Controvérsias Jurídicas

Neoconstitucionalismo e o Estado democrático de Direito

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

2 de fevereiro de 2023, 8h00

A ascensão ao poder de Benito Mussolini (Itália-1922) e Adolf Hitler (Alemanha-1933) foram marcos históricos para a implementação das ideologias fascistas e nacional-socialistas em boa parte do território europeu. Baseado no patriotismo exacerbado e na total ingerência do Estado na vida dos particulares, tais ideologias foram responsáveis pelo redimensionamento do poder estatal, elevando seu espectro de alcance a esferas jamais vistas na história.

Spacca
O fascismo e o nacional socialismo enxergavam-se como a real materialização da vontade do povo, razão pela qual seus representantes políticos atuavam não apenas como integrantes de um Poder (com mandato preestabelecido e limitações de atribuições), como também como supremos procuradores da nação; encarnando, neles próprios, as representações do passado e os anseios futuros de um povo.

Não era à toa que os líderes desses movimentos eram denominados como "Duce" e "Führer", verbetes italiano e alemão para designar o líder, o condutor máximo do país. Nesse período histórico, a Itália e a Alemanha assistiram à equiparação do poder político ao poder normativo, onde os líderes políticos determinavam a constitucionalidade das normas e sua aplicação na vida prática. Se levarmos em conta o contexto do período entre guerras, tal característica ganhará contornos ainda mais problemáticos, uma vez que boa parte dos filósofos, juristas, jornalistas e historiadores alemães contestaram a Constituição de 1919 por representar uma verdadeira guinada do país aos interesses das potências do oeste. A perda da Primeira Guerra Mundial e a decepção com o Tratado de Versalhes sedimentaram a ideia de que a Alemanha jamais se constituiria no modelo pangermânico se continuasse submetida ao modus vivendi de outras culturas. Nasce, assim, a ideia de formatação de uma só cultura, o Kultur baseado nos laços sanguíneos.

Para que tal percepção ganhasse espaço no ambiente político, muitos juristas sustentaram que a origem e o fim das normas jurídicas são o Volk, e apenas o Volk. Tendo em vista que boa parte do arcabouço normativo alemão da época foi inspirado no Código Civil francês (Burgesliches Gesetzbuch) e as disposições da Constituição de Weimar nas leis supremas das democracias liberais ocidentais, os juristas nazistas contestaram a ordem legal vigente, proclamando a renovação do direito (Erneuerung Rechts).

"Em um trabalho de 1936 sobre a Etnologia Jurídica, Kunsberg afirma que a ciência do direito e a etnologia têm em parte o mesmo objetivo. Repetindo a ladainha nazista segundo a qual nas épocas mais antigas, não é possível distinguir os costumes do direito nem o uso popular do uso jurídico, ele atribui aos juristas a missão de resgatar o direito que está enraizado nos costumes do povo. Desse modo, a etnologia jurídica estuda os costumes jurídicos vivos e se propõe a reuni-los para codificar um direito do povo e defendê-lo contra o direito escrito, coagulado e estrangeiro" [1].

O princípio da legalidade, que durante séculos funcionou como instrumento de proteção da sociedade ante os arbítrios de um monarca, passou a servir como meio legitimador para a implementação de regimes autoritários. O Parlamento, subjugado e aparelhado pelas figuras dos líderes, passou a servir como elemento legalizador de perseguições a dissidentes e adversários políticos, como também, a toda e qualquer parcela da sociedade que fosse considerada "degenerada" ou indesejável.

A vitória dos Aliados (Estados Unidos, Inglaterra e União Soviética) na Segunda Guerra Mundial (1945) marcou o término dos regimes totalitários na Europa, revelando ao mundo o resultado das atrocidades que os sistemas legais da Itália e Alemanha impuseram ao continente. Mortes, prisões, trabalhos forçados, extermínio étnico e outras barbaridades foram produzidas sob a proteção de seus respectivos ordenamentos jurídicos, suscitando a reflexão acerca de qual deveria ser a dimensão da soberania do Parlamento e dos representantes do povo.

