Opinião

Utilidade pública e Lei da Mata Atlântica

Autor

  • Paulo de Bessa Antunes

    é detentor da edição 2022 do Prêmio Elisabeth Haub de Direito Ambiental e Diplomacia professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e presidente da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros e ex-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

29 de agosto de 2023, 6h09

Este artigo objetiva examinar as condições próprias para a concessão de declaração de utilidade pública (DUP) para a supressão de vegetação no bioma Mata Atlântica. O bioma é tutelado pela Constituição [1] sendo dotado de uma lei própria (LMA) [2]. Conforme disposto na LMA, a regra geral aplicável é o corte seletivo em função do estágio de desenvolvimento da vegetação [3].

As hipóteses de utilidade pública da LMA são específicas: não se confundem com as do Decreto-Lei nº 3.365/1941, ou da Lei nº 12.651/2012. A lei de desapropriações tutela a utilidade pública como decisão discricionária da administração, o que não ocorre nos casos previstos na LMA. Na lei ambiental, a declaração de utilidade pública é ato vinculado, pois necessariamente precedida de procedimentos próprios e obrigatórios, sem os quais a DUP é juridicamente vazia.

O conceito de utilidade pública é aberto e discricionário, deixando uma margem de ação muito ampla para a administração. É por isso que, para os efeitos de aplicação da LMA, ele foi positivado de forma objetiva e vinculada, com vistas a dar efetividade ao § 4º do artigo 225 da CF. A utilidade pública não é necessidade pública. Além disso, o nosso regime jurídico-constitucional contempla os interesses difusos.

O interesse público pode ser (1) primário ou (2) secundário. O interesse público primário é o "interesse social (o interesse da sociedade ou da coletividade como um todo)", já o interesse público secundário é o "modo pelo qual os órgãos da administração veem o interesse público" [4]. Os interesses difusos são os transindividuais e de natureza indivisível, dos quais o meio ambiente é um exemplo. Logo, a proteção ambiental é, simultaneamente, um interesse público primário e um interesse difuso.

A utilidade pública expressa de um interesse público, não imperativo, originado de uma situação para a qual não reste outra opção à administração pública que não seja a sua configuração, mediante a expedição de um ato próprio. É uma conveniência [5]. A hipótese inadiável e única solução possível a administração é que indica a necessidade pública. Assim, a categoria utilidade pública possui, em seu núcleo, um elevado teor de conveniência e oportunidade, sendo a discricionariedade a sua característica mais marcante. A discricionariedade para a declaração de utilidade pública em áreas de incidência do bioma Mata Atlântica, cede passo à vinculação, pois só pode ser declarada mediante a presença de determinados requisitos legalmente definidos (artigo 14 caput e § 3º da LMA).

Quanto à supressão de vegetação primária e secundária, o artigo 14 da LMA determina que ela só pode ocorrer em casos de (1) utilidade pública e (2) interesse social "em todos os casos devidamente caracterizados e motivados em procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto". Há, ainda, o disposto no § 3 do artigo 14 que estipula: "[n]a proposta de declaração de utilidade pública disposta na alínea b do inciso VII do art. 3º desta Lei, caberá ao proponente indicar de forma detalhada a (1) alta relevância e o (2) interesse nacional".

Veja-se que a LMA estabeleceu condicionantes claras, a serem observadas pelo administrador, quando da concessão de DUP em área incluída no bioma mata atlântica. Tais condições são absolutamente necessárias e a sua inexistência implica em nulidade do ato administrativo [6]. E não pode ser diferente, pois a banalização da concessão de DUP em área de mata atlântica é, na prática, esvaziar o comando contido no § 4º do artigo 225 da Constituição da República.

Lamentavelmente, o que se vê é que, em especial, as agências reguladoras têm concedido DUP para fins de supressão de vegetação na MA, sem observar o regime jurídico próprio da LMA. O cuidado para com o meio ambiente permeia todo o Texto Constitucional de 1988, desdobrando-se no dever imposto a todos de protegê-lo, em especial ao poder público, conforme se pode perceber do caput do artigo 225 da CF. Neste particular, não há qualquer dúvida no sentido de que as agências reguladoras integram o poder público, devendo, na esfera de suas atribuições, proteger o meio ambiente [7]. Logicamente, não lhes compete agir em substituição ao órgão licenciador, mas ter ciência do licenciamento ambiental e, no caso concreto, levar em consideração as suas conclusões para, no uso de suas atribuições próprias, examinar a questão como fundamento essencial para a concessão da DUP.

A exigência legal de um procedimento próprio para a declaração de utilidade pública em área de mata atlântica é sábia, pois o conceito de utilidade pública é extremamente fluído, atribuindo ao administrador um grau de discricionariedade que é incompatível com o sistema constitucional de proteção ao meio ambiente. Assim, o processo administrativo deverá examinar se, de fato, há (1) inexistência de outro local para a instalação do empreendimento e se a (2) alta relevância e o (3) interesse nacional estão presentes no projeto proposto. As condições de localização, evidentemente, não podem ser fixadas, meramente, com base em um critério de custo para o empreendedor. A alta relevância e o interesse nacional são condições que dotam o empreendimento de singularidades que justifiquem a ação extrema de suprimir vegetação constitucionalmente protegida. Portanto, são matéria de controle de legalidade.

