Conflito de competência

Se não há relação de emprego, o que o juiz do Trabalho há de julgar?

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4 de dezembro de 2023, 13h23

*Reportagem publicada no Anuário da Justiça do Trabalho 2024, lançado na última quinta-feira (30/11). A versão online é gratuita, acesse pelo site do Anuário da Justiça (clique aqui para ler). A versão impressa está à venda na Livraria ConJur (clique aqui ).

É o começo do fim? Não, isso foi antes. Chegamos no momento crucial em que a Justiça do Trabalho pode ser subtraída.” A declaração é do advogado Mauro Menezes, do escritório Mauro Menezes & Advogados, feita durante seminário promovido em outubro pela Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho) para debater os impactos de decisões do Supremo Tribunal Federal que têm retirado da Justiça do Trabalho a competência para julgar demandas que envolvam relações de emprego.

A tese premonitória sobre o fim da Justiça do Trabalho não é particular aos advogados trabalhistas, mas compartilhada por acadêmicos e juízes do Trabalho. O receio está em decisões que partem dos gabinetes do Supremo que têm cassado acórdãos dos Tribunais Regionais do Trabalho, revertendo o reconhecimento de vínculo de emprego identificado em diversos casos, como os de motoristas de aplicativos.

A preocupação é que o STF tem atribuído, de forma automática e para diversas categorias (por meio de decisões individuais ou colegiadas), a ausência de vínculo de emprego à constitucionalidade da terceirização e ao reconhecimento de outras formas de trabalho além das previstas pela CLT, como no caso da prestação de serviços por meio de pessoa jurídica (pejotização e trabalhadores autônomos).

As reclamações trabalhistas, porém, não discutem a legalidade desses formatos em si, mas a presença ou não dos princípios que caracterizam o vínculo empregatício, como pessoalidade, não eventualidade ou habitualidade, onerosidade e subordinação.

De quebra, ao julgar que não existe relação de trabalho nesses casos, o STF entende que esses contratos possuem natureza comercial e que, portanto, devem tramitar na Justiça comum, e não na do Trabalho.

Para o professor Paulo Renato Fernandes, da FGV Direito do Rio de Janeiro, “as decisões do STF vêm elevando o patamar de eticidade, de responsabilidade e de autonomia dos contratantes. Se os vínculos jurídicos são diversos das relações de trabalho, a competência para julgar seus conflitos não é da Justiça do Trabalho, segundo o artigo 114 da Constituição Federal”, sustenta.

Assim, o professor defende que o STF não está usurpando competência da Justiça do Trabalho. “O que o STF vem fazendo é interpretar a lei e a Constituição à luz desses novos vetores sociais e econômicos. Não tem mais sentido tratar trabalhadores, especialmente os qualificados, como médicos, advogados, engenheiros, como incapazes de prover suas relações jurídicas sem a tutela do Estado. Ademais, a boa-fé contratual é um elemento central dentro da ordem jurídica do século XXI. Portanto, deve-se analisar cada caso concreto, se existe contrato e o conteúdo do contrato.”

TST
Para TST, são artifícios para fraudar o vínculo de emprego

Para os críticos da posição adotada pelo Supremo, a corte tem esvaziado a competência constitucional da Justiça do Trabalho, ampliada e garantida pela EC 45/2004, de julgar processos que envolvam relação de trabalho e não apenas relação de emprego. “Ainda que se entenda que, na hipótese concreta, não há vínculo empregatício, o ponto é: quem é o juiz competente para dizê-lo? Quem é o juiz natural destas causas?”, questiona o professor de Direito e Processo do Trabalho Guilherme Guimarães Feliciano, da USP.

Feliciano coordenou a pesquisa, realizada pelo núcleo de estudos da universidade, “O Trabalho Além do Direito do Trabalho” em parceria com a Anamatra, que analisou a jurisprudência concebida no STF nos últimos cinco anos envolvendo matérias trabalhistas. O levantamento concluiu que o afastamento da competência da Justiça do Trabalho para apreciar litígios decorrentes da relação de emprego contribui para a precarização do trabalho e fomenta o aumento de casos de condições análogas a de escravo e de trabalho infantil. “A competência da Justiça do Trabalho, tal como fixada pela Emenda 45/2004, tem sido restringida severamente, talvez em níveis anteriores à promulgação da Constituição de 1988”, disse.

A inquietude aumenta quando observado o instrumento jurídico usado pelas empresas para recorrer das decisões da Justiça do Trabalho. Das mais de 100 decisões do Supremo enfrentadas pela pesquisa, 88 foram proferidas em sede de reclamação constitucional. Na prática, o dispositivo criado para preservar as competências dos tribunais superiores tem sido reduzido a recurso trabalhista.