O paradoxo trazido pela ascensão e queda de regimes totalitários fez com que fossem construídas formas de mitigação do poder do Parlamento, substituindo o que antes se denominava "Estado Legislativo de Direito" pelo "Estado Constitucional de Direito". As Constituições Federais, dotadas de carga valorativa, passaram a figurar como o centro do sistema jurídico. Dessa forma, a lei, os poderes públicos e a sociedade deviam não apenas observar a norma formal prescrita na Constituição, mas, acima de tudo, expressar os valores por ela edificados.

A Constituição alemã de 1949 (Lei Fundamental de Bonn) e seu Tribunal Constitucional Federal (1951); a Constituição italiana de 1947 e a instalação de sua Corte Constitucional (1956); a Constituição portuguesa de 1976; a Constituição espanhola de 1978 e a Constituição brasileira de 1988 efetivaram a substituição do modelo de constitucionalismo moderno, pautado na hierarquia entre as normas e a limitação do poder do Estado; pelo modelo neoconstitucionalista, baseado na hierarquia axiológica e formal das normas e na concretização dos direitos e garantias fundamentais.

Quanto ao novo modelo pós-constitucionalista, observa Pedro Lenza:

"Visa-se, dentro dessa nova realidade, não mais atrelar o constitucionalismo à ideia de limitação do poder político, mas, acima de tudo, busca-se a eficácia da Constituição, deixando o texto de ter um caráter meramente retórico e passando a ser mais efetivo, sobretudo diante da expectativa da concretização dos direitos fundamentais" [2].

No mesmo sentido, Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco: "Hoje, é possível falar em um momento de constitucionalismo que se caracteriza pela superação do Parlamento. O instante atual é marcado pela superioridade da Constituição, a que se subordinam todos os poderes por ela constituídos, garantida por mecanismos jurisdicionais de controle de constitucionalidade. A Constituição, além disso, se caracteriza pela absorção de valoras morais e políticos (fenômeno por vezes designado como materialização da Constituição), sobretudo em um sistema de direitos fundamentais autoaplicáveis" [3].

O sistema neoconstitucionalista é o que melhor promove o Estado democrático de Direito, consistente não apenas na subordinação de todo sistema jurídico ao mandamento constitucional, mas também na construção de um estado constitucional pautado sob fundamentos democráticos. Não seria outro o motivo pelo qual o artigo 1º, I a V, CF, explicita que: "A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em um Estado democrático de Direito" baseado na soberania popular; cidadania; dignidade da pessoa humana; valores sociais do trabalho e pluralismo político.

A dignidade da pessoa humana é o centro axiológico da Constituição Federal de 1988, servindo como paradigma interpretativo dos demais princípios e dispositivos legais que integram o sistema jurídico. Para que a dignidade do cidadão seja alcançada em sua máxima amplitude, faz-se necessária a aplicação dos direitos sociais contidos no artigo 6º, CF, a saber: educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados.

Nesse sentido, toda e qualquer atuação do Poder Legislativo, mesmo estando legitimada pelo voto popular, deve obedecer não apenas os ditames formais da Carta Magna, como também os valores por ela erigidos, norteando a elaboração das leis nos fundamentos da República (artigo 1º, CF), consubstanciados nos direitos sociais do artigo 6º, CF.

Toda e qualquer ação que extrapole tais objetivos, por mais que legitimada pelo voto popular, usurpa a preponderância dos valores constitucionais trazidos pelo poder constituinte originário.

Fiel e sincronizada com o neoconstitucionalismo, nossa Carta Magna marca a passagem do Estado formal de Direito, no qual a igualdade se esgota na submissão de todos às mesmas leis (todos são iguais porque a lei é igual para todos), para o Estado democrático de Direito, no qual o Estado tem um compromisso muito maior do que fixar leis iguais para todos e zelar pela sua observância. Estado democrático de Direito é aquele fundado no primado da dignidade humana e na missão de reduzir as desigualdades sociais, nos termos do artigo 3º da CF de 1988.


[1] CHAPOUTOT, Johann. A revolução cultural nazista. . Rio de Janeiro. Ed. Da Vinci, 2022, p. 120/131.

[2] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 18ª edição, Saraiva, 2014, p. 72

[3] MENDES, Gilmar e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 14ª edição, Saraiva, 2019, p.53

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

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