Opinião

Nas brumas de Avalon: cooperação judiciária como alternativa para a desjudicialização

Autor

  • Rosalina Moitta Pinto da Costa

    é doutora em Direito Processual Civil pela PUC-SP mestre em Direito Agrário pela UFPA coordenadora do Norte da Abep associada do IBDP e da Annep líder do Grupo de Pesquisa "Inovações no Processo Civil" — UFPA/CNPQ e professora titular da UFPA.

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12 de dezembro de 2023, 21h36

No romance épico As Brumas de Avalon, Marion Zimmer Bradley contrapõe dois reinos — de Camelot e de Avalon —, que se confrontam, gradualmente, numa passagem do tempo. São dois universos distintos, paralelos, cheios de magia, fadados a se separarem. Mas até a separação total, esses mundos encontram-se nas brumas: nas brumas de Avalon.

Assim também se encontram dois institutos aparentemente antagônicos: a cooperação judiciária e a desjudicialização. A cooperação judiciária nacional busca, de modo geral e mais amplo, a eficiência do Poder Judiciário [1], enquanto a desjudicialização visa retirar determinados atos da esfera de atuação do Judiciário [2].

A desjudicialização da execução civil de quantia certa de título executivo judicial e extrajudicial tem sido debatida com foco no Projeto de Lei nº 6.204/2019, de autoria da senadora Soraya Thronicke, que propõe, em linhas gerais, a criação de um microssistema desjudicializado “[o]bjetivando simplificar e desburocratizar a execução de títulos executivos civis e, por conseguinte, alavancar a economia do Brasil” [3].

O PL 6.204 visa retirar os atos executórios do Judiciário. Em linhas gerais, ele transfere a competência de diversos atos ao “agente de execução” — atividade a ser exercida pelos tabeliães de protesto, conforme dispõe o projeto —, cujos poderes importam, entre outras incumbências, descritas no artigo 4º do PL [4], fazer o juízo de admissibilidade do título executivo, verificando inclusive a ocorrência de prescrição e decadência, fazer a citação do executado para pagamento do título, realizar penhora e atos de expropriação, extinguir ou suspender a execução, consultar o juízo para sanar dúvidas, encaminhar as dúvidas suscitadas pelas partes ou por terceiros, em casos de decisões proferidas pelo próprio tabelião e não reconsideradas.

Por sua vez, a cooperação judiciária nacional consubstancia-se em atos de gestão atípicos que visam à solução ótima de cada processo e à efetividade do funcionamento do Judiciário. Trata-se de uma técnica de gerenciamento que permite ao juiz alcançar, diante de cada caso concreto, a prestação da tutela jurisdicional de forma mais célere e efetiva, evitando a prática de atos inúteis ou repetitivos. A cooperação judiciária pode dar-se mediante um ato entre dois ou mais juízes, entre órgãos do próprio Judiciário, ou ainda entre órgãos do Poder Judiciário e órgãos administrativos [5].

No que diz respeito à cooperação entre órgãos do Poder Judiciário, a Recomendação n.º 350/2020 do CNJ estabelece uma Rede Nacional de Cooperação Judiciária composta pelos magistrados de cooperação judiciária. pelos Núcleos de Cooperação Judiciária de cada um dos tribunais e brasileiros e pelo Comitê Executivo da Rede Nacional de Cooperação Judiciária (artigo 7º). O magistrado de cooperação [6], tem a função de interligar os juízes, imprimindo maior celeridade aos atos judiciais, a fim de dar maior fluidez e agilidade à comunicação entre os órgãos judiciários, não só para o cumprimento de atos judiciais, mas também para a harmonização e a agilização de rotinas e procedimentos forenses. Os Núcleos de Cooperação Judiciária são um espaço institucional de diálogo entre os juízes para que possam identificar problemas e características da litigiosidade de sua localidade, a fim de traçarem coletivamente uma política judiciária adequada à realidade [7]. E, ao Comitê Executivo da Rede Nacional de Cooperação Judiciária, cabe organizar as ações nacionais dos Núcleos de Cooperação Judiciária e Magistrados de Cooperação de todos os tribunais visando a troca de experiências, para melhorar os mecanismos de cooperação nacional pelo uso de processos e instrumentos de inovação e identificação das melhores práticas (artigo 21).

