Opinião

Abandono da visão dicotômica entre público e privado é um imperativo legal

Autor

  • Isadora Formenton Vargas

    é advogada de Direito Público no RMMG Advogados. Mestra em Direito (UFRGS) e em Argumentação Jurídica (Universitá degli Studi di Palermo). Especialista em Gestão Governança e Setor Público (PUC-RS). Professora na Faculdade de Direito João Paulo 2º em Porto Alegre.

11 de março de 2023, 11h15

Todos sabemos que um contrato bilateral, isto é, entre duas partes, geralmente envolve uma prestação e uma contraprestação. Ambas as partes possuem interesses que pretendem satisfazer a partir desta relação contratual.

O contrato, assim, possui uma "causa" que o justifica, para a qual ambas as partes contribuem, de forma colaborativa, em observância à boa-fé, por exemplo. Quanto a isso, se for um contrato administrativo, entre público e privado, ou se for um contrato entre privados, não há diferença.

Da mesma forma, não há diferença se for uma relação contratual administrativa ou privada, caso o contato tenha como objeto, por exemplo, a prestação de um serviço, pois é interesse do contratante que o prestador obtenha extremo sucesso e qualidade ao realizá-lo, pois é isso que atenderá, também ao máximo, a satisfação da necessidade do contratante.

No que se refere às contratações públicas que tenham por objeto a implementação e prestação de serviços de tecnologias da informação e da comunicação, para o que seria um "governo inteligente/eGov" ou, de forma mais abrangente, uma "cidade inteligente/smart city", é preciso compreender que tais contratações visam ao incremento da qualidade de vida, à desburocratização, à eficiência, à economicidade e, sobretudo, à promoção de decisões baseadas em evidência, o que serve em benefício de toda a sociedade.

É pensar no destinatário dos serviços públicos. Somos os maiores interessados nisso.

No entanto, é preciso considerar que a contratação pública para implementação de blockchain em um Município, por exemplo, é ainda algo bastante novo. Aquele Município está preparado o suficiente para realizar os estudos preliminares? O Termo de Referência? Para pensar na matriz de riscos? E em como fiscalizar a execução contratual?

Concordamos que é bastante distinto de lançar uma Ata de Registro de Preços para aquisição de papel higiênico, por exemplo, e olha que até para isso muitos estudos são necessários: quais são as especificações técnicas do papel higiênico que atende as necessidades daquele Órgão Público? Mesmo assim, é algo que dominamos com maior tranquilidade do que as especificações técnicas de um Pregão para implementação e execução de serviços de blockchain.

Como vimos, é evidente que contratos privados são bastante distintos de contratos administrativos em diversos aspectos. No caso dos contratos privados, por exemplo, a liberdade contratual se expressa com muita força, sempre nos limites da função social do contrato (assunto para outro momento). Tanto isso é verdade que o parágrafo único do artigo 421 do Código Civil expressamente prevê que "Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual".

Diferentemente, os contratos administrativos e as relações contratuais desta natureza orientam-se pelos  vamos lá que a lista é longa  princípios da legalidade, impessoalidade,  da moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa, da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação, da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável, assim como as disposições da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), conforme artigo 5º da Lei nº 14.133/2021, que passará a ter plena eficácia a partir de 1º de abril de 2023, com a revogação da Lei nº 8.666/93.

Diante do que foi exposto, dá para ver que as relações jurídicas entre público e privado e entre privados têm semelhanças e também muitas diferenças, e assim deve ser, por imperativo de várias leis e diplomas correspondentes a essas áreas.

Ocorre que tais diferenças não devem fazer imperar uma compreensão dicotômica entre público e privado. Como se o público estivesse contra o privado e vice-versa. Como se isso fosse a regra a observar ou como se essa visão fosse útil para proteger ou o que é público, ou o que é privado, ou a sociedade em geral.

Vamos nos lembrar dos primeiros parágrafos deste texto, ao referir que ambas as partes de um contrato, seja ele qual for, pela interdependência que a relação contratual faz surgir, esperam o sucesso recíproco naquela empreitada em que um figura como contratante e o outro como contratado.

Claro que, diante de situações concretas, os interesses podem entrar em conflito, porém, existe este mesmo contrato para tutelar e resolver esses conflitos, com seus direitos, deveres, responsabilidades, sanções. E existem vários tipos de contrato à disposição da Administração, porque são muitas as necessidades, são muitos os serviços, e precisamos contratar, inevitavelmente.

As contratações públicas de TIC (contratação de bens e serviços de Tecnologia da Informação e Comunicação no âmbito do Sisp — Sistema de administração dos Recursos de Tecnologia da Informação do governo Federal) permitem compreender que, cada vez mais, será por meio do diálogo entre público e privado que chegaremos às melhores soluções técnicas e inovadoras de interesse comum. E isso por imperativo das próprias normas vigentes no ordenamento jurídico brasileiro, a exemplo da Nova Lei de Licitações, do Marco Legal das Startups, da Lei do Governo Digital, e também por imperativo do tamanho das necessidades atuais da população e da natureza delas.

