Opinião

A suspensão da lei paulista sobre naming rights de bens públicos

Autores

  • Isadora Formenton Vargas

    é advogada de Direito Público no RMMG Advogados. Mestra em Direito (UFRGS) e em Argumentação Jurídica (Universitá degli Studi di Palermo). Especialista em Gestão Governança e Setor Público (PUC-RS). Professora na Faculdade de Direito João Paulo 2º em Porto Alegre.

  • Rafael Maffini

    é advogado doutor em Direito professor de Direito Administrativo na UFRGS e sócio-diretor do RMMG Advogados.

28 de dezembro de 2023, 19h15

O direito administrativo contemporâneo exige a elaboração de perguntas adequadas em detrimento de respostas prontas. Nesse sentido, com a notícia da suspensão judicial, em 20/12/2023, da Lei nº 18.040/2023 (PL 638/2022) que altera a Lei nº 16.703/2017 para autorizar a cessão onerosa de direito à denominação de equipamentos públicos (naming rights) pelo Poder Executivo da cidade de São Paulo, mostra-se necessário abordar o tema sob a perspectiva da defesa do patrimônio público material e imaterial, sendo essa última uma das preocupações apresentadas nas razões daqueles que postularam a suspensão da referida lei.

Inicialmente, entende-se por naming rights o direito à denominação de bens de modo oneroso, com a particularidade de que não há relação de domínio sobre o objeto [1]. A prática empresarial iniciou por volta da década de 70 nos Estados Unidos com a nomeação de praças e estádios esportivos, difundindo-se para a utilização pelo setor público, com a cessão de direitos à denominação de escolas públicas, hospitais, estações ferroviárias. Expandiu-se, também, para outros países.

No Brasil, no âmbito da relação entre privados, embora um dos estádios seja uma PPP, apenas para se ter uma ideia, com base em exemplos de acordos de naming rights para cinco estádios [2], a previsão de duração média dos acordos é de 15 anos, e os recursos envolvidos são de, aproximadamente, R$ 200 milhões. O caso mais recente, em vias de celebração oficial do acordo, envolve o estádio Morumbi, em São Paulo, que representará o maior acordo nesse segmento, R$ 75 milhões de reais por três anos [3].

Em relação a bens de uso público, é possível referir os exemplos dos metrôs do Rio e São Paulo. Em 2021, a estação Botafogo passou a se chamar Botafogo Coca-Cola, com retorno anual ao Metrô por volta de R$ 4 milhões a serem investidos em segurança. No entanto, em 2022, após manifestações contra a publicidade de incentivo ao consumo de bebidas açucaradas, os letreiros foram removidos, embora a previsão de encerramento do contrato fosse dezembro de 2023.

Evidentemente não é um tema simples, mas tratando-se de uma efetiva nova fonte de financiamento a discussão deve ser séria, racional e preferencialmente afastada de percepções ideologicamente comprometidas [4]. Para o poder público, a cessão onerosa do direito à denominação assemelha-se a um meio de arrecadação alternativo à tributação [5] e capaz de evitar, por exemplo, como receita alternativa na prestação de serviços públicos, aumento de tarifas, além de qualificar os serviços e a infraestrutura relacionada a tais bens.

Por isso, não só quanto à utilização do instituto de naming rights para a gestão de bens públicos, como também para diversas outras preocupações contemporâneas do direito administrativo, verifica-se a necessidade de elaboração de perguntas adequadas em detrimento de respostas fáceis baseadas em lugares-comuns que não cabem mais na nossa realidade (se é que em algum dia couberam).

No caso do exame da Lei nº 18.040/2023 suspensa em plantão judicial em 20/12/2023, não parece ser o caso de questionar se devemos ou não autorizar a cessão onerosa do direito à denominação de bens públicos, até porque, no âmbito do município de São Paulo, a referida lei foi aprovada, por maioria, pelos representantes eleitos pelo povo, no âmbito da deliberação democrática. Subjaz a tal circunstância, aliás, uma questão relevante: a exploração de direito de denominação de determinado bem público haverá de estar legitimada por norma contida em lei em sentido formal, tratando-se tal circunstância de um desdobramento lógico do princípio da legalidade.

