Opinião

La Question prioritaire de constitutionnalité, o controle de constitucionalidade francês

Autor

  • Vanessa Alvarez

    é advogada especialista em Direitos Humanos e Direito Constitucional mestre em Direito Internacional titular de LLM em Direito Francês e Europeu ambos na na Universidade Paris 1 Panthéon - Sorbonne mestre em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutoranda em Direito Internacional Público na Faculdade de Direito de Lisboa.

22 de dezembro de 2023, 14h50

Na França, até 1º de março de 2010 uma lei só poderia ter a sua constitucionalidade contestada no intervalo entre a sua adoção pelo Parlamento e a sua promulgação pelo presidente da República, ou seja, somente existia um controle a priori, já que após a entrada e vigor, as leis não estavam mais sujeitas a eventual controle.

A ideia inicial de criação da questão prioritária de constitucionalidade QPC nasce em 1989 com Robert Badinter então presidente do Conselho Constitucional, entretanto foi apenas com a Comissão de Reflexão e de Propostas para a Modernização e o Reequilíbrio das Instituições, conhecida como “Comissão Balladur”, criada por Nicolas Sarkozy, presidente da República, que o projeto de revisão constitucional levou à criação do procedimento QPC em 23 de julho de 2008.

O procedimento da questão prioritária de constitucionalidade (QPC) é relativamente recente, foi introduzido no artigo 61-1 Constituição da V República [1] pela revisão constitucional de 23 de julho de 2008, regulamentado por uma lei orgânica em 2009 (La loi organique n° 2009-1523 du 10 décembre 2009) e entrou em vigor em 1 de março de 2010.

No âmbito do procedimento do controle da constitucionalidade introduzido pela QPC o Conselho Constitucional é instado a se manifestar incidentalmente em processos que corram perante o Conselho de Estado (jurisdição pública) ou perante a Corte de Cassação (jurisdição privada). O controle pela QPC é posterior e possui como principal consequência a revogação da lei.

O procedimento da QPC
A QPC deve ser suscitada por escrito, em manifestação separada dos autos principais com a devida fundamentação a fim de facilitar o seu tratamento rápido e prioritário. Inclusive, se o processo principal for extinto, a QPC, em regra, será mantida. Vale ressaltar que não é exigência legal a representação por um advogado, salvo quando a própria jurisdição exige.

A exigência de fundamentação da alegação permite ao tribunal que aprecia a QPC exercer o seu papel de filtro, nomeadamente para apreciar a gravidade da questão colocada. O peticionário deve, portanto, indicar de que forma a disposição legislativa que contesta é, na sua opinião, contrária a um direito ou liberdade garantidos pela Constituição.

Existe um duplo filtro procedimento, pois não é possível apresentar a QPC diretamente perante o Conselho Constitucional como ocorre no controle concentrado brasileiro porque apenas o Conselho de Estado ou a Corte de Cassação podem submeter a QPC ao Conselho Constitucional através do “reenvio” no prazo de oito dias.

No âmbito penal, excepcionalmente, é possível suscitar a QPC durante a investigação criminal, quando ela será remetida para o tribunal de instrução de segunda instância.

Obtempere-se que há outra exceção que diz respeito aos processos em que o Conselho Constitucional é chamado a pronunciar-se em sede de “foro privilegiado” como juiz das eleições presidenciais, legislativas e senatoriais, ou como juiz do referendo: nestas matérias, uma QPC pode ser-lhe diretamente suscitada por ocasião de um processo pendente perante ele (não há duplo filtro).

As condições para a admissão da QPC são as seguintes: 1) a disposição impugnada deve ser aplicável ao litígio ou ao processo, ou constituir o fundamento da ação penal; 2) a disposição nunca foi declarada conforme à Constituição na fundamentação e na parte dispositiva de uma decisão do Conselho Constitucional, exceto se as circunstâncias se tiverem alterado; 3) a questão deve ser séria.

