Autonomização das polícias: risco grave e imediato ao Estado democrático de Direito
31 de agosto de 2023, 18h22
No último dia 9 de agosto, vieram à tona os elementos de convicção que determinaram a prisão cautelar de Silvinei Vasques, diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal entre abril de 2021 e dezembro de 2022, portanto, sob a gestão de Jair Bolsonaro.
Como amplamente divulgado, o que os referidos elementos demonstram ao ponto de legitimarem a custódia preventiva de Silvinei é o que já se supunha e afirmava: uma atuação orquestrada da Polícia Rodoviária Federal no segundo turno das eleições presidenciais para impedir ou, no mínimo, dificultar o exercício do direito de voto pelos eleitores, justamente nas regiões e cidades onde o então candidato da oposição, Luiz Inácio Lula da Silva, conquistara uma considerável vantagem, conforme revelavam as pesquisas e o próprio resultado do primeiro turno.
Como questão de fundo, o que os fatos em questão evidenciam é a consumação de uma desvinculação da PRF em relação às funções que lhe atribui a Constituição, que a define como um dos órgãos responsáveis pela efetivação do dever estatal de garantir a segurança pública, logo, a incolumidade das pessoas e do patrimônio, o que, no caso específico da PRF, se dá — ou deveria se dar — pelo "patrulhamento ostensivo das rodovias federais" (CF, artigo 144, II, §2º).
Por óbvio, a compreensão desses dispositivos deve se construir no contexto dos fundamentos e objetivos que consubstanciam o Estado Democrático de Direito a que está adstrito o órgão — ou a que deveria estar —, dentre os quais, por pertinentes, merecem destaque a dignidade humana, a cidadania, o pluralismo político, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação. Tudo isso conforme os artigos 1º e 3º da CF/88.
Avançando um pouco mais, observamos que os elementos de convicção trazidos a público demonstram que a dissociação da PRF em relação ao que lhe dá consistência pública a partir da Constituição deu-se a serviço de um projeto de poder muito bem determinado, mais precisamente, daquele encampado pelo então candidato da situação, Jair Messias Bolsonaro, calcado justamente na superação da razão constitucional pelas violências disponíveis, da simbólica à física.
Nesse sentido, recordemos das inúmeras e incansáveis emulações do à época presidente do país a um golpe de Estado, as quais culminaram nos ataques aos Poderes e à democracia brasileira ocorridos em Brasília no dia 8 de janeiro de 2023, escancarado simulacro daqueles que se passaram no Capitólio estadunidense.
Em razão dessa desvinculação da PRF em relação à Constituição para melhor servir aos interesses eleitorais de Bolsonaro, tem sido corrente a conclusão expressa na seguinte fórmula: "a PRF deixou de ser polícia de Estado para se tornar polícia de governo". Todavia, entendemos que a constatação é insuficiente e a realidade mais grave, uma vez que se pensamos em governo, ainda podemos ser remetidos a interesses públicos.
A nosso ver, no contexto sob análise, a PRF deixou de ser polícia, seja de Estado ou de governo, assumindo a condição de milícia pessoal de Bolsonaro, usurpando poder estatal para exercê-lo como violência em nome de um projeto autoritário, contra a sociedade livre e plural a que deveria servir.
A observação atenta do ocorrido bem desvela o porquê dos esforços de Bolsonaro em desassociar as polícias militares da autoridade dos governadores [1], investidas que, embora bastante divulgadas, não mereceram a análise detida e aprofundada exigida pelos potenciais deletérios que evidenciavam. Por óbvio, a retirada de poder e controle de governadores — muitos deles opositores políticos — em relação às polícias militares visava à consumação em âmbito nacional do que o então presidente conseguiu naquele momento em relação à PRF, ou seja, transformar as forças de segurança pública em milícias particulares [2], fato que, se houvesse ocorrido, provavelmente levaria nossa democracia à ruína consumada.
E aqui acrescentamos: em razão da capilaridade de sua atuação pelo território nacional e do poder bélico que têm à sua disposição, a cooptação das polícias militares certamente constituiria o evento determinante ao aperfeiçoamento do golpe efetivamente tentado, como demonstraram os eventos de 8 de janeiro de 2023.
