Opinião

As regras CFC-pessoa física da Lei nº 14.754/23

Autor

  • Aluizio Porcaro Rausch

    é mestre em Direito pela UFMG LL.M. em Tributação Internacional pela NYU e advogado (Brasil e NY) no Sacha Calmon — Misabel Derzi Consultores e Advogados.

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18 de dezembro de 2023, 18h32

A Lei nº 14.754/2023, decorrente do chamado PL das Offshores e dos fundos exclusivos (Projeto de Lei nº 4.173/2023), foi publicada no dia 13/12/2023. A versão oficial não diverge significativamente daquela aprovada pela Câmara dos Deputados em 25/10/2023 e apresentou apenas um veto em relação à versão aprovada pelo Senado em 4/12/2023 — artigo 21, §7º, que restringia a definição de bolsas de valores e mercados de balcão.

Sabe-se que a lei é um amálgama de tentativas frustradas anteriores (i.e. Medida Provisória nº 1.171/2023, Projeto de Lei de Conversão nº 15/2023, Medida Provisória nº 1.184/2023). Conjectura-se que essa combinação de textos é estratégia para suplantar as vedações constitucionais de reedição e de nova proposição em mesma sessão legislativa (Constituição, artigo 60, §5º, artigo 62, §10, e artigo 67).

De todo modo, a Lei nº 14.754/2023 versa sobre quatro grandes temas, não apenas dois: (1) a tributação de aplicações financeiras no exterior diretamente detidas por pessoas físicas residentes fiscais no Brasil (artigos 3º e 4º); (2) a tributação contemporânea de lucros de controladas no exterior diretamente detidas por pessoas físicas residentes fiscais no Brasil (artigos 5º a 8º); (3) a tributação relativa a trusts no exterior (artigos 10 a 13); e (4) a tributação de fundos de investimento localizados no Brasil (artigos 16 a 41). Este artigo trata exclusivamente de certos aspectos do segundo tema, isto é, a tributação contemporânea de lucros de controladas no exterior diretamente detidas por pessoas físicas residentes fiscais no Brasil.

De pronto, verifica-se que o termo offshores não é bem empregado para descrever a Lei nº 14.754/2023. Isso, porque o Brasil já possui regras de tributação contemporânea dos lucros de controladas e coligadas no exterior, inclusive as localizadas em chamados “paraísos fiscais”. Logo, a nova lei não tem exclusividade em versar sobre offshores.

As regras CFC (controlled foreign company) constantes da Lei nº 12.973/2014 (artigos 76 a 92), contudo, são aplicáveis somente a pessoas jurídicas residentes fiscais no Brasil. Assim, as novas regras CFC constantes da Lei nº 14.754/2023 (artigos 5º a 8º) são complementares, não substitutivas, àquelas outras e preenchem uma lacuna histórica da tributação brasileira, na medida em que alcançam pessoas físicas residentes fiscais no Brasil.

Dadas as várias diferenças mecânicas entre esses subsistemas, no entanto, é apropriado nominalmente distingui-los. Logo, se as novas são regras CFC-PF, ficam as já em vigência rebatizadas de regras CFC-PJ, pelo menos para este artigo.

Dá-se um desconto pela terminologia, porque a própria Lei nº 12.973/2013 cometeu equívoco em denominar as regras CFC-PJ de “tributação em bases universais das pessoas jurídicas”. O problema está em dar o nome de continente a algo que é conteúdo. A tributação em bases universais (TBU, worldwide basis taxation) se dá quando um residente fiscal é tributado na jurisdição de residência em relação a renda auferida no exterior, sendo o seu diametral oposto a tributação em bases territoriais (territorial basis taxation).

Naturalmente, regras CFC geram esse efeito quando a renda oriunda do exterior — indiretamente auferida pelo residente fiscal e diretamente auferida pela pessoa jurídica não-residente fiscal — é tributada na jurisdição de residência do residente fiscal independentemente de realização. Ocorre que também há TBU quando o residente fiscal aufere renda diretamente no exterior, por exemplo os próprios rendimentos decorrentes de aplicações financeiras no exterior (também alcançados pela Lei nº 14.754/2023, artigos 3º e 4º).

Essa discussão terminológica, contudo, não é mero tecnicismo tributário, pois revela uma significativa distinção entre as regras CFC-PF e as regras CFC-PJ. Nos termos do artigo 5º, §5º, da Lei nº 14.754/2023, o novo regime de tributação é aplicável apenas quando a entidade no exterior (1) esteja localizada em jurisdição de tributação favorecida ou seja submetida a regime fiscal privilegiado ou (2) apure renda ativa própria inferior a 60% da renda total. Cada uma dessas categorias mereceria um artigo próprio para ser devidamente discutida. Mas, para os presentes fins, basta a conclusão de que as regras CFC-PF majoritariamente visam a renda passiva no exterior, isto é, aquela composta de royalites, juros, dividendos, etc., e não a decorrente da venda de mercadorias e da prestação de serviços.

