São Paulo, relata-se a existência de procedimento administrativo de produto não padronizado surgido na Farmácia Alto Custo Várzea do Carmo, que passaria por análise de equipe técnica multidisciplinar da Secretaria Estadual de Saúde[4].

Já é previsto um procedimento administrativo de pedido de medicamento do componente especializado[5]. Em rápida consulta ao sítio de internet da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, é possível verificar laudos específicos a serem preenchidos por médico(as), porém não se logrou encontrar formulário para requerimento administrativo. No caso de produtos de cannabis, será necessário aperfeiçoamento do procedimento de dispensação excepcional ou criação de um formulário próprio eletrônico.

Daí a importância dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas de Medicamentos em Caráter Excepcional no Estado de São Paulo, pois o ente federativo adiantou-se na incorporação de tecnologia do SUS, cabendo ao Instituto de Saúde e a Coordenadoria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos proceder com a avaliação de incorporação dos produtos fitoterápicos de cannabis.

Contados 30 dias da publicação da lei, cabe à Secretaria Estadual de Saúde criar comissão de trabalho "com participação de técnicos e representantes de associações sem fins lucrativos de apoio e pesquisa à cannabis e de associações representativas de pacientes". É provável que a Secretaria de Saúde edite resolução na matéria.

São objetivos da política paulista: diagnóstico e tratamento com respaldo científico; e promoção da informação para gestores e população, sendo previstas, para tanto, parcerias, de preferência com entidades sem fins lucrativos. 

Antes o projeto de lei previa o direito de receber em caráter de excepcionalidade medicamento nacional ou importado, formulado a base de derivado vegetal de cannabis, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, acompanhado de respectivo laudo de refratariedade a outros tratamentos disponíveis, declaração de responsabilidade e esclarecimento do(a) paciente, por meio de cadastro na Secretaria de Saúde, que vale pelo período de um ano. Porém, agora, com os vetos do Governador, cabe à Secretaria de Saúde definir os critérios.

Por parte da União, há necessidade de instituição de um programa federal de monitoramento de produtos de cannabis por meio da Gerência de Laboratórios Públicos da Anvisa (artigo 64 da RDC 327/19). Também se faz necessária a instituição de uma Rede Nacional de Informação de Plantas Medicinais, com portal eletrônico próprio e participação de associações civis[6].

É bom lembrar que o estado de São Paulo conta com programas estaduais de fitoterápicos (Lei n° 12.739/07), de inovação (Lei Complementar Estadual nº 1.049/08) e com regime de convênios administrativos com organizações da sociedade civil (Decreto Estadual n° 66.173/21).

São Paulo já detém a responsabilidade no que se refere às plantas medicinais e a sua preparação para farmácias de manipulação do SUS, farmácias vivas e fitoterápicos da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais[7].

No entanto, a realidade é de associações de pacientes, que impetram Habeas Corpus Coletivo para seguir com sua produção artesanal de remédio caseiro sem o risco de prisão[8], bem como de farmácias de manipulação, que impetram Mandado de Segurança para não sofrer obstáculos da vigilância sanitária[9].

O estado de São Paulo deve caminhar para que o acesso a produtos de cannabis seja ampliado, para que a fitoterapia seja opção de tratamento na atenção básica e não algo somente excepcional, depois de esgotadas todas alternativas terapêuticas.

Pode ser referido o exemplo da Colômbia, que incorporou em seu sistema público de saúde as preparações magistrais de cannabis para indicações de insônia crônica, dores crônicas, fibromialgia e epilepsia refrataria[10].

Para que isso ocorra na terra do sanduíche de Bauru — patrimônio cultural paulista, é importante a participação popular no Conselho Estadual de Saúde, que deve aprovar o próximo Plano Estadual de Saúde, neste ano, com base na prevalência das enfermidades passíveis de serem tratadas com a fitoterapia canábica nas regiões de saúde, se possível também com mapa das ações prestadas por associações civis de pacientes. Para saber das necessidades da população, exerce-se a chamada vigilância epidemiológica[11]. É no Conselho de Saúde e nas audiências públicas da Alesp que se debatem o orçamento.

