Opinião

Declaração de vínculo de emprego e autoridade do STF

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22 de dezembro de 2023, 19h12

O Supremo Tribunal Federal tem julgado reclamações constitucionais cassando decisões da Justiça do Trabalho que anularam contratos de natureza civil e declararam o vínculo de emprego, condenando as empresas, muitas vezes, a pagarem elevadas quantias a título de verbas trabalhistas. Esses contratos anulados pela JT podem ser celebrados entre profissionais liberais e a empresa ré ou mesmo entre duas empresas, sendo que, nesse caso, o sócio da empresa contratada é quem futuramente postula o reconhecimento de vínculo com a empresa contratante.

Mas, independentemente da forma como a relação de fundo se apresenta, a declaração de vínculo da Justiça do Trabalho é atualmente uma decisão potencialmente divergente dos julgados na ADPF 324 e no RE 958.252, possibilitando a sua discussão através da reclamação constitucional.

Essa postura do STF vem causando desconforto em membros da Justiça do Trabalho, advogados militantes, pesquisadores, professores e demais profissionais que labutam em seu entorno. Aponta-se, em suma, que essas decisões proferidas nas reclamações, as quais estão dentro de um contexto mais amplo, têm adentrado indevidamente na competência da justiça especializada, a quem competiria julgar as relações de trabalho e verificar a existência ou inexistência de subordinação para, então, declarar ou não o vínculo de emprego. No entanto, ao menos no que diz respeito às reclamações anuladoras de acórdãos que declaram o vínculo, este subscritor, advogado trabalhista, respeitosamente, ousa discordar.

Na pesquisa de mestrado de um dos subscritores [1], foi estudada a questão atinente à subordinação. Ela, em síntese e na sua definição mais tradicional, consiste na disponibilização da força de trabalho para ser dirigida pelo contratante. Nessa pesquisa, compreendeu-se, à luz de autores clássicos e contemporâneos, que esse requisito da relação de emprego está presente em qualquer contrato, ainda que em graus menores em relação ao contrato de emprego. Por exemplo, um contrato de empreitada para a construção de uma casa, ainda que seja de natureza civil e ainda que o empreiteiro tenha muita liberdade na execução, não está livre de algum direcionamento pela outra parte.

Sendo assim, para fins juslaborais, não é possível afirmar cabalmente que a subordinação está presente em uma situação posta sob julgamento. A determinação de sua presença ou ausência inevitavelmente ocorre através da análise de indícios da subordinação. Estes, por sua vez, podem ser maiores ou menores, mais intensos ou menos intensos. Por exemplo, a existência de uma jornada previamente fixada pelo tomador da mão-de-obra e cumprida pelo prestador de serviço é talvez o indício por excelência de que se esses contratantes são qualificados como empregador e empregado, respectivamente. Da mesma forma, o direcionamento diário e constante diário das tarefas é um indício fortíssimo. Contudo, há indícios menos evidentes e resolutivos, como, na ausência daqueles, a existência de metas e a necessidade de prestação de contas.

Isso nos leva a concluir que, considerando a condenação geralmente expressiva que decorre dos processos de reconhecimento de vínculo, a investigação sobre a subordinação deveria ser uma tarefa cuidadosa, na qual o Juízo deveria analisar tais indícios meticulosamente, com responsabilidade e autocontenção. Porém, isso não ocorre na Justiça do Trabalho. O profícuo debate jurisprudencial e doutrinário sobre a subordinação conduziu os operadores à ampliação gradual e constante da sua definição, que possui várias acepções distintas e não excludentes. Porém, dessa discussão da qual não houve uma “tese vencedora”, também emergiu a insegurança jurídica.

A ideia sobre esse requisito atualmente lembra uma grande caixa, de onde o julgador retira a definição que melhor lhe convém para declarar o vínculo no caso concreto. Encontram-se acepções subjetivistas ou objetivistas, e mesmo denominações variadas, como subordinação clássica, estrutural, reticular, algorítmica e outras mais. E, assim, em um processo em que se discute a relação empregatícia, a condenação é algo sempre presente no horizonte, mesmo que não seja possível saber exatamente a razão pela qual o empregador será condenado. Afinal, a espécie de subordinação que servirá como fundamento depende do julgador [2].

Portanto, nos casos de divergência dos julgados na ADPF 324 e no RE 958.252, quando o STF passa a cassar decisões manifestamente excessivas, ele não subtrai a competência da Justiça do Trabalho de analisar as ações de vínculo. Na verdade, a Corte impõe os seus julgados em que decidiu ser possível, pela aplicação conjunta do valor social do trabalho com a livre iniciativa, a organização empresarial em bases distintas da relação de emprego.

É uma aplicação dos valores e princípios constitucionais que certamente deve limitar a atuação da Justiça do Trabalho, mas para que ela observe os precedentes e não viole os demais princípios além daqueles mais afeitos à disciplina. Essa especializada, muito embora aplique com abundância os princípios e tenha em alta conta o seu valor normativo, costuma fazê-lo esquecendo-se dos limites jurídicos que podem ser impostos outros princípios antagônicos. Essas decisões do STF, nas reiteradas reclamações que vem julgando, aparecem em boa hora, possibilitando demonstrar-se o equívoco nessa conduta. Acertadamente, a Corte Constitucional já uniformizou a questão. Agora, a Justiça do Trabalho deve adequar-se e passar a respeitar os limites a ela impostos pelo STF.


[1] LEMOS, M. G. Z.. Análise da dependência como requisito da relação de emprego: uma releitura a partir da noção de cláusulas gerais. [Dissertação de Mestrado]. UFRGS (Faculdade de Direito – PPGD): Porto Alegre, 2022.

[2] Na mesma dissertação acima mencionada, há uma pesquisa sobre os pedidos de vínculo das revendedoras de cosméticos, no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, na qual é possível demonstrar que há insegurança tanto quanto à possibilidade de condenação como no tocante ao fundamento da eventual condenação: o reclamado não tem expectativa sobre se vai ser condenado ou não, e, se for, não é possível saber o porquê.

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