Opinião

Legitimidade do fretamento por aplicativo: parecer da PGJ e análise do TJ-SP

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29 de agosto de 2023, 20h32

O TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) se depara, atualmente, com a necessidade de julgamento de um mandado de injunção impetrado pela Abrafec (Associação Brasileira dos Fretadores Colaborativos), que questiona a omissão estatal em regulamentar o serviço ofertado por seus associados à comunidade.

Apenas para situar todos os leitores, cumpre destacar que o fretamento colaborativo retrata a prestação de um serviço que se tornou popular com o avanço da tecnologia e, por consequência, pelo estabelecimento de uma comunidade de consumidores com interesses em comum. É dizer, pessoas que não necessariamente se conhecem no mundo físico acabam se unindo, por intermédio de uma plataforma digital, para contratar transporte coletivo — um ônibus ou uma van, na prática  do ponto A ao ponto B.

Na medida em que o estado de São Paulo não regulamentou o serviço, a associação impetrante busca destacar, inicialmente, garantir o livre exercício dos serviços atualmente prestados e, ao final, com o reconhecimento das diferenças entre os serviços de transporte regular  os "ônibus de linha"  em comparação com o fretamento colaborativo, seja a administração pública obrigada a editar norma regulamentadora em prazo razoável.

A presente opinião pretende  de modo singelo e específico  ressaltar a legitimidade dos serviços prestados pela associação impetrante sob as óticas constitucional e legal.

O transporte público de passageiros é um serviço de interesse público que pode ser prestado por entes privados. É isso o que prevê o artigo 21, XII, "e" da Constituição de 1988, e nenhuma norma estadual poderia contrariá-lo.

Vistas as coisas sob este prisma, fica evidente a necessidade de respeito, por um lado, à autonomia da vontade do público consumidor e, por outro, da liberdade de iniciativa econômica desenvolvida pelos entes privados que operam o fretamento colaborativo  seja como intermediário, como transportador, ou até mesmo como colaborador (motorista, colaborador, mecânico). Todas essas pessoas naturais e jurídicas realizam uma atividade absolutamente legítima, porque contratadas, em um ambiente de livre iniciativa, por um grupo que deseja se movimentar livremente e sem restrições injustificadas impostas pelo Estado.

Por mais que as considerações acima nada mais façam do que revelar a norma constitucional de maneira absolutamente elementar, o mandado de injunção se mostrou especialmente necessário em virtude de sucessivas autuações impostas pela Artesp (Agência de Transporte de São Paulo)  muitas delas sequer motivadas e todas, sem exceção, em manifesta violação aos dispositivos constitucionais editados pelo Poder Legislativo Federal. Cumpre destacar que uma parcela relevante das atuações ocasionaram a apreensão dos ônibus, interrompendo centenas de viagens, com os passageiros deixados, literalmente, em acostamentos.

Restando vencedor o aparente interesse da Artesp, a comunidade de consumidores ficará, na prática, refém do transporte de linha regular, usualmente prestado em rodoviárias e objeto de críticas muito incisivas por quem precisa se locomover a partir de tal modal.

Aqui, não restam dúvidas no sentido de que devem prevalecer os interesses constitucionais envolvidos, tal como ocorrido em relação ao transporte individual de passageiros, usualmente prestados com o auxílio de aplicativos como Uber, 99 e Cabify. A esse respeito, cumpre destacar que o Supremo Tribunal Federal editou, ao julgar o RE 1.054.110/SP, o Tema de Repercussão Geral 967, que estabelece, justamente, que "a proibição ou restrição da atividade de transporte privado individual por motorista cadastrado em aplicativo é inconstitucional, por violação aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência". E mais: "no exercício da sua competência para regulamentação e fiscalização do transporte privado individual de passageiros, os Municípios e o Distrito Federal não podem contrariar os parâmetros fixados pelo legislador federal", ou seja, não podem estabelecer reserva de mercado em favor de taxistas e em prejuízo da comunidade de consumidores.

A presente opinião defende que o entendimento sedimentado no Supremo deve pautar, integralmente, o julgamento de situações envolvendo o fretamento coletivo possibilitado por aplicativos, como é o caso da Buser. O raciocínio tem vinculação também com a legislação federal, na medida em que a Lei 13.874/2019 prevê, expressamente, ser direito de toda pessoa natural ou jurídica operar novas modalidades de produtos ou serviços quando as normas infralegais se tornarem desatualizadas por força de desenvolvimento tecnológico (artigo 3º, VI). Por sua vez, é dever da administração pública "evitar o abuso do poder regulatório de maneira a, indevidamente […] redigir enunciados que impeçam ou retardem a inovação e a adoção de novas tecnologias, processos ou modelos de negócios" (artigo 4º IV).

Ainda sob esse contexto, mostram-se absolutamente pertinentes as considerações desenvolvidas pela Procuradoria-Geral de Justiça do Ministério Público de São Paulo, retratadas em parecer acostado ao mandado de injunção. Segundo o subprocurador-geral, "o indivíduo detém autonomia da vontade, independentemente do Estado, o que, em última análise, deriva da própria dignidade da pessoa humana".

Daí porque o Estado não deveria atuar em favor do interesse público, não "para inclusão de expedientes burocratizados, cartoriais, corporativos". Ao final do parecer, a Procuradoria-Geral defende 1) que a violação à livre iniciativa está caracterizada no processo, e 2) a necessidade de concessão da ordem pretendida por intermédio do mandado de injunção, de modo a suprir a lacuna normativa denunciada nos autos.

Como já defendido em outras oportunidades, não é necessário grande esforço para notar que a concentração do transporte coletivo em poucos agentes prejudica severamente as pessoas que precisam utilizar o serviço. Situações de reserva de mercado geram a cobrança de preços altos por serviços inadequados. Este é, precisamente, o panorama verificado por quem visita um terminal rodoviário, e a existência (e sucesso) da oferta de serviços alternativos, alguns com o auxílio de plataformas tecnológicas, como o fretamento colaborativo, somente reforça a constatação ora trazida ao conhecimento do leitor.

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