O Conselho de Estado ou a Corte de Cassação, a depender da jurisdição, deve decidir em no máximo três meses a contar do recebimento da QPC, se irá submeter a questão ao Conselho Constitucional. Se o prazo não for respeitado, a QPC é diretamente encaminhada ao Conselho Constitucional. É importante ressaltar que a questão jamais poderá ser suscitada de ofício por um juiz de primeira instância ou mesmo no âmbito dos tribunais.

O Conselho Constitucional recebe uma cópia da decisão fundamentada pela qual o Conselho de Estado ou o Tribunal de Cassação decide não submeter uma questão prioritária de constitucionalidade à sua apreciação.

A partir do recebimento da QPC, o presidente do Conselho Constitucional notifica imediatamente o presidente da República, o primeiro-ministro e os presidentes da Assembleia Nacional e do Senado, que podem apresentar manifestação fundamentada a respeito da questão.

O Conselho Constitucional deve se pronunciar no prazo de três meses a contar da data em que a questão lhe é submetida e as partes têm a possibilidade de apresentar as suas observações em contraditório. A audiência é pública, salvo nos casos excepcionais definidos pelo regulamento interno do Conselho Constitucional.

A decisão do Conselho Constitucional deve ser fundamentada e será notificada às partes e comunicada ao presidente da República, ao primeiro-ministro e aos presidentes da Assembleia Nacional e do Senado. Perante uma “jurisdição financeira”, o processo é comunicado ao procurador-geral logo que seja invocado o fundamento de que uma disposição legislativa viola os direitos e liberdades garantidos pela Constituição, para que este se pronuncie.

Segundo o artigo 62 da Constituição francesa de 1958 pode ser realizada a modulação temporal de efeitos concernente ao tempo da revogação da norma. A decisão do Conselho Constitucional é irrecorrível e vincula os poderes públicos, as autoridades administrativas e jurisdicionais.

Em regra, o processo principal é suspenso, salvo quando houver privação da liberdade, mas não é suspenso o inquérito policial. Além disso, quando a suspensão da instância for suscetível de ter consequências irremediáveis ou manifestamente excessivas para os direitos de uma parte, o tribunal que decide submeter a questão pode pronunciar-se sobre os pontos que devem ser decididos de forma imediata.

O parâmetro: Le bloc de constitutionalité de Louis Favoreu
A Constituição francesa foi promulgada em 4 de outubro de 1958 e apenas o seu texto possuía valor constitucional. Contudo, em 1971 o Conselho Constitucional atribuiu valor constitucional ao preâmbulo da Constituição de 1946 (décision n˚ 71-44 DC), quando foi reconhecida pela primeira vez a violação de princípios fundamentais da República francesa.

O bloc de constitutionalité [2][3] designa o conjunto normativo utilizado pelo Conselho Constitucional como parâmetro do controle de constitucionalidade francês, quais sejam: 1) A Constituição de 4 de outubro de 1958;  2) A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de agosto de 1789; 3) O Preâmbulo da Constituição de 27 de outubro de 1946 e a 4) A Carta do Meio Ambiente de 2004.

A QPC e quaisquer decisões importantes
Em 2013, o Conselho Constitucional reconheceu na decisão nº 2013-353 QPC, de 18 de outubro de 2013, a ausência do direito à “cláusula de consciência” por parte do tabelião de registro civil, ou seja, que os conservadores do registro civil não podem invocar uma cláusula de consciência para não casarem casais do mesmo sexo.

Pela decisão de 29 de julho de 2016 o Conselho Constitucional reconheceu a inconstitucionalidade do artigo 274-1 do código civil francês, que permitia ao juiz de condicionar a concessão do pleito de divórcio ao pagamento de pensão alimentícia, conforme os artigos 2 e 4 da Declaração de 1789.

Ainda, em 2018, através da decisão nº 2018-717/718 QPC, de 6 de julho de 2018, o Conselho Constitucional reconheceu a inconstitucionalidade do delito de entrada, circulação irregular de estrangeiros em reconhecimento ao princípio constitucional da fraternidade, do qual decorre a liberdade de ajudar os outros, para fins humanitários, independentemente de residirem legalmente em França [4].