A cooperação judiciária não deve ser vista apenas como o simples intercâmbio de atos forenses, mas como uma proposta dialógica para o exercício da jurisdição. Pode ser uma das ferramentas para a efetividade da execução civil em várias situações, como, por exemplo, no compartilhamento de estrutura judiciária, sendo eficaz nos casos em que seja necessário o cumprimento de atos executórios em outras comarcas ou outro estado da Federação. Também pode ser utilizada para racionalizar e padronizar procedimentos e práticas judiciais na execução, criando, por exemplo, estratégias de procedimento para resolver os conflitos de competência entre os juízos da execução. Assim, a confluência de competências pode permitir o cumprimento de atos executórios em outras comarcas ou outro estado da Federação.

Mas, além da cooperação entre os órgãos do Poder Judiciário, a cooperação pode dar-se interinstitucionalmente “entre os órgãos do Poder Judiciário e outras instituições e entidades, integrantes ou não do sistema de justiça, que possam, direta ou indiretamente, contribuir para a administração da justiça” (Recomendação nº 350/2020 do CNJ, artigo 1º, II).

Diz o artigo 16 da Recomendação nº 350/2020 do CNJ: “A cooperação interinstitucional poderá ser realizada entre quaisquer instituições, do sistema de justiça ou fora dele, que possam contribuir para a execução da estratégia nacional do Poder Judiciário, promover o aprimoramento da administração da justiça, a celeridade e a efetividade da prestação jurisdicional”.

Logo, a cooperação judiciária pode ser uma alternativa de desjudicialização para a realização de procedimentos ou atos executórios por outros agentes fora da esfera do Judiciário. Pode-se admitir, por exemplo, a cooperação interinstitucional entre o Judiciário e uma serventia extrajudicial para a realização de atos executórios pelos tabeliães, como indica o projeto, ou outro agente de uma serventia extrajudicial, bem como de qualquer outra instituição fora do Judiciário. A desjudicialização poderia se dar apenas para a realização de um determinado ato executivo — cooperação judiciária interinstitucional para a realização de atos executórios ad actum, isto é, a cooperação entre o Judiciário e outro órgão fora da esfera do deste para a realização de um ato executivo determinado.

Em suma, o legislador não estabeleceu regras procedimentais predeterminadas para a realização da cooperação. Conforme o artigo 69 do CPC, o ato de cooperação “prescinde de forma específica” [8]. O legislador abriu um espaço de liberdade aos juízos, a fim de permitir “uma atuação adequada dos sujeitos processuais sob o ponto de vista da efetividade do processo e da eficiência da Jurisdição” [9]. Esta é a “beleza da norma: sua flexibilidade, permitindo-se seu manuseio livre pelo órgão jurisdicional conforme a necessidade observada no caso concreto” [10].

Como há uma correlação entre a gestão organizacional dos tribunais e a gestão do processo, a cooperação judiciária como técnica de gestão processual pressupõe o diálogo não apenas entre os juízes e órgãos do Poder Judiciário para que possam identificar problemas e traçar coletivamente uma política judiciária adequada, mas também entre órgãos fora da esfera do Judiciário.

A cooperação judiciária não é, portanto, um imperativo da lei, nem se trata de um direito da parte ou de um dever do julgador. É uma faculdade do juiz em sua atribuição de gestor processual na busca de maior fluidez entre os órgãos judiciais para responder com eficiência às situações concretas. É, enfim, ato que depende do juiz, em um juízo de ponderação, analisando o caso concreto em interligação com os demais juízes e órgãos do Poder Judiciário ou fora da sua esfera.