Sugere-se, assim, que a pergunta pertinente para início de conversa seja: de que modo faremos isto da forma mais adequada? O dever de conciliação que surge desta pergunta deriva do fato de que a efetiva proteção do patrimônio público, tanto material quanto imaterial, não corresponde à impossibilidade de participação de privados, até porque não queremos que o patrimônio de — diagnosticada e aferida — relevância imaterial, por exemplo, fique somente na memória e se destrua fisicamente com o passar do tempo, por falta de recursos para mantê-lo, passando a representar uma memória, daí sim, de vergonha e de descaso com a população destinatária e usuária dos bens públicos. As necessárias interações entre o poder público e a iniciativa privada, a par de costumeiramente gerarem algumas incompreensíveis polêmicas, podem se afigurar convenientes e, em alguns casos, imprescindíveis. Um serviço público prestado por particular não é, por tal razão, “privatizado”, desde que a regulação que sobre ele incida se mostre adequada à tutela do interesse público. Igualmente, um bem público que tiver seu direito de dominação explorado por terceiros não será, por si só, “desestatizado” ou “privatizado”.

Se a preocupação for a tutela do patrimônio imaterial, deve-se questionar se o bem e seu respectivo nome consistem em “referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (artigo 216, caput, da CF) e demais consectários na legislação infraconstitucional. Se a resposta for positiva, o projeto deverá prever de que modo irá conciliar a defesa do patrimônio público material com a necessidade de preservar a identidade cultural. Neste sentido, evidentemente o direito de exploração de denominação de bens públicos poderá — e, em alguns casos, deverá — submeter-se a limites formais (prévio procedimento licitatório ou ferramenta similar de seleção, prazos, etc) e materiais (limitações decorrentes de marcas, nomes ou ideias inapropriadas, por exemplo) determinados por uma gama de normas jurídicas incidentes sobre as relações jurídico-administrativas.

No entanto, de forma preliminar, não parece adequado presumir, em abstrato, que a Lei nº 18.040/2023 comprometa a tutela do patrimônio imaterial ou prejudique a identidade cultural, até porque a lei não autoriza que o nome original seja substituído, e sim que haja o “acréscimo de sufixo após a sua denominação originária, mantendo-se, portanto, esta e suas alterações posteriores” (artigo 4º, §1º, Lei nº 16.703/2017, redação dada pela Lei nº 18.040/2023).

Além disso, verifica-se que a lei prevê dois mecanismos de regulamentação dos parâmetros indicados no § 3º do artigo 4º: decreto e instrumento de parceria. Em relação ao decreto regulamentador, a lei dispõe que “o Município estabelecerá o percentual do valor pecuniário possível de ser convertido, pelo parceiro, em benefícios ao próprio equipamento através da promoção de benfeitorias, atividades de interesse coletivo, incentivos aos usuários do equipamento, bem como outras ações de interesse público” (inc. II). No mais, a regulamentação do decreto “será especifica para cada tipologia de equipamento, a fim de observar e preservar suas características e finalidades precípuas, sendo vedado o estabelecimento de percentual de contrapartida geral para todos os casos” (inciso III).

Já em relação ao instrumento de parceria, isto é, o contrato, a lei dispõe que a respectiva celebração será “precedida de análise e manifestação dos órgãos competentes pela gestão dos respectivos equipamentos públicos municipais” (inciso V), bem como de que nele será estabelecido “no mínimo, a retribuição pecuniária e os encargos de possíveis requalificações; devendo ser prevista contrapartida pela associação de nome ou marca na forma de pagamento anual em pecúnia ao Município de São Paulo” (inciso II), além do “limite do abatimento passível de ser concedido e as equivalências de valor pecuniário para as demais possibilidades de contrapartidas regulamentadas” (inciso IV) e, ainda, que a respectiva celebração será “precedida de análise e manifestação dos órgãos competentes pela gestão dos respectivos equipamentos públicos municipais” (inciso V).

Como já referido, não há dúvida de que, para garantir-se a isonomia, a licitação será, como regra, obrigatória para promover a cessão onerosa de direito à denominação, uma vez que o “particular será investido na faculdade de explorar uma potencialidade econômica de um bem público, mediante determinada remuneração” [6]. Sobre o tema, entende-se que se aplicam as regras gerais do instituto de concessão (Lei nº 8.987/95), dentre outras leis, a exemplo da Nova Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 14.133/2021), no que couber. Ainda, interessante observar que a contratação de naming rights pode ser principal ou acessória a um contrato principal [7].

