Embargos culturais

Notas sobre um almoço com Getúlio Vargas e Francisco Campos

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

27 de agosto de 2023, 8h00

No Rio de Janeiro de uma época muito charmosa, o ano de 1930 começou com um almoço de alguns membros da Aliança Liberal, o grupo político que derrubou a República Velha. Homenageavam Getúlio Vargas e João Pessoa. O encontro foi marcado para às 12 h, na Confeitaria Paschoal. A Confeitaria Paschoal era tradicional. Fora fundada em 1850, bem no centro do Rio, na esquina da Rua do Ouvidor com a Rua Gonçalves Dias (antiga Rua dos Latoeiros, na qual Tiradentes fora preso).

Spacca
O buffet da Confeitaria orgulhava-se de ter servido no Baile da Ilha Fiscal, em 1889, quando o Império apagava suas luzes. Bem ali perto, e também ponto de encontro de políticos, intelectuais e elegantes, a Casa Cavé, na Uruguaiana com Sete de Setembro, com sua torre projetada sobre a esquina. Pontificava também a Confeitaria Colombo, na Rua Gonçalves Dias, 32, com seu salão de chá, no segundo andar, em estilo Luís XVI: hoje um dos pontos mais fotografados do Rio de Janeiro. Essa região, que foi glamorosa ao longo do Império e da República Velha, testemunhava transformações que mudariam radicalmente as estruturas políticas e econômicas do país.

Epitácio Pessoa presidiu a homenagem, da qual participou Francisco Campos, então secretário do interior de Minas Gerais. Campos discursou. Foi o orador oficial da solenidade. A oratória era traço distintivo da atuação política desse importante político e jurisconsulto mineiro. Falava pausadamente, demonstrava erudição. Ao longo de sua carreira pública Campos recorrentemente falará em nome do Governo, e raramente contra o Governo. Um exemplo fundamental para a compreensão entre os intelectuais e o poder.

A fama vinha certamente de pronunciamento que fez como Deputado Federal, na sessão de 6 de outubro de 1921, ocasião em que defendeu a competência do Supremo Tribunal Federal. Nesse importante discurso enfatizou que a lei era uma disciplina, e que, como disciplina, implicaria em duas qualidades que eram imprescindíveis: a precisão e a uniformidade. Essa compreensão normativa, que condenava a mobilidade e a variação indefinida, são características de um conservadorismo jurídico que foi uma de suas marcas mais relevantes. Para Campos, a lei era um processo técnico que implicava elementos de inteligência e de vontade.

No dia do almoço as Ruas do Ouvidor e Gonçalves Dias estavam tomadas por muita gente (uma enorme massa popular nas palavras dos repórteres do Diário Carioca). Segundo os jornalistas, desde as 11 e meia da manhã o imponente salão da Confeitaria Paschoal estava repleto de deputados, senadores e importantes figuras da sociedade, que aguardavam ansiosamente a chegada de Vargas e de João Pessoa. Epitácio Pessoa fora recebido com uma longa salva de palmas.

No discurso proferido na homenagem a Epitácio Pessoa, Campos aludiu aos que ali estavam, definindo um sentido político para uma aliança. Enfatizava uma aproximação salvadora entre povo e governo. Completava afirmando que a razão de ser da Aliança Liberal residia no propósito de restituir ao povo o privilégio de designar a sua liderança. Finalizava o discurso erguendo a taça e desejando a felicidade pessoal dos dois homenageados.

Naquela reunião opunha-se à intransigência de Washington Luís, à qual se justificava o arranjo que então se fazia entre os presentes. Os efeitos da crise norte-americana de 1929 se projetavam junto aos grupos de exportadores do café aqui no Brasil. Conduzido pelos acontecimentos, o governo de Washington Luís vivia ocaso melancólico, marcado por uma política financeira que fazia da República Velha um arranjo de permanente repulsa, por parte de políticos que se movimentavam principalmente em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul.

Vargas discursou após Campos ter se manifestado. Falava em fatores morais na renovação de costumes políticos. Insistia na necessidade do livro exercício do direito do voto. A campanha eleitoral avançava com os compromissos assumidos. Os aplausos foram longos e entusiásticos. Seguiu um discurso de João Pessoa, breve e incisivo, confiante que o povo consagraria nas urnas os candidatos da Aliança Liberal. João Pessoa representava uma tentativa de aproximação do arranjo Minas Gerais-Rio Grande do Sul com grupos de nordeste. Epitácio Pessoa também falou, concluindo que o lema da Aliança Liberal deveria ser “para frente, sempre para frente”, porque recuar na situação em que se encontravam, com a Aliança arraigada no coração do povo.

Já se cogitava, inclusive, de eventual ministério que seria organizado por Vargas, se vencedor nas eleições. A Pasta do exterior iria para Epitácio Pessoa. O Ministério do Interior iria para Francisco Morato, o da Viação para Afrânio de Mello Franco, o da Agricultura para Assis Brasil. O Ministério da Fazenda, segundo a especulação, ficaria com Antonio Carlos. Luiz Carlos Prestes fora cogitado para o Ministério da Guerra e o Almirante Bastos para a Pasta da Marinha. Com a vitória de Vargas e de seu grupo em 1930 esse prognóstico não se confirmou.

Francisco Campos firma-se como figura central na construção e no desenvolvimento dessa nova ordem, da qual foi, seguramente, um dos pilares intelectuais.


Dedico esse ensaio ao Dr. José Rollemberg Leite Neto, advogado brilhante e intelectual de primeira grandeza, historiador e ensaísta, observador de nossos tempos, para quem "Ninguém abre um Vade Mecum e encontra definição de ativismo". Essa frase, lapidar, sintetiza o ambiente jurídico no qual vivemos.

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. É sócio do escritório Hage, Navarro & Godoy.

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