Opinião

Impossibilidade do ANPP nos crimes de preconceito de raça ou de cor

Autores

  • Jorge Assaf Maluly

    é procurador de Justiça de Habeas Corpus e Mandados de Segurança Criminais (MP-SP).

  • Pedro Henrique Demercian

    é doutor e mestre em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) professor nos programas de graduação e pós-graduação estrito sensu da PUC-SP e procurador de Justiça de Habeas Corpus e Mandados de Segurança em São Paulo.

31 de agosto de 2023, 13h22

A sociedade tem se deparado, ultimamente, com recorrente notícias da prática de discriminações raciais, inclusive em eventos esportivos, que configuram crimes de preconceito de raça ou de cor, previstos na Lei nº 7.716, de 5/1/1989.

Todos os delitos previstos na Lei nº 7.716/1989 possuem penas privativas de liberdade mínimas cominadas inferiores a quatro anos. A injúria racial, prevista no artigo 2º-A da Lei nº 7.716/1989 (Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional), por exemplo, é punida com reclusão, de 2 a 5 anos. Outro exemplo, é a execução do crime de racismo descrito no artigo 20 dessa mesma legislação (Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional), que é sancionada com reclusão, de 1 a 3 anos, e multa.

Iniciada a persecução penal do crime de preconceito racial ou de cor, pode ser questionada a incidência do acordo de não persecução penal, previsto no artigo 28-A do CPP, destinado aos autores confessos de infrações penais cometidas sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos.

O ANPP é uma medida despenalizadora que consiste em um acordo de concessões recíprocas, de modo que deve ser concedido em atenção ao interesse da sociedade e do investigado. Não se pode considerar, portanto, única e exclusivamente, a vontade unilateral do investigado para a realização do acordo ou a equivocada assertiva de que se trata um benefício com efeitos penais e, como tal, não pode ser negado a ele.

Além dos delitos praticados com violência ou grave ameaça à pessoa que não admitem a utilização da medida, o §2º do artigo 28-A do CPP estabelece outras hipóteses de não aplicação do acordo de não persecução penal: (1) nos crimes de menor potencial ofensivo em razão do cabimento da transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais; (2) se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; (3) já ter sido o agente beneficiado nos cinco anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e (4) nos delitos praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou cometidos contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.

O ANPP ainda deve ser suficiente para reprovação e prevenção do crime, nos termos do caput do artigo 28-A do CPP. E com base nesse requisito legal e, considerando-se a estrutura constitucional e os tratados internacionais assinados pela República Brasileira, o acordo de não persecução penal mostra-se incompatível com a prática de qualquer crime cometido com preconceito de raça ou de cor.

Diversos dispositivos constitucionais deixam manifesto que um dos bens jurídicos mais caros ao Brasil é a dignidade humana, sempre violada pela prática hedionda da discriminação racial. Nesse sentido, dispõe o artigo 1º, inc. III, da CF que um dos fundamentos da República do Brasil é o respeito à dignidade humana. Em outra norma constitucional consta que um dos seus objetivos de nossa República é "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (artigo 3º, inciso IV, da CF). As relações internacionais do Brasil são regidas, dentre outros fundamentos, pelo repúdio ao racismo (artigo 4º, inciso VIII, da CF). A Constituição Federal ainda prevê como crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, a prática do racismo (artigo 5º, inciso XLII, CF).

Acerca do tratamento constitucional supramencionado, destaca Cristiano Jorge Santos, que:

"Por todas as referências acima destacadas, vislumbra-se de forma cristalina que nossa Constituição condena de forma absoluta qualquer modalidade de preconceito ou discriminação negativa, chegando ao ponto de ter sido inserido em seu texto de maneira expressa que o racismo constitui crime (e não mera contravenção, como era antes da promulgação da Carta Magna, em 1988)" [1].

E como não poderia ser diferente, o Brasil é signatário de tratados internacionais voltados ao enfrentamento ao racismo. O Decreto Presidencial nº 65.810, de 8/12/1969, promulgou a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, pelo qual o Brasil se obrigou a "adotar, por todos os meios apropriados e sem tardar uma política de eliminação da discriminação racial em todas as suas formas e de promoção de entendimento entre todas as raças". No mesmo sentido, a República Brasileira assinou a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, promulgada pelo Decreto Presidencial nº 10.932, de 10/1/2022, assumindo o compromisso de "prevenir, eliminar, proibir e punir, de acordo com suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, todos os atos e manifestações de racismo, discriminação racial e formas correlatas de intolerância".

Como se vê, há um mandado constitucional de criminalização do racismo e um compromisso internacional do Estado brasileiro de eliminar qualquer forma de discriminação racial, regramentos que a Lei nº 7.716, de 5/1/1989, está intrinsicamente relacionada.

Diante desse quadro normativo, o acordo de não persecução penal com a prática de racismo se mostra insuficiente para a repressão e prevenção da discriminação racial.