A função do órgão ambiental licenciador é não permitir, salvo em casos realmente excepcionais, que os empreendimentos suprimam vegetação protegida. Quanto à (1) alta relevância e ao (2) interesse nacional, o que a norma exige é uma relevância especial, ou seja, não é todo e qualquer empreendimento — ou atividade — que, em tese, seja de utilidade pública que o será para a finalidade específica de supressão de vegetação de mata atlântica. As condições para tal são especialíssimas, devendo ser, insubstituíveis para o propósito pretendido. Isto demanda a produção de uma prova robusta perante o órgão licenciador e não meras alegações de "urgência" ou "custo", como tem sido o hábito. As leis, como se sabe, não possuem palavras inúteis.

Se a utilidade pública para fins de supressão de vegetação de mata atlântica for prodigalizada, a norma constitucional será violada, pois qualquer empreendimento de infraestrutura energética, e.g., estaria enquadrado no caso de utilidade pública. Parece ser lógico que esse não é o objetivo da LMA. É preciso que o empreendimento proposto seja particularmente necessário em uma determinada região ou regiões. É por isso que, no caso da Mata Atlântica, exige-se que a obra seja essencial, condição que deve ser demonstrada pelo empreendedor e reconhecida de forma minimalista.

É amplamente reconhecido que a CF é protetora do meio ambiente, podendo ser considerada uma Constituição "verde". Esta circunstância tem reflexos diretos no agir administrativo, haja vista que, na forma do caput do artigo 225, o poder público tem o dever de proteger o meio ambiente, mediante a adoção de diferentes políticas públicas (PP) que estão determinadas pelo § 1º do capítulo ambiental, mas não se limitam a elas. Uma das PPs mais relevantes é a proteção da mata atlântica.

Observe-se que, o artigo 3º, VII, b, da LMA, admite a DUP para fins de supressão de vegetação do bioma Mata Atlântica para obras essenciais de infraestrutura de energia mediante processo próprio. Isto não significa que toda e qualquer infraestrutura de energia seja automaticamente de utilidade pública, para a finalidade ora examinada. Isto decorre do fato de que o bioma mata atlântica tem uma proteção constitucional que, no caso concreto, é uma segunda camada em relação ao direito de propriedade. Logo, no caso específico de aplicação da LMA, não basta que a atividade seja genericamente de utilidade pública — condição para a desapropriação, por exemplo —, para a supressão de vegetação primária ou secundária de mata atlântica, se faz necessária a existência de um processo próprio com vistas a demonstrar a imprescindibilidade da supressão pretendida, tendo em vista o caráter essencial e de alta relevância da obra.

A supressão de vegetação no bioma Mata Atlântica — e as medidas que nela desembocam — somente pode ser autorizada quando presentes a (1) essencialidade e a (2) alta relevância (LMA, artigo 14, § 4º) que devem ser demonstradas em processo próprio. Assim, a declaração de utilidade pública para fins de supressão de vegetação primária ou secundária do bioma Mata Atlântica, não é ato discricionário, mas vinculado.

A DUP concedida sem o respeito aos requisitos legais caracteriza o defeito de finalidade[8]. Logo e necessariamente, só se pode emitir DUP incidente sobre área de ocorrência do bioma Mata Atlântica após percorrido o iter legal específico, com a demonstração cabal de seu caráter essencial e de alta relevância nacional.

 


[1] art. 225, § 4º

[2] Lei nº 11.428/2006

[3] Art. 8º

[4] MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. São Paulo: Saraiva. 20ª edição. 2007, pg. 47

[5] Há utilidade pública quando a utilização da propriedade privada é conveniente e vantajosa [ênfase acrescida] ao interesse coletivo, mas não constitui um imperativo irremovível…… Existe necessidade pública se a Administração está diante de um problema inadiável e premente, isto é, que não pode ser removido, nem procrastinado, e para cuja solução é indispensável incorporar, no domínio do Estado o bem particular. FAGUNDES, M. Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. São Paulo: Saraiva. 6ª edição. 1984, pg. 287

[6] Lei nº 4717/1965., art. 2º (e) e Parágrafo único (e)

[7] Lei 13.848/2019. Art. 33. As agências reguladoras poderão articular-se com os órgãos de defesa do meio ambiente mediante a celebração de convênios e acordos de cooperação, visando ao intercâmbio de informações, à padronização de exigências e procedimentos, à celeridade na emissão de licenças ambientais e à maior eficiência nos processos de fiscalização.

[8] O defeito de finalidade também poderá ocorrer sempre que o agente, ao praticar um ato administrativo discricionário, não observe os limites legais do exercício da discricionariedade. Tais limites vinculam a Administração de modo a manter a sua atividade discricionária não apenas orientada, como inafastavelmente balizada pela satisfação finalística do interesse público definido em lei, como único resultado juridicamente aceitável, pois a inobservância desses lindes não será um problema de incorreta avaliação de mérito, mas de violação indireta da lei e, portanto, um defeito de finalidade a ser corrigido. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense. 15ª edição. 2009, pg. 227

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  • é detentor da edição 2022 do Prêmio Elisabeth Haub de Direito Ambiental e Diplomacia, professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e presidente da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros.

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