Justiça Tributária

Afinal, para que serve o seguro garantia?

Autor

  • Marcus Livio Gomes

    é professor associado de Direito Tributário da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e pesquisador associado da Universidade de Londres.

28 de agosto de 2023, 8h00

A execução fiscal adquiriu uma notável relevância com a emergência do Estado de Direito e a consolidação dos sistemas jurídicos modernos. Não obstante, ainda não foi encontrado um equilíbrio entre a segurança jurídica dos contribuintes e a arrecadação de recursos públicos através da cobrança forçada de tributos, posto não haver uniformidade nos procedimentos formais para a recuperação de dívidas tributárias através da execução fiscal, diploma que será atualizado através do PL nº 2488/2022, oriundo do anteprojeto de lei ordinária de Execução Fiscal apresentado ao Senado pela Comissão de Juristas, presidida pela ministra Regina Helena Costa, do STJ (Superior Tribunal de Justiça), criada por esta casa legislativa para modernizar o processo tributário brasileiro, cujo relator é o subscritor deste texto.

Ao longo dos anos, uma série de mudanças políticas, econômicas e sociais influenciaram o direito tributário no Brasil e, consequentemente, a execução fiscal. A Constituição de 1988 representou um ponto de inflexão relevante ao assegurar direitos e garantias individuais, introduzindo regras específicas para o procedimento de execução fiscal, com a intenção de balancear o poder estatal com a proteção aos contribuintes.

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A legislação subsequente, exemplificada pela Lei de Execução Fiscal (Lei nº 6.830/1980), trouxe diretrizes mais claras e pormenorizadas para a cobrança de dívidas tributárias, estipulando normas que englobam desde a citação do devedor até a potencial penhora de bens. Ademais, ao longo das décadas, a adoção de tecnologia e a modernização dos sistemas judiciais causaram um impacto substancial na execução fiscal, conferindo maior celeridade aos processos e tornando a recuperação de créditos mais eficaz.

Dentro da estrutura da LEF, em seu artigo 9º, inciso II, uma das maneiras pelas quais o devedor pode assegurar a execução fiscal é através da "apólice de seguro garantia, nos termos da legislação específica". Isso implica que a lei concede ao contribuinte a alternativa de utilizar uma apólice de seguro garantia em vez de oferecer bens ou recursos como forma de garantir o pagamento do débito fiscal, o que foi implementado pela alteração promovida pela Lei nº 13.043, de 2014. A vontade do legislador foi flexibilizar as possibilidades de garantia do juízo, de forma a evitar que os contribuintes tivessem que desalocar preciosos e vultosos valores de seu fluxo de caixa, possibilitando, assim, a continuidade de suas atividades operacionais enquanto discute suas dívidas tributárias.

O seguro garantia é um instrumento financeiro pelo qual uma seguradora assume a responsabilidade de efetuar o pagamento do valor previsto na apólice caso o devedor não cumpra suas obrigações, como ocorre em situações de execução fiscal. No contexto em questão, uma apólice endossada se refere a uma apólice de seguro garantia que é modificada ou complementada de maneira a especificar que seu propósito é garantir um débito fiscal específico.

Ocorre que, diante de algumas situações específicas, como por exemplo a existência de uma ação anulatória anterior ao ajuizamento de uma execução fiscal, onde está sendo debatida a presunção de certeza e liquidez tanto do título executivo quanto do crédito tributário em si, e considerando também a existência de uma garantia adequada para a execução fiscal em questão através do seguro garantia, seria necessário suspender a execução fiscal proposta posteriormente até que haja uma decisão definitiva, ou ao menos uma decisão de mérito, nessa ação anulatória. Essa suspensão é crucial para assegurar que a garantia permaneça à disposição do juízo responsável pela execução, conforme disposto no artigo 32, § 2º da Lei de Execução Fiscal (LEF).