Sobre essa questão, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal rejeitou a possibilidade do acordo de não persecução penal nos crimes raciais no julgamento do RHC nº 222.599-SC [2], relator ministro Edson Fachin, com a seguinte fundamentação que se destaca:

"Isso porque a construção e o efetivo alcance de uma sociedade fraternal, pluralista e sem preconceitos, tal como previsto no preâmbulo da Constituição Federal, perpassa, inequivocamente, pela ruptura com a práxis de uma sociedade calcada no constante exercício da dominação e do desrespeito à dignidade da pessoa humana.

A promoção do bem de todos, aliás, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação constitui um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, elencados no art. 3º da Constituição Federal de 1988.

(…)

Assim, a delimitação do alcance material para a aplicação do acordo 'despenalizador' e a inibição da persecutio criminis exige conformidade com o texto Constitucional e com os compromissos assumidos pelo Estado brasileiro internacionalmente, como limite necessário para a preservação do direito fundamental à não discriminação e à não submissão à tortura – seja ela psicológica ou física -, e ao tratamento desumano ou degradante, operada pelo conjunto de sentidos estereotipados que circula e que atribui não apenas às mulheres mas também às pessoas negras posição inferior, numa perversa hierarquia de humanidades.

(…)

Ainda que, até o momento, sob o ponto de vista quantitativo, os crimes raciais sejam punidos com reprimenda que se adequa aos requisitos objetivos à apresentação de proposta de acordo de não persecução, os bens jurídicos protegidos, a dignidade e a cidadania racial não podem constar de objeto de qualquer negócio jurídico, sob pena de a pedagogia inserida na construção do processo de redução das desigualdades raciais perder seu norte substancial: o de aniquilar qualquer significação das pessoas negras como inferiores ou subalternas.

'Despenalizar' atos discriminatórios raciais, nesta quadra da história, é contrariar o esforço – já insuficiente – para a construção da igualdade racial, levada a cabo na repressão de atos fundados em desprezíveis sentidos alimentados, diariamente, por comportamentos concretos e simbólicos retificadores de pessoas negras.

É nesses termos que pontuo: o alcance material do ANPP não deve abarcar os crimes raciais (nem a injúria racial, prevista no art. 140, § 3º, do Código Penal, nem os delitos previstos na Lei 7.716/89)".

Com a mesma orientação, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo denegou a ordem do HC nº 2132076-85.2022.8.26.0000 [3] (rel.: dessembargador Xavier de Aquino), impetrado ante a recusa do Ministério Público de São Paulo, referenda pela Procuradoria-geral de Justiça, de propor o acordo de não persecução penal, com "respaldo na natureza do delito em tese cometido pelo paciente que inobstante possua pena mínima inferior a 04 (quatro) anos e não tenha sido praticado mediante emprego de violência ou grave ameaça, constitui em conduta que atenta contra valores excelsos ao Estado Democrático de Direito, eis que, nos exatos termos do artigo 3º, inciso IV, da Carta Magna, constitui como objetivo fundamental da República “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação", devendo o racismo (e, por consequência lógica, a injúria racial, conforme já reconhecido pela Suprema Corte no julgamento do Habeas Corpus nº 154248, em 28/10/2021) ser amplamente combatido pelo Estado Brasileiro, de maneira que o pleiteado acordo, de per si, não seria, em obediência ao caput do artigo28-A do CPP, "necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”, cuja premissa igualmente se aplica ao sursis processual do artigo 77 do Código Penal".

O v. acórdão do Órgão Especial do TJ-SP foi pela col. 6ª Turma do STJ, relatora ministra Laurita Vaz, ao apreciar o AgRg no RHC nº 181.130 (julgado em 14/8/2023 e publicado 21/8/2023).

Mas não é só. Como se sabe, o direito penal protege os interesses mais relevantes da sociedade e deve ser interpretado de modo a tutelá-los.

A impossibilidade do ANPP aos crimes de preconceito de raça ou de cor também tem seu respaldo no princípio constitucional que veda a proteção insuficiente dos bens penalmente tutelados (artigo 5º, caput, CF).

O princípio da proibição de proteção deficiente ou insuficiente consubstancia-se em um componente da vedação de omissão, por parte do Estado, na salvaguarda de direitos fundamentais (vida, dignidade humana, integridade física, patrimônio etc.).