Convém, então, dizer que, embora possam causar surpresa ao público em geral, os fatos aos quais nos referimos e que hoje são amplamente divulgados e submetidos à análise crítica nada têm de novos, tampouco são uma invenção do ex-diretor-geral da PRF ou do próprio Bolsonaro.
A atuação golpista operada pela PRF, como se vai demonstrando, é apenas uma das demonstrações, talvez a mais ousada e estrepitosa, de um processo quotidiano e silencioso de autonomização das polícias, destacadamente as militares, bastante conhecido por aqueles que dedicam um olhar crítico aos modos de funcionamento do sistema penal — no que incluímos desde a atividade policial ostensiva, passando pelo processo penal, até a aplicação do direito (penal) e a execução de suas sanções.
Certo é que nossas práticas policiais permanecem insubmissas ao que lhes impõem nossas normas, sempre tendendo ao abuso pelo uso arbitrário da força, característica que, ao fim e ao cabo, corrói nossa democracia e mais as aproxima (as práticas policiais) daquelas próprias aos regimes autoritários que também marcaram a nossa história. Em suma, se idealmente vivemos todos nós, brasileiros, sob a égide de um Estado democrático de Direito, na prática acabamos submetidos a um estado de policialismo cuja sonegação da cidadania e violência têm seus alvos preferenciais, destacadamente a parcela mais vulnerável da população em termos socioeconômicos, parcela esta também identificável a partir de um recorte que bem revela os efeitos de nosso racismo estrutural [3].
Violações de domicílio, sigilos e garantias tutelados constitucionalmente, abusos físicos, buscas pessoais ilegais, dentre tantas outras ilicitudes — que dispensam o destaque que poderia ser dado ao extremo de homicídios ou chacinas — constituem práticas rotineiras de nossas polícias em territórios racial e socialmente segregados, onde o desrespeito aos direitos e garantias constitucionais demonstra a existência de verdadeiros espaços de exceção delimitados por fronteiras internas militarmente controladas. Trata-se, em suma, de polícias que se entendem no direito de empregar a violência no cumprimento de suas funções, como se isso não contrariasse as normas que as regem ou como se, ao menos, não se tratasse de algo a ser considerado no registro da exceção, segundo exijam circunstâncias específicas — e justificáveis — e numa medida de proporcionalidade capaz de converter violência em força empregada legitimamente.
Devemos, entretanto, destacar que a um tal estado de coisas não teríamos chegado se para tanto não concorressem justamente as autoridades que têm por função conter o poder estatal nos limites da razão normativa.
Neste ponto do debate, oportuno que mais uma vez se denuncie o fetiche punitivista convertido em espetáculo pelos meios de comunicação e que constitui uma espécie de salvo-conduto para práticas autoritárias daqueles que integram o aparato repressivo estatal, de ponta a ponta. Em síntese, a expressão violenta de nossos complexos problemas sociais dá azo a um sem-número de interpretações e propostas de solução assaz simplistas, com destaque para uma resposta violenta do Estado contra a criminalidade, o que se traduz por excessos que vão desde a atuação policial até a execução da pena.
Os infinitos processos de tráfico que se multiplicam pelo país são prova pronta do que afirmamos e demonstram que, no fim das contas e amiúde, é a polícia — militar — que, discricionariamente, a partir de esquemas tipificadores internalizados na cultura policial, termina apurando, acusando e julgando em matéria penal, sendo muitos os clichês repetidos à exaustão em busca da legitimação de condenações que procuram fundamento nessas repetições.
É nesse moto-contínuo que seguem proliferando as condenações, por exemplo, pela prática de tráfico de drogas a partir de buscas e prisões fundadas no fato de ser o acusado "conhecido dos policiais" ou de ter "corrido ao ver a viatura", momentos depois de ter sido descrito em "denúncia anônima"; que foi preso "em local conhecido como ponto de tráfico", sendo indicativo dessa atividade mercantil o fato de "portar dinheiro trocado" ou de "a droga estar embalada para uso", significantes vazios que, na prática, dispensam elementos que demonstrem, de fato, segundo as circunstâncias do caso, a efetiva prática do tráfico de drogas.