O ato de cooperação é, assim, uma técnica cujo objetivo é concretizar o direito fundamental a um processo efetivo [11]. Atribuem-se poderes ao magistrado para que, na busca da eficiência, possa gerir a demanda, diante do caso concreto, a fim de obter a efetividade da decisão judicial. Assim como nas brumas de Avalon, a interação pode ser estabelecida com órgãos públicos fora da esfera do Poder Judiciário, possibilitando o compartilhamento de equipes de servidores, softwares, infraestrutura, bem como para a realização de determinados atos no âmbito do processo, podendo ser um caminho alternativo de desjudicialização, contribuindo para a efetividade da execução.

 

[1] MEIRELES, Edilton. Cooperação judicial e poderes do juiz na execução conforme o CPC de 2015. Revista Jurídica Luso-Brasileira, Lisboa, ano 4, nº 1, 2018, p. 459.

[2] COSTA, Rosalina M. P. da; MOURA, João Vitor M. de. Descortinando novos caminhos para um sistema multiportas de execução no Brasil: “há vários caminhos até a montanha”. Revista de Processo, São Paulo, v. 47, nº 334, dez. 2022, p. 5.

[3] BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n.º 6.204, de 2019. Iniciativa: Senadora Soraya Thronicke. Dispõe sobre a desjudicialização da execução civil de título executivo judicial e extrajudicial; altera as Leis n.º 9.430, de 27 de dezembro de 1996, n.º 9.492, de 10 de setembro de 1997, n.º 10.169, de 29 de dezembro de 2000, e n.º 13.105 de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil. Brasília, DF: Senado, 27 nov. 2019, p. 15. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8049470&ts=1594037651957&disposition=inline. Acesso em: 28 nov. 2022.

[4] De acordo com o artigo 4.º do PL 6204, caberá ao agente de execução: “I – examinar o requerimento e os requisitos do título executivo, bem como eventual ocorrência de prescrição e decadência; II – consultar a base de dados mínima obrigatória, nos termos do art. 29, para localização do devedor e de seu patrimônio; III – efetuar a citação do executado para pagamento do título, com os acréscimos legais; IV – efetuar a penhora e a avaliação dos bens; V – realizar atos de expropriação; VI – realizar o pagamento ao exequente; VII – extinguir a execução; VIII – suspender a execução diante da ausência de bens suficientes para a satisfação do crédito; IX – consultar o juízo competente para sanar dúvida relevante; X – encaminhar ao juízo competente as dúvidas suscitadas pelas partes ou terceiros em casos de decisões não reconsideradas”.

[5] “A cooperação, por sua vez, pode ser formulada por qualquer órgão do Judiciário Nacional, em todos seus ramos (§ 3.º do art. 69). Seja entre juízes de 1.º grau, entre tribunais ou entre aqueles e estes. Pode ser entre juízos de ‘Justiças’ diversas (federal, estadual, do trabalho, eleitoral e militar) ou de competências distintas (trabalhista, estadual, civil, criminal etc.). Pode, ainda, envolver órgãos centralizadores que exercem funções jurisdicionais específicas, a exemplo de centros ou núcleos de conciliação ou mediação, de execução, setor de distribuição etc., ou mesmo com ou entre órgãos meramente administrativos do Poder Judiciário, pois a lei não faz distinção, tanto que se refere à cooperação ‘por meio de seus magistrados e servidores’” (Meireles, 2015, p. 62-63).