Contudo, não é o que vem ocorrendo atualmente em face da diversidade de posturas adotadas pelos diversos órgãos de representação jurídica da Fazenda Nacional, o que vem provocando grave insegurança jurídica. Em algumas situações requer-se a execução antecipada do seguro garantia mesmo na ausência de qualquer decisão de mérito, seja na ação anulatória antecedente à execução fiscal, seja nos embargos à execução fiscal. O mais dramático é que por vezes aplica-se a litispendência com relação à ação anulatória antecedente, vedando-se ao contribuinte a cognição plena dos Embargos à Execução Fiscal na execução fiscal proposta posteriormente.

Nesse contexto, não é estritamente essencial que o Juízo de primeira instância reconheça explicitamente a equiparação da ação anulatória aos embargos à execução fiscal para que a ação anulatória seja considerada um meio de defesa capaz de suspender o processo de execução fiscal. A suspensão do procedimento de execução, visando aguardar o desfecho da ação anulatória, é uma consequência natural da conexão por prejudicialidade [1] entre estas ações, por conta da existência de questões prejudiciais e da equiparação da ação regida pelo rito comum aos embargos à execução fiscal. Em suma, ou se reúnem as ações, ou se suspende a execução fiscal, pois qualquer solução distinta causará prejuízo aos contribuintes e insegurança jurídica.

Com o processo de execução devidamente garantido por meio da garantia fornecida no âmbito da ação comum, independentemente de ser uma ação anulatória ou embargos à execução, o juiz deve considerar, de ofício, que a peça de defesa tem um efeito suspensivo similar aos embargos à execução fiscal. A discussão acerca do entendimento sequer deveria existir, dado que no próprio código de processo civil é possível extrair a desnecessidade de ajuizar um novo processo com uma ação que trata do mesmo pedido, com os mesmos autores, como se verifica através da leitura combinada do artigo 921, inciso I do Código de Processo Civil com os artigos 55, §§ 2º, I, e 3º, e 313, V, "a". Novamente, a matéria é pacífica e segue previsto na LEF em seu artigo 38.

O principal efeito negativo oriundo do entendimento de que o executado deverá ajuizar a ação de Embargos à Execução, mesmo com uma ação anulatória que discute o mesmo débito em curso é a litispendência que é um dos conceitos que se insere no âmbito da "coisa julgada" formal, cujo objetivo é assegurar a estabilidade e previsibilidade dos processos judiciais, bem como a segurança jurídica. A litispendência fundamenta-se na ideia de que uma vez iniciado um processo acerca de uma determinada questão, as partes devem aguardar a conclusão desse processo antes de buscarem a mesma solução por meio de outra ação. Para que a litispendência seja estabelecida, três elementos precisam estar presentes: Identidade de Partes; Identidade de Objeto; e Identidade de Causa de Pedir.

A litispendência tem uma consequência prática significativa: a extinção de uma das ações em tramitação. Normalmente, a ação mais recente é a que será encerrada, a fim de evitar a duplicação de processos. A ação previamente iniciada receberá prioridade na análise e na decisão, uma vez que o mesmo objeto já está sendo debatido nesse processo. Contudo, o que fazer quando as regras de organização judiciária impedem a reunião dos feitos?

O que a Fazenda Nacional deseja com a liquidação antecipada do seguro garantia, caso fosse viável, seria a sua liquidação para que os valores permanecessem depositados em juízo até o trânsito em julgado. Isto significa que nem mesmo a Fazenda Pública poderá levantar estes valores antes do trânsito em julgado. Neste sentido, por qual razão submeter o contribuinte a colocar em risco o seu fluxo de caixa se os valores, já garantidos, não possam ser levantados pela Fazenda Nacional?

Por qual razão não se aplicar o princípio da menor onerosidade do executado. Isso porque conforme delineado no artigo 32 da Lei nº 6.830/80, o depósito efetuado como garantia para a execução fiscal só pode ser liberado ao depositante ou entregue à Fazenda Pública após a decisão ter transitado em julgado, mediante ordem emitida pelo juízo competente.