Além disso, por determinação das próprias normas, é preciso que as soluções tecnológicas e inovadoras contribuam para a sustentabilidade, em suas mais diversas dimensões: social, econômica, ambiental e empresarial.

Isso quer dizer que a Administração Pública deve conceder e delegar tudo que envolve a necessidade de TICs sem a realização de estudos precisos e sem a cautela necessária? Não, muito pelo contrário.

Impõe à Administração o dever de treinar seus servidores, quanto à operação e à compreensão das ferramentas tecnológicas mais atuais disponíveis no mercado. Como haverá a adequada fiscalização de um contrato se aquele que fiscaliza não dominar o objeto e as suas especificações técnicas?

O conhecimento gera autonomia.

É preciso que atores internos à Administração conheçam sobre os riscos da dependência tecnológica, é preciso que entendam sobre segurança cibernética, é preciso que saibam que os dados públicos consistem em ativo de extremo valor, que devem ser corretamente tutelados.

Trata-se da gestão e da governança de infraestrutura de TICs, sem falar daquelas ferramentas que podem ser obtidas por software aberto, e sem esquecer da interoperabilidade como regra, como determina a Lei do Governo Digital.

Isso tudo se faz necessário, porque quanto maior o conhecimento e melhor a definição das necessidades a serem satisfeitas por meio de contratações públicas, melhor será a proposta de contratação, a definição do objeto, a precisão da matriz de riscos, a fiscalização do contrato.

Maior também será a segurança jurídica, ao público e ao privado, que, por sua vez, assume o relevante compromisso de prestar serviços de TICs para a Administração Pública. Assim, saem ambos fortalecidos. Como dito no início, a isso se presta o contrato, seja ele qual for.

Voltemos às leis referidas, pois nos fornecem ferramentas importantes para compreendermos que a dicotomia não é a regra, bem pelo contrário. Essas normas privilegiam a compatibilidade entre licitações para inovações e inovações nas licitações. Vou citar duas delas.

A primeira ferramenta é expressamente definida como diálogo competitivo, prevista na Nova Lei de Licitações, e destina-se, conforme os incisos do artigo 32, a contratações de objeto que envolva, por exemplo, inovação tecnológica ou técnica; impossibilidade do órgão ou entidade ter sua necessidade satisfeita sem adaptação, etc.

Consiste em ferramenta de combate à assimetria informacional entre público e privado. E evidencia a importância literal do diálogo, em detrimento da dicotomia. É a modalidade de licitação em que a Administração realiza diálogos com licitantes previamente selecionados mediante critérios objetivos, com o intuito de desenvolver uma ou mais alternativas capazes de atender às suas necessidades, devendo os licitantes apresentar proposta final após o encerramento dos diálogos (artigo 6º, XLII, Lei nº 14.133/21).

Já o Marco Legal das Startups, além de dispor sobre os instrumentos de investimento em inovação, inaugura importante ferramenta à Administração: o ambiente regulatório experimental (sandbox regulatório), definido, de acordo com o artigo 2º, como o conjunto de condições especiais simplificadas para que startups possam desenvolver modelos de negócios inovadores e testar técnicas e tecnologias experimentais para a Administração.

O Programa de Ambiente Regulatório Experimental contribui muito com projetos inovadores à Administração Pública, sem que isso represente riscos aos envolvidos, pois o ambiente é controlado, seus efeitos também.

Apenas com esses dois exemplos é possível confirmar que não há inovação nem desenvolvimento sem o diálogo e a participação de múltiplos agentes: públicos, privados, acadêmicos. E também envolvem a nossa participação, cidadãos e destinatários dessas políticas, mas não para sustentarmos como regra visões dicotômicas limitantes e simplistas. As soluções efetivamente potentes se alcançam a partir de múltiplas perspectivas e arranjos a várias mãos, para que todos se sintam representados.

No meio disso tudo, não se pode esquecer da necessidade de formação também dos cidadãos, da expansão da cobertura de internet, a fim de promover autonomia e participação ativa em relação à tecnologia. Além disso, é preciso promover a tutela especial de crianças e idosos perante a tecnologia, caso contrário, o que deveria ser uma ferramenta, se revelará fator de exclusão e terá pouca aderência.

Por fim, precisamos abandonar o discurso da dicotomia como regra. Nos cabe a responsabilidade de atuar nessas propostas para aprimorá-las, não para destruí-las.

Autores

  • é advogada de Direito Público no RMMG Advogados. Mestra em Direito (UFRGS) e em Argumentação Jurídica (Universitá degli Studi di Palermo). Especialista em Gestão, Governança e Setor Público (PUC-RS). Professora na Faculdade de Direito João Paulo 2º, em Porto Alegre.

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