No Estado Democrático de Direito, como doutrina Ingo Wolfgang Sarlet [4], a tutela penal deve assegurar aos cidadãos a proteção aos seus direitos fundamentais assegurados na Lei Maior:

"(…)vislumbra-se, desde logo, que a discussão em torno das funções e limites do direito penal num Estado Democrático de Direito passa inquestionavelmente por uma reavaliação da concepção de bem jurídico e o seu devido redimensionamento à luz da nossa realidade (fática e normativa) constitucional (…), o que, por sua vez, nos remete à problemática dos deveres de proteção do Estado na esfera dos direitos fundamentais e aos contornos possíveis de uma teoria garantista (e, portanto, afinada com as exigências da proporcionalidade) do Estado, da Constituição e do Direito Penal (…) Outro desdobramento estreitamente ligado à perspectiva objetivo-valorativa dos direitos fundamentais diz com o que se poderia denominar eficácia dirigente que estes (inclusive os que de modo incontroverso exercem a função de direitos subjetivos, como ocorre com os direitos de liberdade, entre outros) desencadeiam em relação aos órgãos estatais. Neste contexto é que se afirma conterem os direitos fundamentais uma ordem dirigida ao Estado no sentido de que a este incumbe a obrigação permanente de concretização e realização dos direitos fundamentais".

Não é outra a docência de J.J. Gomes Canotilho [5]:

"O sentido mais geral da proibição de excesso é, como se acaba de ver, este: evitar cargas coactivas excessivas ou actos de ingerência desmedidos na esfera jurídica dos particulares. Há, porém, um outro lado da proteção que, em vez de salientar o excesso, releva a proibição por defeito (Untermassverbot). Existe um defeito de proteção quando as entidades sobre quem recai um dever de proteção (Schutzpflicht) adoptam medidas insuficientes para garantir uma proteção constitucionalmente adequada dos direitos fundamentais. Podemos formular esta ideia usando uma formulação positiva: o estado deve adotar medidas suficientes, de natureza normativa ou de natureza material, conducente a uma proteção adequada e eficaz dos direitos fundamentais" (grifo dos articulistas).

Segundo afirma, com inteira propriedade, Antonio Carlos da Ponte, […] os mandados de criminalização indicam matérias sobre as quais o legislador ordinário não tem a faculdade de legislar, mas a obrigatoriedade de tratar, protegendo determinados bens ou interesses de forma adequada e, dentro do possível, integral. (Crimes eleitorais. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 152).

Na precisa lição de Alexandre Rocha Almeida de Moraes,

"[…] o ambiente propício para a existência dessas ordens de criminalização é o do Estado Democrático de Direito, pois estas cláusulas de penalização só se justificam num sistema no qual a supremacia constitucional e a separação de poderes se apresentem de maneira efetiva e não apenas formal:
Os mandados se justificam num regime de normalidade institucional e democrática, própria dos Estados de Direito, ou Democráticos de Direito, nos quais há distinção entre normas constitucionais e leis ordinárias e entre os exercentes dos poderes legislativo e executivo.
Os mandados de criminalização constituem, pois, uma das faces da proteção dos direitos fundamentais, criando um novo papel para as sanções penais e para a relação entre o Direito Penal e a Constituição" (REVISTA JURÍDICA ESMP-SP, V.5, 2014: 43-68).

Nesse sentido, no julgamento do HC Nº 104.410[6], o Ministro Relator Gilmar Mendes aborda os chamados Mandatos de Criminalização previstos na Constituição Federal, "que, em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de condutas (CF, artigo 5º, XLI, XLII, XLIII, XLIV; artigo 7º, X; artigo 227, § 4º)". Esses mandatos constitucionais de criminalização impõem ao legislador “o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente" (grifo do articulista).

Considerando-se as disposições da Constituição e os tratados internacionais assinados pelo Brasil, o acordo de não persecução penal implicaria uma menor proteção ou a impunidade dos crimes de discriminação racial, afrontando esse princípio constitucional.

Concluindo, com base no arcabouço Constitucional e nos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, embora os crimes da Lei nº 7.716 de 1989, em regra, não sejam cometidos com violência ou grave ameaça e possuam uma pena mínima cominada inferior a quatro anos, não incide o acordo de não persecução penal, por ser insuficiente à repressão e prevenção da discriminação racial.

 


[1] Cf. Crimes de preconceito e de discriminação. 2ª edição, ed. Saraiva, 2010, p. 61.

[2] Julgado em 07/02/2023, publicado em 23/03/2023.

[3] Julgado em 22/03/2023, publicado em 24/03/2023.

[4] Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais, entre proibição de excesso e de insuficiência, in Revista da AJURIS, 98:105-149, jun-2005, Porto Alegre, Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, pp. 118-125.

[5] cf. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 2003, 7ª ed., Almedina, pág. 273.

[6] STF, 2ª Turma, julgado: 06/03/2012, publicado: 27/03/2012.

Autores

  • é procurador de Justiça Criminal do Estado de São Paulo, coordenador da Comissão de Estudos de Assuntos Legislativos da Associação Paulista do Ministério Público.

  • é doutor e mestre em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), professor nos programas de graduação e pós-graduação estrito sensu da PUC-SP e procurador de Justiça de Habeas Corpus e Mandados de Segurança em São Paulo.

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