O Projeto de Lei nº 2.488/22, de autoria do senador Rodrigo Pacheco, fruto do anteprojeto de lei ordinária de execução fiscal, apresentado pelo relatório final da Comissão de Juristas nomeada por Ato Conjunto dos Presidentes do Senado e do Supremo Tribunal Federal nº 1/2002, presidida pela exma. ministra Regina Helena Costa e tendo como "Relator do tema Processo Tributário" o subscritor deste artigo irá alterar esta sistemática, que não se coaduna com o devido processo legal.

Dispõe em seu artigo 55 o seguinte:

"Art. 55. Não opostos os embargos ou, se opostos, tendo sido julgado improcedentes, a Fazenda Pública manifestar-se-á sobre o prosseguimento dos atos expropriatórios dos bens e direitos que servem de garantia para a execução.
§ 1º Na hipótese de os débitos estarem garantidos por seguro garantia ou fiança bancária regularmente ofertados e aceitos, o prosseguimento dos atos expropriatórios mencionados no caput somente poderá ocorrer caso o respectivo tribunal decida pela improcedência das alegações formuladas pelo embargante por ocasião do julgamento do mérito do eventual recurso de apelação interposto contra a decisão proferida em primeira instância."

O projeto foi aprovado por unanimidade pela Comissão de Juristas, inclusive pelos representantes da OAB e da Fazenda Nacional, e não deixa margem de dúvida. A garantia aos direitos do contribuinte e o devido processo legal devem ser assegurados até que se tenha o julgamento de mérito do eventual recurso de apelação da defesa apresentada em face da execução fiscal, como é o caso dos autos através de seguro garantia.

Na mesma linha de raciocínio, também no âmbito do Projeto de Lei nº 2.384/23, atualmente em análise no Senado após sua aprovação na Câmara dos Deputados, o legislador apresenta no artigo 5º do referido projeto a sugestão de adicionar o §7º ao artigo 9º da LEF com a seguinte redação:

"§ 7º. As garantias apresentadas na forma do inciso II do caput deste artigo (seguro garantia) somente serão liquidadas, no todo ou parcialmente, após o trânsito em julgado de decisão de mérito em desfavor do contribuinte, vedada a sua liquidação antecipada."

Ocorre que o que parece ser de fácil resolução, vem ocasionando diferentes e complexas discussões nos tribunais nacionais e diferentes posturas da representação judicial da Fazenda Nacional. A matéria já havia chegado ao STJ através de suas duas turmas, mas recentemente a presidência publicou decisões nos autos dos AREsp's nº 2.370.994/SP, 2.349.081/SP, 2.378.207/SP e 2.376.897/SP e encaminhou os recursos à Comissão de Gestão de Precedentes para avaliação da afetação do tema relativo à "possibilidade de liquidação antecipada do seguro garantia antes do trânsito em julgado dos embargos à execução fiscal" ao rito dos recursos repetitivos.

Com esta afetação, espera-se que o STJ pacifique a questão na linha dos dois projetos de lei que tramitam nas casas legislativas, impossibilitando a liquidação antecipada do seguro garantia. O tema é sensível e afeta sobremaneira as atividades operacionais das empresas, que usualmente não conseguem se privar de seu fluxo de caixa para depositar valores relevantes em juízo, mesmo que não sejam devedoras contumazes ou que estejam em programas de conformidade da Receita ou da PFN. Não por outra razão a LEF foi alterada justamente para incluir o seguro garantia como uma das modalidades a garantir a Execução Fiscal. Sabemos, contudo, que isso não dispensa a análise do periculum in mora e do fumus boni iuris pelos magistrados, mas com certeza trará mais segurança jurídica na relação processual fisco contribuinte.                                                                                                

 


[1] PROCESSO CC 81290 / SP CONFLITO DE COMPETENCIA 2007/0040456-1 RELATOR Ministro LUIZ FUX (1122) ÓRGÃO JULGADOR S1 – PRIMEIRA SEÇÃO DATA DO JULGAMENTO 12/11/2008 DATA DA PUBLICAÇÃO/FONTE DJe 15/12/2008

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