Se a preocupação for a necessidade de vedar a celebração de contratos com marcas que façam alusão a produtos prejudiciais à saúde ou caso se pretenda algum outro tipo de proibição específica, basta prever no decreto regulamentador e no instrumento do contrato.

E mostra-se indispensável destacar outra via de oportunidade de interesse público por meio deste tipo de negócio: o edital e o contrato poderão prever critérios de seleção de empresas que atendam, por exemplo, políticas ESG, promoção de igualdade de gênero, emissão de debêntures verdes, entre outros, ou seja, uma série de exigências capazes de estimular boas práticas no mercado, induzindo comportamentos. Trata-se do atendimento à função social dos investimentos [8] e da produção de externalidades positivas.

No mais, se a preocupação for o que será feito na superveniência de situação negativa reputacional da empresa, além das previsões próprias de extinção elencadas na Lei nº 8.987/95, o edital e o contrato poderão prever as consequências práticas de tais ocorrências no âmbito da relação contratual.

Logo, em uma análise preliminar, com as perguntas certas, conseguiremos aperfeiçoar as relações jurídicas entre administração pública e privados, visando ao desenvolvimento econômico, à inovação e à eficiência da gestão pública, para uma efetiva tutela do patrimônio público.

E feitas as perguntas certas, acompanhadas das respostas igualmente certas, parece ser imperioso reconhecer que a concessão de direito de denominação sobre bens públicos pode servir de importante ferramenta para a sua preservação “material”, sem que se possa reconhecer no naming rights de bens públicos, por si só, riscos à preservação do patrimônio imaterial.


[1] JUSTEN FILHO, Marçal. A exploração econômica de bens públicos: cessão do direito à denominação, pp. 216-236. Revista de Direito da Procuradoria Geral, Rio de Janeiro, 2012.

[2] Disponível em: https://ge.globo.com/pr/futebol/noticia/2023/06/23/seis-estadios-do-brasil-tem-acordos-de-naming-rights-veja-valores-e-detalhes.ghtml. Acesso em 21 dez. 2023.

[3] Disponível em: https://www.estadao.com.br/esportes/futebol/morumbis-sao-paulo-fecha-acordo-para-vender-naming-rights-de-seu-estadio-por-r-75-milhoes/. Acesso em 21 dez. 2023.

[4] Quanto a esse imperativo, cabe referir crítica bem introduzida por Carlos Ari Sundfeld ao examinar o tema da administração pública empresarial e a necessidade de superação de generalizações simplistas: “claro que sempre se pode dizer que tudo é parte do odioso ‘projeto neoliberal’, feito para o capital estrangeiro e só para ele. É igualmente possível, com doce simpatia, chamar todo o pacote de ‘modernização do Estado’. Mas ou não somos racionais ou teremos de reconhecer: nada disso é análise de resultados, mas simples discurso a priori; se ficarmos nele, nunca saímos de onde partimos”. In: SUNDFELD, Carlos Ari. Introdução às agências reguladoras. p. 36. In: SUNDFELD, Carlos Ari (coord.). Direito Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 36.

[5] SAMPAIO, Luis Felipe. Naming rights de bens públicos. São Paulo: Almedina, 2017.

[6] JUSTEN FILHO, Marçal. A exploração econômica de bens públicos: cessão do direito à denominação, pp. 216-236. Revista de Direito da Procuradoria Geral, Rio de Janeiro, 2012.

[7] SAMPAIO, Luis Felipe. Naming rights de bens públicos. São Paulo: Almedina, 2017, p. 152.

[8] MAFFINI, Rafael. MARÇAL, Thaís. ESG e o projeto de nova lei geral de licitações e contratos administrativos. Migalhas de Peso. 11 mar. 21. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/341604/esg-e-o-projeto-de-nova-lei-geral-de-licitacoes-e-contratos. Acesso em: 24 dez. 2023.

Autores

  • é advogada de Direito Público no RMMG Advogados. Mestra em Direito (UFRGS) e em Argumentação Jurídica (Universitá degli Studi di Palermo). Especialista em Gestão, Governança e Setor Público (PUC-RS). Professora na Faculdade de Direito João Paulo 2º, em Porto Alegre.

  • é mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professor adjunto de Direito Administrativo na UFRGS e sócio do escritório Rossi, Maffini, Milman & Grando Advogados.

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