Também, em 14 de dezembro de 2023 o Conselho Constitucional reconheceu a conformidade do artigo 542-10-1 do Código do Meio Ambiente (estocagem de dejetos nucleares) ao artigo 1˚ da Carta do Meio Ambiente de 2004 (parte do bloco de constitucionalidade) em reconhecimento ao direito ao meio ambiente equilibrado das futuras gerações [5]. Paradoxalmente, o Conselho decidiu pela conformidade da norma, mas registrou que o legislador teria adotado diversas medidas para evitar a disseminação de substâncias radioativas.

Por fim, segundo dados do QPC 360˚[6] portal de estudos sobre a QPC em 2020, quando completou 10 anos de existência, o Conselho Constitucional já havia publicado mais de 740 decisões referente à QPC.

 


[1] Article 61-1 Version en vigueur depuis le 25 juillet 2008Création LOI constitutionnelle n°2008-724 du 23 juillet… – art. 29
Lorsque, à l’occasion d’une instance en cours devant une juridiction, il est soutenu qu’une disposition législative porte atteinte aux droits et libertés que la Constitution garantit, le Conseil constitutionnel peut être saisi de cette question sur renvoi du Conseil d’État ou de la Cour de cassation qui se prononce dans un délai déterminé.
Une loi organique détermine les conditions d’application du présent article.

La loi organique n° 2009-1523 du 10 décembre 2009 relative à l’application de l’article 61-1 de la Constitution a été publiée au Journal officiel du 11 décembre 2009

[2] Louis Favoreu commente ainsi cette formule : cette déclaration de principe ajoute au texte de la constitution bien d’autres éléments […] la conformité à la constitution englobe la conformité à des dispositions expresses mais incluses dans des textes extérieurs à la Constitution ; mais surtout le fait que la conformité est vérifiée à l’égard de principes fondamentaux ou généraux que le juge constitutionnel définit lui-même à partir des textes dont ils sont issu. L. Favoreu, La Constitution et son jugeop. cit., p. 546.

[3] L. Favoreu, « Le principe de constitutionnalité. Essai de définition d’après la jurisprudence du Conseil constitutionnel », Recueil d’études en hommage à Charles Eisenmann, Éditions Cujas 1975 rééd. 1977, p. 34.

[4] [Délit d’aide à l’entrée, à la circulation ou au séjour irréguliers d’un étranger],

[5] Le Conseil d’État confirme l’utilité publique du projet 

Les neuf sages du Conseil constitutionnel ayant confirmé la constitutionnalité de l’article L. 542-10-1 du Code de l’environnement, l’affaire est retournée devant le Conseil d’Etat qui a dû statuer sur la légalité du décret n° 2022-993 du 7 juillet 2022. La Haute juridiction administrative a rejeté la requête présentée par les associations de protection de l’environnement et les riverains. En particulier, le Conseil d’Etat note que « le dossier prévoit que la réversibilité du stockage des déchets radioactifs sera testée grâce à des essais de récupération des colis de déchets pendant la phase industrielle pilote, d’abord sur des maquettes de colis avant le début des opérations de stockage, puis dans des conditions réelles ». Enfin, il estime, après avoir mis en balance les avantages et les inconvénients, en termes de coût notamment, que le projet répond bien à un besoin d’utilité publique. (CE, 1erdécembre 2023, n° 467331, 467370)

https://www.gazettenormandie.fr/article/conseil-constitutionnel-les-sages-consacrent-un-droit-des-generations-futures-en-matiere-environnementale

[6] Conteúdo disponível em: https://qpc360.conseil-constitutionnel.fr. Acesso em 18.12.2023

Autores

  • é advogada do escritório Zanin Martins Advogados, especialista em Direitos Humanos e Direito Constitucional, mestre em Direito Internacional na Universidade Paris 1 Panthéon—Sorbonne e secretária-geral do Lawfare Institute.

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