Portanto, as novas regras se distinguem das regras CFC-PJ na medida em que estas alcançam ambas renda ativa e renda passiva no exterior sem qualificações percentuais. Paralelamente, o argumento acadêmico de ser impróprio o uso do termo “regras CFC”, ou semelhantes, a esse tipo de subsistema de tributação que alcance renda ativa é tanto menos cabível em relação às regas CFC-PF.

Avançando, as regras CFC-PF trazem também inovação quanto ao conceito de controle para fins de inclusão contemporânea da renda oriunda do exterior. Pelo artigo 5º, §1º, verifica-se controle quando, em relação à pessoa jurídica estrangeira, a pessoa física residente fiscal no Brasil: (1) tiver preponderância nas deliberações sociais ou poder de eleger ou destituir a maioria dos seus administradores; ou (2) detiver mais do que 50% do capital social, dos direitos à percepção de lucros ou dos direitos de recebimento dos ativos em caso de liquidação.

Sem adentrar nas especificidades de controle indireto e de controle conjunto, observa-se que o legislador essencialmente manteve a definição de controle como função do direito de voto da Lei das SA (artigo 243, §2º) e importou a definição de controle como função do direito sobre capital e ativos das regras CFC-PJ (artigo 83). Por outro lado, adicionou mais um elemento à definição de controle, o direito à percepção de lucros.

Sabe-se que esse terceiro elemento, como alternativa expressa aos outros dois, foi objeto de recomendação pela OCDE no Relatório Final da Ação 3 do Projeto Beps. Tanto que regras CFC anteriores ao Projeto Beps tendem a apresentar apenas o direito de voto e o direito sobre capital e ativos em sua definição de controle, enquanto que regras CFC que lhe são posteriores tendem a expressamente conter, também, o direito à percepção de lucros em sua definição de controle — ex.: Atad da União Europeia, artigo 7(1) entitlement-to-profits test. Conjectura-se que isso se deu em contramedida a arranjos que possam dissociar o direito à percepção de lucros dos demais direitos decorrentes da titularidade de participação societária, mas a OCDE não é absolutamente clara nesse sentido.

Idealmente, após configurado o controle, o montante de lucros do exterior a ser incluído na base de cálculo doméstica é calculado em função do montante de dividendos que a pessoa doméstica receberia em uma distribuição hipotética — ex.: Subpart F Rules dos EUA, §951(a). Logo, o direito à percepção de lucros é elemento que tradicionalmente compõe não a definição de controle em si, mas o método de cálculo da inclusão proporcional para fins de regras CFC.

Reconhece-se que, estando esse elemento tanto na definição de controle quanto no cálculo de inclusão proporcional, como parece ser a tendência atual de regras CFC, o risco de dupla tributação tende a zero. Isso, porque este segundo é, efetivamente, o gargalo de combate à dupla tributação neste contexto específico.

Fortuitamente, assim foram desenhadas as regras CFC-PF, cuja regra de inclusão proporcional do artigo 5º, §10, III, vale-se do termo “proporção da participação da pessoa física nos lucros da controlada, direta ou indireta, no exterior”. A redação poderia ser melhor, porém, porque é pressuposto não ter havido deliberação para pagamento de dividendos, pelo que a pessoa física residente fiscal, do ponto de vista societário, tem mera participação potencial nos lucros.

De todo modo, essa redação já representa avanço em relação às regras CFC-PJ. Isso, porque estas, no caput do artigo 76 (e em outros dispositivos legais), valem-se do termo “proporção de sua participação em cada controlada, direta ou indireta” sem referência a lucros em uma distribuição hipotética. O termo “participação”, neste caso, remete a titularidade de participação societária, cujo percentual nominal não necessariamente corresponde ao montante de lucros proporcionalmente alocáveis à pessoa doméstica em uma distribuição hipotética.

Em razão desse desarranjo conceitual, existe o potencial de sobretributação, de subtributação e de dupla tributação por multiplicação ficta do total de lucros não-distribuídos, conforme o caso. Disso, portanto, a necessidade de interpretação restritiva do termo “participação” no artigo 76 da Lei nº 12.973/2023 como função dos lucros que seriam recebidos em distribuição hipotética.