[6] Recomendação n.º 350/2020: “Art. 13. Os Magistrados de Cooperação terão a função de facilitar a prática de atos de cooperação judiciária e integrarão a Rede Nacional de Cooperação Judiciária. § 1.º Os Magistrados de Cooperação poderão atuar em seções, subseções, comarcas, foros, polos regionais ou em unidades jurisdicionais especializadas, sendo sua esfera de atuação definida por cada tribunal. § 2.º Observado o volume de trabalho, o Magistrado de Cooperação poderá cumular a função de intermediação da cooperação com a jurisdicional ordinária, ou ser designado em caráter exclusivo para o desempenho de tal função. Art. 14. O Magistrado de Cooperação tem por atribuições específicas: I – identificar soluções para os problemas que possam surgir no processamento de pedido de cooperação judiciária; II – facilitar a coordenação do tratamento dos pedidos de cooperação judiciária no âmbito do respectivo tribunal; III – fornecer todas as informações necessárias a permitir a elaboração eficaz de pedido de cooperação judiciária, bem como estabelecer contatos diretos entre os diversos órgãos e juízes; IV – intermediar o concerto de atos entre juízes cooperantes e ajudar na solução para problemas dele decorrentes; V – comunicar ao Núcleo de Cooperação Judiciária a prática de atos de cooperação, quando os Magistrados cooperantes não o tiverem feito; VI – participar das comissões de planejamento estratégico dos tribunais; VII – participar das reuniões convocadas pela Corregedoria de Justiça, pelo Conselho Nacional de Justiça ou pelos juízes cooperantes; e VIII – promover a integração de outros sujeitos do processo à rede de cooperação. § 1.º Sempre que um Magistrado de Cooperação receber, de outro membro da rede, pedido de informação a que não possa dar o seguimento, deverá comunicá-lo à autoridade competente ou ao membro da rede mais próximo para fazê-lo. § 2.º O Magistrado de Cooperação deve prestar toda a assistência para contatos ulteriores”.

[7] Recomendação n.º 350/2020: “Art. 17. Os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais Regionais do Trabalho, os Tribunais Regionais Eleitorais, os órgãos da Justiça Militar da União, os Tribunais de Justiça e os Tribunais de Justiça Militar deverão constituir e instalar, em sessenta dias, pondo em funcionamento em até noventa dias, Núcleos de Cooperação Judiciária, com a função de sugerir diretrizes gerais, harmonizar rotinas e procedimentos de cooperação, consolidar os dados e as boas práticas junto ao respectivo tribunal. Art. 18. Os Núcleos de Cooperação Judiciária serão compostos, nos tribunais, por um desembargador supervisor e por um juiz coordenador, ambos pertencentes aos quadros do rol de magistrados de cooperação, podendo ser integrados também por servidores do Judiciário. Art. 19. Os Núcleos de Cooperação Judiciária poderão definir as funções dos seus Magistrados de Cooperação, dividindo-as por comarcas, regiões, unidades de especialização ou unidades da Federação. § 1.º Os Núcleos deverão informar ao Comitê Executivo da Rede Nacional de Cooperação Judiciária a definição das funções de cada um de seus Magistrados de Cooperação, a fim de que elas constem no cadastro nacional que será gerenciado por esse Comitê. § 2.º Os Núcleos deverão organizar reuniões periódicas entre os seus Magistrados de Cooperação e incentivar a melhoria dos processos de cooperação judiciária com os demais Núcleos. § 3.º Caberá aos Núcleos de Cooperação Judiciária de cada tribunal estabelecer critérios e procedimentos para registro de dados relevantes e boas práticas de cooperação judiciária”.

[8] A doutrina enfatiza que o ato de cooperação não tem uma forma específica, com suporte no dispositivo do CPC: Câmara, 2018, p. 59; Marinoni et al., 2017, p. 31.

[9] LUNARDI, Thaís A. P. Coletivização da prova: técnicas de produção coletiva da prova e seus reflexos na esfera individual. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2018, p. 169.

[10] WAMBIER, Teresa A. A.; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia L.; RIBEIRO, Leonardo F. da S.; MELLO, Rogerio L. T. de. Primeiros comentários ao novo Código de Processo Civil: artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 152.

[11] Ferreira, G. M. (2019). O ato concertado entre juízes cooperantes: esboço de uma teoria para o Direito brasileiro. Civil Procedure Review, 10(3), 11-48, p. 26.

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