Trata-se de expressões-chave carregadas de subjetivismo que são percebidas desde o boletim de ocorrência até a(s) decisão(ões) de afirmação (juízos de primeiro grau) ou confirmação da condenação (Tribunais), que de antemão se sabe assegurada desde o início pelas polícias, de atuação e palavras às quais se garante o status de verdade.
Aliás, encontramos aqui uma boa síntese: no Brasil, as polícias detêm uma espécie de verdade penal, o que, na prática, lhes dá o poder não só sobre a liberdade, mas também sobre a vida daqueles contra os quais dirigem sua força (violência). Nesse contexto, o que se observa é a concentração, nas polícias, de um poder fático de contenção, apuração, julgamento e execução, segundo um arbítrio muito próprio e em nada submisso à razão normativa de um Estado democrático de Direito, do que entendem como crime, contra os que definem como criminosos, via de regra uma parcela desde sempre relegada à margem da sociedade.
As chacinas impunes que marcam nosso quotidiano assim o demonstram, no que reportamos, por exemplo, aos massacres históricos do Carandiru e da Candelária, nos dias atuais merecendo referência atuações policiais como a realizada — e inacreditavelmente tolerada — na região litorânea de São Paulo [4] ou a que resultou na morte de um adolescente na cidade do Rio de Janeiro [5], pródiga em exemplos de abuso, onde, não por acaso, as milícias já constituem uma conhecida realidade [6].
Como se pode perceber, as dinâmicas até aqui abordadas integram um processo que aponta para uma progressiva autonomização das polícias em relação às normas e instituições que conformam o sistema de justiça penal [7], o qual encontra na atuação da PRF durante o segundo turno da última eleição presidencial a ilustração acabada de um cenário que acena do futuro caso à situação delineada não se dediquem a atenção e as respostas devidas por parte daqueles a quem a Constituição incumbe de fazê-lo, marcadamente Ministério Público e Judiciário. Até aqui, o que temos é um cenário de "descontrole externo" da atividade policial, algo que merece urgente atenção da sociedade, inclusive com alterações legislativas que tornem o escrutínio das ações policiais mais democrático.
Com algum efeito nesse sentido, por parte do Judiciário — e com marcada resistência, inclusive do Ministério Público —, salientamos as recentes mudanças de entendimento das Cortes Superiores em contenção a situações nas quais os abusos integravam a práxis de tão banalizados, como é o caso das violações de domicílio (STF e STJ) [8], das buscas pessoais ilegais (STJ) [9] e dos reconhecimentos fotográficos viciados (STJ) [10]. Soma-se a esses, com o mesmo propósito, a modificação de entendimento do STJ quanto à efetiva aplicação dos limites estabelecidos pelo art. 155 do CPP, que vincula condenações — e, logicamente, decisões de pronúncia — à existência em prevalência de provas submetidas ao contraditório [11].
Conforme bem demonstra o exemplo da PRF, uma tal desvinculação da força estatal em relação aos limites que lhe impõe o ordenamento atinge em cheio o fundamento primeiro do Estado de Direito, qual seja, a limitação do poder pela razão normativa. Se seguirmos admitindo acriticamente o livre curso desse processo de autonomização, no fim das contas, estaremos concorrendo, ainda que por omissão, para a substituição essencial de um Estado de Direito por um Estado de Policialismo, em que a força se impõe às normas que deveriam limitar seu exercício para que não se transmude em violência [11], recordando-se que as embrionárias forças policiais, ainda no século 19, desenvolveram atividades antes desempenhadas pelos capitães-do-mato e ofertaram serviços de açoites aos proprietários dos escravizados — algo que demonstra o quanto práticas policiais violentas contra o próprio povo fizeram parte da formação histórica das nossas polícias.