“A gente vê que o próprio STF tem alargado a aplicação da reclamação constitucional e cometido atecnias. O Supremo está se tornando uma instância revisora da Justiça do Trabalho”, criticou a presidente da Anamatra, a juíza do Trabalho na 6ª Região (Pernambuco) Luciana Conforti, em entrevista ao Anuário da Justiça do Trabalho.

Além da pesquisa, a entidade lançou a campanha em defesa da preservação da competência da Justiça do Trabalho: “A Justiça do Trabalho existe, resiste, persiste”. As reclamações constitucionais que chegam ao STF com intuito de afastar a fraude na caracterização da relação de trabalho são amparadas em precedentes discutidos na ADPF 324 e RE 958.252 (constitucionalidade da terceirização na atividade-fim); ADC 48 e ADI 3.961 (não caracterização de vínculo de emprego de motorista autônomo e as empresas de transporte rodoviário de cargas, Lei 11.442/2007); e a ADI 5.625 (constitucionalidade do contrato de parceria do profissional da beleza).

Durante sessão na 2ª Turma, em outubro, o ministro Gilmar Mendes apresentou pesquisa feita no acervo processual do STF segundo a qual, das 4.781 reclamações protocoladas na corte em 2023, mais da metade (2.566 ou 54%) são classificadas como “Direito do Trabalho” e “Processo do Trabalho”.

Para o ministro, a Justiça do Trabalho tem uma “visão distorcida” da sistemática de precedentes do STF, fazendo com que o Supremo tenha de afetar “centenas, quiçá milhares de temas com repercussão geral para solucionar todos os cenários fáticos em relações do trabalho”, o que, segundo o decano, transformaria o STF “numa corte superior ou suprema da Justiça do Trabalho”.

A maioria dos ministros do STF entende que a Justiça do Trabalho tem pura e simplesmente ignorado a jurisprudência da Corte, pacífica no sentido de reconhecer a licitude da terceirização e da pejotização, por exemplo.

“Ao fim e ao cabo, a engenharia social que se busca [por parte da Justiça do Trabalho], não passa de uma tentativa inócua de frustrar a evolução dos meios de produção (…) O que se observa no contexto global é uma flexibilização das normas trabalhistas. Se a Constituição não impôs um modelo específico de produção, não faz qualquer sentido manter as amarras de um modelo verticalizado, fordista, na contramão de um movimento global de descentralização”, escreveu o ministro Gilmar Mendes em voto na RCL 53.688.

O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, defende que o reconhecimento de outros formatos de contratação estão ligados ao desenvolvimento e à livre iniciativa.

“O contrato de emprego não é a única forma de se estabelecerem relações de trabalho. Um mesmo mercado pode comportar alguns profissionais que sejam contratados pelo regime da CLT e outros profissionais cuja atuação tenha um caráter de eventualidade ou maior autonomia. Desse modo, são lícitos, ainda que para a execução da atividade-fim da empresa, os contratos de terceirização de mão de obra, parceria, sociedade e de prestação de serviços por pessoa jurídica (pejotização), desde que o contrato seja real, isto é, de que não haja relação de emprego com a empresa tomadora do serviço, com subordinação, horário para cumprir e outras obrigações típicas do contrato trabalhista, hipótese em que se estaria fraudando a contratação”, afirmou o ministro na RCL 56.285.

Com as aposentadorias dos ministros Rosa Weber e Ricardo Lewandowski, que defendiam a competência da Justiça do Trabalho para julgar essas demandas, Edson Fachin vinha sendo a única voz com o mesmo entendimento. Em outubro, porém, aderiu à posição da maioria e cassou decisão do TRT-2 que reconhecia o vínculo de trabalho de um médico contratado via PJ e remeteu o caso para a Justiça comum.

“Vinha defendendo a manutenção da competência da Justiça do Trabalho para reconhecimento de vínculo quando essa Justiça especializada verifica os requisitos dos artigos 2º e 3º da CLT, pois tal situação, sob nossa perspectiva, não fora objeto de debate quando do julgamento da ADPF 324. Ademais, nos julgamentos dos paradigmas, rechaçou-se a presunção da fraude pela terceirização, mas se anotou que o seu ‘exercício abusivo’ poderia violar a dignidade do trabalhador, de modo que caberia, assim, à Justiça Trabalhista, diante da primazia da realidade, reconhecer os elementos fáticos que denotam a relação de emprego. Entretanto, ambas as Turmas deste STF firmaram compreensão pela possibilidade de, via reclamação constitucional, encaminhar tais discussões à Justiça Comum em atenção às teses vinculantes colocadas pela ADPF 324 e pelo Tema 725”, escreveu em voto na RCL 61.492.

ANUÁRIO DA JUSTIÇA DO TRABALHO 2024
4ª edição
Número de Páginas: 260
Editora: ConJur
Versão impressa: Livraria ConJur, clique aqui para saber mais
Versão digital: disponível gratuitamente no site do Anuário da Justiça (anuario.conjur.com.br), acesse

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