Opinião

'Desentendimentos' geram insegurança jurídica

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23 de dezembro de 2023, 15h18

Não é de hoje que se diz ser a segurança jurídica um dos pilares de nosso ordenamento jurídico, sendo certo que ao menos desde 1988 esse princípio advém de matriz constitucional. Muito embora seja mais comumente mencionada a proteção do direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada (artigo 5º, inciso XXXVI), certo é que a proteção da segurança foi explicitada em sentido mais amplo no próprio caput do dispositivo constitucional.

Nesse sentido, em boa hora o Código de Processo Civil editado em 2015 previu mecanismos para a uniformização da jurisprudência, de modo a reduzir a ocorrência de decisões divergentes para solucionar causas idênticas ou ainda para padronizar a aplicação de determinado entendimento jurídico. Desde então, viu-se uma proliferação de edição de decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em regime de repercussão geral e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) sob a sistemática de recursos repetitivos.

Conquanto tais instrumentos tenham especial relevância em razão da observância obrigatória dos enunciados editados, o princípio da segurança jurídica fez com que o legislador fosse além e previsse também o respeito e a coerência em relação ao posicionamento jurisprudencial como um todo e não apenas ao que se chama de precedentes vinculantes. Pelo menos em teoria, isso diminui os riscos daquilo que se chamava de “loteria processual”, notadamente quando processos idênticos poderiam ter desfechos distintos a depender do órgão julgador.

Nessa mesma linha, no ano de 2018, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro foi alterada para receber a inclusão de novos dispositivos, sendo que praticamente todos — senão todos — tendentes a preservar a segurança jurídica. Naquilo que importa para este ensaio, destaque-se o artigo 30, segundo o qual “as autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas”, inclusive por meio da edição de súmulas administrativas. Em movimento bastante similar ao que foi feito pelo legislador processual, esse dispositivo ganhou um parágrafo único especificamente para explicitar o caráter vinculante da jurisprudência administrativa.

Diante de sinais tão claros, e independentemente das críticas sobre a necessidade de uma mudança de hábitos para uma adequada incorporação da cultura de precedentes em nosso sistema jurídico, não há como se negar os reflexos da segurança jurídica no âmbito da atividade jurisdicional (judicial e administrativa), em especial no respeito à jurisprudência.

Em que pese identificar-se, em separado, fundamentos para embasar a imperiosidade de uniformização da jurisprudência nas searas judicial e administrativa, por certo que a matriz constitucional não permite orientação diversa da de que a segurança jurídica também pressupõe — talvez fosse melhor dizer impõe — uma coerência da jurisprudência administrativa com a judicial, pelo menos daquela proveniente do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.

Exatamente nesse diapasão, aliás, é o voto recentemente proferido pelo ministro Gilmar Mendes quando do julgamento do agravo regimental no Recurso Extraordinário com Agravo nº 1.208.460, oportunidade na qual assentou a possibilidade “de que órgãos autônomos — como CNJ, CNMP, o Tribunal de Contas da União, dentre outros — profiram decisão no sentido de afastar a aplicação de determinado ato normativo por vício de inconstitucionalidade, desde que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal seja pacífica em reconhecer a inconstitucionalidade da matéria”.

No mesmo voto, o magistrado ainda pontuou que, em oportunidade anterior (MS nº 31.667/DF), a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal já havia decidido que “nosso sistema não impede que a administração pública deixe de aplicar disposição normativa inconstitucional, assim entendida como aquela em confronto com a lei maior ou baseada em interpretação tida como incompatível pela Suprema Corte, em jurisprudência solidificada (MS 31.667/DF – AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, 2ª Turma, j. 11.9.2018)”.

É certo que surgirão questionamentos sob o argumento da autonomia e independência das instâncias administrativas, mas ainda que se concorde abstratamente com esses argumentos, não se pode fechar os olhos para um problema de ordem prática que é a insegurança jurídica (e possivelmente prejuízos) causada por posicionamentos diferentes das instâncias administrativa e judicial, principalmente quando há nesta última algo já consolidado, mesmo que não vinculante.

Foi o que ocorreu, por exemplo quando o Tribunal de Contas da União (Acórdão nº 971/2023) determinou que a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) se abstivesse de “aplicar primariamente a teoria da actio nata subjetiva a situações regidas por contratos administrativos de concessão”.

Assim se diz, pois a decisão foi tomada mesmo diante de um cenário em que o STJ possui casos julgados aplicando a teoria da actio nata subjetiva, inclusive por parte de sua corte especial (AgInt no EAREsp nº 1.662.149/MA, proferido em caso envolvendo responsabilidade civil). Esse posicionamento também é encontrado na jurisprudência das turmas que julgam matérias afetas ao Direito Público que contam com diversos julgados reconhecendo a aplicabilidade do entendimento. No âmbito da 1ª Turma, por exemplo, o AgInt no REsp nº 1.807.655/RO e o AgInt no REsp nº 1.737.182/MA, enquanto que no âmbito da 2ª Turma, o REsp nº 1607763/SC e o AgInt no REsp nº 1.716.638/SC.

Mencione-se, ainda, que muito embora o acórdão proferido quando do julgamento do REsp nº 1.470.568/SP, que apreciou questão envolvendo especificamente um contrato administrativo (de arrendamento de área portuária), contenha afirmação que pode suscitar dúvida sobre a adoção da teoria da actio nata subjetiva, deixou claro que “o termo inicial do prazo prescricional a publicação do contrato”, ou seja, somente após a superveniência de um ato que tornou presumido o conhecimento do ato.

Além disso, mesmo considerando a questão atinente à independência e autonomia das instâncias administrativas, não se pode esquecer que é a Constituição que atribui ao STJ a competência para uniformizar a interpretação da legislação infraconstitucional e ao STF a missão de dar a última palavra sobre o sentido das normas constitucionais. Isto é, quando alguma instância administrativa confere interpretação divergente daquela já traçada por algum Tribunal Superior, pode-se dizer, em última análise, que estaria configurada uma invasão de competência a eivar o ato de ilegalidade.

Sobre isso, e particularmente no que diz respeito a decisões administrativas que se relacionem com normas constitucionais, é importante destacar que a obrigatoriedade da observância é ainda mais abrangente quando se atenta para o fato de que o Supremo Tribunal Federal já se posicionou sobre a eficácia expansiva das declarações de inconstitucionalidade realizadas fora do controle abstrato (embargos de declaração nas ADIs nº 3.406/RJ e 3.470/RJ). Se não o for por tal caminho, penso que ainda o será por outro, uma vez que estará atentando contra a segurança jurídica que a Constituição busca proteger.

De todo modo, o que se está a propor aqui não é uma batalha de argumentos para sustentar subserviência da instância administrativa frente à jurisprudência judicial, mas sim um viés de cooperação e de observância dos entendimentos já fixados, a fim de evitar que os “desentendimentos” entre as jurisprudências administrativa e judicial acarretem um cenário de insegurança jurídica que prejudica não apenas a criação de um melhor ambiente de mercado, como ainda gera ineficiência na medida em que assoberba ainda mais as atividades do Poder Judiciário.

O que se pretende, na verdade, é provocar uma reflexão para o fato de ser mais importante a missão de zelar pela segurança jurídica, especialmente a partir da necessária coerência entre instâncias judiciais e administrativas.

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