Quanto à democracia, tratando-se de regime político dependente de liberdade, que tem por fim a observância dos meios, despiciendo referir os riscos que um tal processo representa. A história também é pródiga em apontá-los. No caso específico do Brasil, as tragédias policialescas diárias, a morte de crianças por "balas" que nunca são perdidas há tempos demonstram a existência de um "Estado de Policialismo", em que a atividade policial suspende direitos e garantias dos subcidadãos matáveis (por)que habitam espaços socialmente segregados.
E as coisas não vão bem apenas nos campos de batalha artificialmente construídos nas periferias, como bem se observa em relação à polícia militar do Distrito Federal, cuja cúpula se encontra custodiada, investigada por participação — ainda que por omissão — nos eventos de 08/01/23 [13]. Agentes que ostentam medalhas e cintilantes estrelas em seus ombros, segundo indicam elementos colhidos e ensejadores de drásticas medidas cautelares, concorreram, em absoluto descompasso constitucional, para os atentados consumados contra a democracia, provavelmente se aproveitando e confiando no estratégico descontrole externo por parte daqueles que deveriam fiscalizá-los [14].
[1] Por todas, remetemos às matérias disponíveis em: https://diplomatique.org.br/a-proposta-de-bolsonaro-para-uma-nova-lei-organica-das-policias/ e https://www.conectas.org/noticias/como-os-projetos-de-autonomia-das-policias-ameacam-a-democracia/ (acesso em 11/08/23).
[2] Prática conhecida de regimes fascistas.
[3] Remetemos o leitor à pesquisa do Ipea referida na matéria jornalística disponível em: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/ipea-maioria-de-presos-por-trafico-de-drogas-e-negra-pobre-e-sem-relacao-com-faccoes/ (acesso em 12/08/23).
[4] Amplamente noticiada, tal qual em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/08/07/seis-das-16-acoes-com-mortes-na-operacao-no-litoral-de-sp-nao-tinham-pms-com-cameras-diz-porta-voz.ghtml (acesso em 12/08/23).
[5] Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2023/08/08/corpo-de-adolescente-morto-na-cidade-de-deus-e-velado.ghtml (acesso em 12/08/23).
[6] Enquanto escrevíamos este texto, uma atuação policial na cidade do Rio de Janeiro deixava como saldo mais uma criança, atingida no peito enquanto brincava dentro de casa. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/08/12/eloa-criancas-mortas-rio-de-janeiro.htm (acesso em 12/08/23).
[7] Autonomização que, inclusive, motiva a clássica performance midiática de policiais nas quais afirmam que "enquanto prendem, o Judiciário solta", em evidente esforço de transferência pública de responsabilidades e exercício de pressão a um Poder ao qual caberia a preservação primeira de garantias.
[8] Por todas, reportamos à decisão proferida pelo STF no RE 603.616/RO, bem como às proferidas pelo STJ no RHC 89.853/SP e no HC 598.051/SP (quanto a este, cabe apontar que a questão relativa aos pressupostos de validade do consentimento de morador para busca e apreensão domiciliar está sendo discutida no RE 1.368.160/RS, sob o regime de repercussão geral).
[9] Por todos: AgRg no REsp 1996290/PR, 6ª T., relator ministro Sebastião Reis Júnior, j. em 15/05/2023, DJe 18/05/2023.
[10] Por todos: HC 598.886/SC, 6ª T., relator ministro Rogerio Schietti, j. em 27.10.2020, DJe de 18.12.2020.
[11] Por todos: HC 560.552/RS, 5ª T., relator ministro Ribeiro Dantas, j. em 23.02.2021, Dje de 26.02.2021.
[12] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
[13] Fato amplamente noticiado, tal qual em: https://congressoemfoco.uol.com.br/area/justica/cupula-da-pm-no-df-e-presa-por-omissao-nos-atos-de-8-de-janeiro/ (acesso em 22/-8/23).
[14] Ao final, convém destacar como a estrutura militar hierarquizada potencializa ao máximo a ocorrência das violações ora denunciadas, máxime se a adesão a ideais ou projetos autoritários se dá a partir do oficialato da cúpula dessas forças policiais.
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