De acordo com a Lei orgânica do SUS[12], há necessidade de articulação com órgãos de fiscalização do exercício profissional para a definição e controle dos padrões éticos para pesquisa, ações e serviços de saúde, bem como possibilidade do estado de São Paulo em realizar pesquisas e estudos na área da saúde. São possíveis abordagens mais pragmáticas[13] no método de avaliação de eficácia e segurança de medicamentos fitoterápicos a partir das evidências observacionais da prática clínica?

Conta-se com autarquia destinada à pesquisa (Fapesp), porém o desafio ainda está em como validar em termos biomédicos as práticas populares da saúde e os conhecimentos tradicionais da humanidade. Considerando as práticas integrativas incorporadas no SUS, há possibilidade de utilização do óleo de canabidiol na medicina ayurvédica e na medicina tradicional chinesa? Hora de incentivar pesquisas sobre o sistema endocanabinoide e sua interação com plantas medicinais e óleos essenciais, como o de copaíba.

Oxalá possa o Conselho Estadual de Saúde revisar todos contratos de licitação na matéria de aquisição de medicamentos/produtos de cannabis, bem como convênios/parcerias com associações civis de pacientes e de pesquisa, de modo a colaborar para uma política estadual, participativa e inovadora.

Há perspectiva, agora, de abertura de editais públicos de fomento que possam abranger monitoramento de fitocanabinoides nos produtos com auxílio no tratamento ou no diagnóstico de pacientes. Em caso de omissão para tornar efetiva norma de saúde, a Constituição Paulista prevê o manejo de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão[14]. Na ausência de regulamentação, é cabível o Mandado de Injunção[15]. Uma regulamentação infralegal robusta e inteligente pode e deve abarcar todas estas questões correlatas à nova lei paulista de cannabis medicinal[16].


[1] STF. RE 1.165.959-SP, Rel. Min. Marco Aurélio, Redator do Acórdão Min. Alexandre de Moraes, j. 21/06/21

[2] TRF 1ª Região. Quinta Turma. Acórdão 1000181-84.2017.4.01.3310. Rel. Des. Carlos Augusto Pires Brandão, j. 24/09/20

[3] Decreto Federal 7.508/11

[4] YOSHINAGA, Juliana Yumi. Judicialização do direito à saúde: a experiência do Estado de São Paulo na adoção de estratégias judiciais e extrajudiciais para lidar com essa realidade. Revista Brasileira de Direito Público n° 30, 2010, p. 113

[5] Art. 69, Anexo XXVIII, Portaria de Consolidação nº 2 de 2017

[6] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Programa Nacional de plantas medicinais e fitoterápicos. Brasília: 2009, p.40

[7] Art. 39, I, Anexo XXVII, Portaria de Consolidação MS nº 2 de 2017

[8] CONJUR. Juíza concede HC coletivo para associação plantar maconha com fins medicinais. 13 de fevereiro de 2021, disponível em:  https://www.conjur.com.br/2021-fev-13/associacao-autorizada-plantar-maconha-fins-mediciais

[9] TJSP. Apelação nº 1034060-68.2021.8.26.0576, Rel. Rubens Rihl, j. 14 de janeiro de 2022.

[10] WRadio. Medicamentos a base de cannabis tendrán que ser entregados por el sistema de salud. Disponível em: https://www.wradio.com.co/2023/01/05/medicamentos-a-base-de-cannabis-tendran-que-ser-entregados-por-el-sistema-de-salud/

[11] Arts. 61 e 62, Código Sanitário Paulista (Lei Estadual 10.083/98).

[12] Art. 15, incs. XVII, XIX, Lei Federal 8.080/90

[13] Vide PATSOPOULOS, Nikolaos A. A pragmatic view on pragmatic trials. Dialogues in clinical neuroscience v. 13, 2011, disponível em:  https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3181997/

[14] Art. 90, §4º, Constituição do Estado de São Paulo

[15] Art. 74, V, Constituição do Estado de São Paulo

[16] Agradeço ao Dr. João Gabriel de Souza de Carvalho pela interlocução durante a confecção deste artigo

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