Em que pese a Lei nº 14.754/2023 ter acertado na regra de inclusão proporcional, falhou em expressamente prevenir sobreposição de aplicação de regras CFC-PF e regras CFC-PJ. Isso, porque ambos esses subsistemas normativos promovem a abordagem individual das entidades no exterior (entity approach), isto é, cada entidade direta e indireta é tratada autonomamente, sem combinação de atributos tributários de entidades localizadas em uma mesma jurisdição (jurisdictional approach/blending) ou em nível global (worldwide approach/blending).

Assim, na situação em que pessoa física residente fiscal no Brasil detém controle sobre pessoa jurídica também residente fiscal no Brasil, esta que, por sua vez, detém controle direto sobre a entidade no exterior, haveria sobreposição: pela literalidade de cada diploma, as regras CFC-PF se aplicariam em razão do controle indireto e as regras CFC-PJ se aplicariam em razão do controle direto. Logicamente, a melhor interpretação nunca é meramente literal, especialmente quando gera dupla tributação.

Já em interpretação sistemática, deve-se concluir que o primeiro nível de controle no Brasil, isto é, a primeira pessoa residente fiscal no Brasil que detém controle sobre a entidade estrangeira, em análise “de baixo para cima”, determina qual subsistema deve ser aplicado. Se for pessoa física, aplicam-se as regras CFC-PF; se for pessoa jurídica, aplicam-se as Regras CFC-PJ.

Veja-se que esclarecimento expresso nesse sentido poderia ter sido facilmente positivado pela Lei nº 14.754/2023. Afinal, o próprio artigo 86 da Lei nº 12.973/2023 determina expurgo em caso de sobreposição das regras CFC-PJ com regras de preço de transferência e de subcapitalização. Bastava, portanto, dispositivo de curta redação prevendo preferência de aplicação conforme o caso, o que se espera venha previsto em nível infralegal.

Sem prejuízo do acima, são ainda relevantes algumas considerações sobre o creditamento de tributo estrangeiro sob o artigo 5º, §15, das regras CFC-PF. Este dispositivo também mereceria estudo exauriente próprio, mas, em suma, prevê o creditamento, no Brasil, do tributo eventualmente cobrado pela jurisdição de residência da controlada sobre os lucros desta (corporate income tax). Correlatamente, eventual retenção na fonte exigida pela jurisdição de residência da controlada quando do pagamento de dividendos não é creditável no Brasil, efeito que é coerente com a isenção de dividendos qualificados sob o artigo 5º, §11 (previously taxed income).

Porém, a redação do §15 poderia ter sido mais clara sobre o creditamento de eventual retenção na fonte exigida por uma terceira jurisdição sobre rendimentos auferidos diretamente pela controlada no exterior. Por exemplo, 30% withholding income tax nos EUA sobre certos rendimentos passivos auferidos por uma holding nas Ilhas Virgens Britânicas, esta detida por pessoa física residente fiscal. Essa falta de clareza é especialmente impactante quando a jurisdição de residência da controlada não tributa a renda corporativa, pelo que não haveria oportunidade de creditar essa retenção da fonte já no exterior.

Não obstante, todos os rios correm para o mar. Considerando, portanto, que essa retenção na fonte se daria sobre rendimentos que, em última análise, comporiam os lucros da controlada no exterior, deve-se concluir pela possibilidade de seu creditamento no Brasil (artigo 5º, §15, II), sem prejuízo dos limites aplicáveis (artigo 5º, §15, IV). Do contrário, os contribuintes podem se valer da eleição de transparência do artigo 8º, um check-the-box acanhado, para viabilizar esse creditamento.

Ainda, o artigo 5º das Regras CFC-PF foi infeliz por não trazer autorização expressa de carregamento do excesso de tributo estrangeiro para fins de creditamento no Brasil em anos posteriores. Havendo autorização para aproveitamento contingenciado do prejuízo acumulado no exterior sob o §14 do artigo 5º, semelhante regra de carregamento para créditos de tributo estrangeiro é cabível por coerência sistêmica, se por nada mais.

Foram essas algumas considerações sobre as regras CFC-PF constantes da Lei nº 14.754/2023. Muitas outras considerações podem ainda ser feitas, especialmente por se tratar de legislação nova. Seja como for, é inquestionável que, já para o ano 2024, o IRPF se tornou mais complexo.

Autores

  • é doutorando em Direito (USP), LL.M. em Tributação Internacional (NYU), mestre e bacharel em Direito (UFMG) e advogado no Sacha Calmon—Misabel Derzi Consultores e Advogados.

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