Opinião

Dez anos da Lei Anticorrupção e a responsabilidade da pessoa jurídica

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30 de agosto de 2023, 17h23

A Lei nº 12.846/13 (LAC ou Lei Anticorrupção) é a principal norma voltada ao combate à corrupção no Brasil, ao introduzir no ordenamento jurídico brasileiro a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas por atos lesivos à administração pública em seu interesse ou dos quais se beneficie.

A LAC inovou justamente por ter eliminado, na esfera administrativa, o principal obstáculo à persecução de atos de corrupção (por exemplo, crime de corrupção ativa do artigo 333 do Código Penal) enfrentado na esfera penal: o ônus de provar dolo ou culpa do agente responsável pela conduta ilícita.

Entretanto, a responsabilidade objetiva não é sinônimo de responsabilização automática a partir da suposta existência de atos ilícitos. Se por um lado a LAC isentou as autoridades de demonstrar dolo ou culpa do agente, por outro, a responsabilidade civil e administrativa da Lei Anticorrupção requer a comprovação da ocorrência de ato lesivo previsto em seu rol (artigo 5º, incisos I a V), nexo causal entre a conduta do agente (ou do terceiro) da pessoa jurídica e o ato lesivo e a demonstração de que o ato foi praticado no interesse ou benefício da pessoa jurídica, exclusivo ou não.

Quais pessoas jurídicas poderiam vir a ser responsabilizadas objetivamente pela Lei Anticorrupção? Segundo André Pimentel Filho, a LAC atinge "qualquer pessoa não natural, independente da forma de organização adotada, modelo contratual, sede, ainda que exista apenas de fato". Portanto, parece suficientemente claro que o rol para responsabilização objetiva de pessoas jurídicas é amplo e abrange as mais diversas formas de organização empresarial.

Parece existir uma nuance na situação das sociedades unipessoais: a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (Eireli) e o Microempreendedor Individual (MEI).

As sociedades unipessoais estão sujeitas à esfera de responsabilização da LAC? É importante considerar preliminarmente que a LAC deixa claro no artigo 14 que, quando constatado desvio de função da personalidade jurídica (por exemplo, abuso de direito para prática de atos ilícitos ou confusão patrimonial), poderá ser aplicada a desconsideração da personalidade jurídica, para que as sanções atinjam o patrimônio de administradores e acionistas com poderes de administração.

Isso poderia parecer suficiente para inferir que a LAC pode atingir pessoas físicas, por mais que não sejam seu alvo primário. Existem ainda outras leis que as responsabilizam por atos lesivos contra a administração pública (como Código Penal e Civil, Lei de Improbidade Administrativa e Lei de Licitações e Contratos), mas, para a LAC, a responsabilidade da pessoa física por desconsideração é subsidiária à da pessoa jurídica e, por isso, a natureza jurídica das empresas unipessoais é ainda questão central para definir sua sujeição (ou não) à LAC.

O caso das Eireli já foi objeto de apreciação pela Controladoria Geral da União (CGU), órgão central no microssistema de combate a corrupção no Brasil no âmbito do Poder Executivo Federal. Por meio do Enunciado nº 17 de 11 de setembro de 2017, a CGU firmou o entendimento de que as Eireli podem ser responsabilizadas objetivamente e são categoricamente contempladas pelas sanções anticorrupção.

A assertividade com que as Eireli foram abrangidas pela LAC, enquanto os MEI permanecem em situação de incerteza, está diretamente relacionada ao maior grau de separação patrimonial entre as pessoas jurídica e física subjacente. Na Eireli, há o dever de integralizar capital social, pois é uma pessoa jurídica com responsabilidade limitada de cada sócio em relação ao capital social integralizado, portanto, o patrimônio da pessoa física não responderá automaticamente.

Já nos casos dos MEI, os microempreendedores respondem solidariamente por dívidas incorridas pelo patrimônio de afetação da pessoa jurídica, pois, o empresário individual é uma pessoa física que detém responsabilidade ilimitada na gestão de seus negócios. Por isso, o patrimônio do titular do MEI poderá responder pelas dívidas contraídas no exercício da atividade empresarial.

A discussão específica sobre a personalidade jurídica do microempreendedor individual para o direito administrativo sancionador é ampla e ainda incipiente. O PAR nº 00190.110841/2020-96 é um precedente relevante sobre a sujeição do MEI à esfera de responsabilização da Lei Anticorrupção e que desafiou a CGU a decidir em concreto sobre a situação do microempreendedor individual processado por atos lesivos à administração pública.

Naquele PAR, examinou-se a possível prática de atos contrários à administração pública brasileira por meio de um pretenso conluio entre uma MEI e agentes públicos.

Concluídos os trabalhos da comissão processante, foi determinada a aplicação de pena de multa contra a MEI, cumulativamente com a sanção de desconsideração da personalidade jurídica, com base no entendimento de que a criação da MEI teria servido única e exclusivamente para a prática de atos ilícitos. Com a desconsideração da personalidade jurídica, a multa atingiria também a pessoa física subjacente.

O relatório da comissão processante foi submetido à apreciação da Coordenação-Geral de Instrução e Julgamento de Entes Privados (Corep), instância revisora do PAR na época, que, de forma diversa, recomendou a extinção do PAR, por reconhecer que o ente privado processado, enquanto "MEI", não seria alcançado pela Lei Anticorrupção. Com isso, e sem prejuízo da responsabilidade civil e penal, a natureza do MEI impossibilitou a responsabilidade administrativa da pessoa jurídica pelos atos investigados.

A Corep firmou o respectivo entendimento por meio da proposta do Enunciado nº 17 de 11 de setembro de 2017.

Esse entendimento é compatível com a Lei Complementar 123/06 (LC 123/06), pela qual o MEI é considerado mais uma pessoa natural do que jurídica, conforme o artigo 18-A, §1º. Desse modo, o patrimônio empresarial se confunde com o pessoal para fins legais. Apesar de o MEI, juridicamente, ser qualificado como pessoa física, economicamente se comporta como jurídica, portanto, por mais que não ocorra a separação patrimonial, para fins tributários e de contabilidade, há a separação em decorrência das declarações anuais.

Portanto, a decisão da Corep no PAR 00190.110841/2020-96 se harmoniza com entendimentos já firmados por outros campos do direito brasileiro, que reconhecem a natureza jurídica sui generis do MEI. Ao mesmo tempo, a proteção do indivíduo na MEI não pode se transformar em um permissivo indireto para a prática de atos contrários à LAC, sob pena de violar o propósito da própria norma. Essa discussão deve ser reexaminada conforme o amadurecimento da aplicação da LAC à MEI.

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