Diário de Classe

Carlos Santiago Nino: o grande jurista latino-americano do século 20

Autores

  • Francisco Kliemann a Campis

    é mestrando em Direito pela Unisinos bolsista do programa de excelência da Capes membro do Dasein — Núcleo de estudos Hermenêuticos e advogado.

  • Henrique Abel

    é doutor em Direito pela Unisinos-RS (com período de estágio doutoral como visiting student da School of Law of Birkbeck University of London) mestre e bacharel em Direito pela Unisinos-RS com pós-graduação lato sensu pela Escola Superior da Magistratura da Ajuris-RS.

26 de agosto de 2023, 8h00

O presente artigo é uma homenagem à vida e à obra de Carlos Santiago Nino, proeminente jurista, filósofo político e acadêmico argentino, nascido em 1943 e falecido precocemente em 1993 durante uma viagem à Bolívia para auxiliar no processo constituinte daquele país. Ele desempenhou um papel significativo no desenvolvimento do constitucionalismo latino-americano e contribuiu de maneira substancial para o estudo do Direito Constitucional, dos direitos humanos e da teoria política, tendo um papel acadêmico e político que nenhum outro jurista latino-americano teve no século 20.

Nino é reconhecido como uma das figuras mais influentes no campo do Direito Constitucional e da teoria política na América Latina. Como intelectual público, também desempenhou um papel importante na luta pela democracia, tendo sido um dos grandes responsáveis pelo indiciamento de vários membros da cúpula do governo militar argentino (história que é brilhantemente contada no premiado filme de 2022 Argentina 1985). Nino partiu da grande universidade de Buenos Aires (onde estudou em um núcleo de pesquisadores fortemente influenciados pela filosofia analítica) para fazer seu doutorado em Oxford, onde dialogou, aprendeu e debateu com autores do calibre de Ronald Dworkin, Thomas Nagel e Bernard Willians. Além de contribuir imensamente à teoria do Direito latino-americana, Nino contribuiu para a promoção de sistemas democráticos e para a consolidação dos direitos humanos em uma região marcada por desafios institucionais e políticos.

Seu mais importante livro é A Introdução à Análise do Direito, obra voltada principalmente para estudantes de graduação que se iniciam no Direito e na Teoria do Direito. Nino discorre sobre os temas de uma maneira clara, elegante e extremamente esclarecedora. Para explicar na prática o que significa ser jusnaturalista, juspositivista ideológico e juspositivista metodológico, Nino apresenta um experimento intelectual extremamente instigante: após uma breve introdução, o autor narra um caso prático no qual três modelos de juízes (juiz Sempronio, jusnaturista; juiz Caio, positivista ideológico e o juiz Ticio, positivista metodológico) julgam e fundamentam as suas decisões no Tribunal de Nuremberg.

No caso prático, os réus são juízes e agentes da lei que aplicaram o Direito Nazista para matar judeus. Os votos do acordão são extremamente perspicazes e introduzem com maestria a qualquer aluno temas como a (necessária) fundamentação jurídica das sentenças, a argumentação jurídica, a separação entre Direito e Moral (e suas contradições) e os problemas de um estado de exceção — sempre de forma a fazer os alunos construírem suas próprias visões levando em conta o contexto básico.

Como bem aponta Oscar Vilhena, em seu prefácio ao livro, Introdução à Análise do Direito não é um livro apenas didático. Nele, estão presentes todos os elementos da teoria do Direito formulada por Nino em seus livros posteriores. Em toda a obra há uma forte defesa de uma concepção do Direito que reconhece a moralidade e a democracia como fundamentos últimos para a obediência.

Durante sua estada em Harvard nos anos 80, Carlos Nino escreve sobre Dworkin, principal crítico de Hart. A interlocução entre essas duas pontas do debate jurídico permitirá que Carlos Nino formule um dos mais estimulantes livros de filosofia do direito contemporâneo: Ética y Derechos Humanos, obra que dedicou a seu amigo Raúl Alfonsín, ex-presidente da Argentina.

O livro, estruturado em três partes distintas, examina as áreas da ética normativa e aplicada, bem como se aprofunda na metaética. No âmbito desta última esfera, uma expansão subsequente ocorre em um volume separado, adotando uma abordagem construtivista. Essa abordagem tem o objetivo de derivar os princípios éticos fundamentais do arcabouço dos pressupostos do discurso moral. O autor busca encontrar uma posição intermediária, caracterizando-a como estando "entre Rawls e Habermas", sugerindo sua localização no panorama do pensamento.

Os princípios substanciais que emergem desse empreendimento, os quais constituem o núcleo de uma teoria com aspirações a abranger e integrar os elementos essenciais do liberalismo político, são três: o princípio de autonomia, o princípio de inviolabilidade e o princípio de dignidade. O primeiro princípio, a autonomia, espelha a visão de Nino sobre o bem. Ele define "bem" como sendo o que é valorizado pelo indivíduo em análise, e somente o que é valorizado por ele. O segundo princípio, o da inviolabilidade, introduz restrições deontológicas à busca desse "bem", proibindo a busca desse bem às custas do sacrifício de outros. Por fim, o terceiro princípio, o da dignidade, permite o consentimento individual, autorizando a renúncia aos direitos reconhecidos pelo segundo princípio.

Partindo destes pressupostos, o autor passa à análise de assuntos práticos, incluindo questões tradicionalmente polêmicas como consumo de drogas, pena de morte e aborto. Nino se opõe à aplicação da pena capital e à penalização do consumo de entorpecentes. No que concerne ao tema do aborto, ele propõe uma abordagem passo a passo, assemelhando-se ao enfoque adotado nos Estados Unidos, no qual os direitos são estendidos aos fetos somente quando eles evidenciam as capacidades cognitivas necessárias para serem considerados sujeitos morais.

Vilhena nos mostra que Nino tinha como preocupação transcender os limites da teoria analítica do direito, sem abandonar seu rigor teórico, mas assumindo os desafios de pensar o Direito em sua dimensão moral. Esta orientação se faz evidente em diversos momentos da Introdução à análise do Direito, assim como em suas obras posteriores.

Nino não se limitou, porém, a pensar e escrever sobre teoria do Direito, em sentido estrito. Entre as suas diversas obras, vale a pena destacar sua incursão no campo da sociologia do Direito com seu primoroso Un país al margen de la ley. Durante o início dos anos 1980, após a restauração da democracia, Nino se envolveu na política, atuando como assistente pessoal do presidente Raúl Alfonsín e como coordenador de seu recém-criado "Consejo para la consolidación de la democracia", um comitê especial para o estudo e design de reformas institucionais.

Após a morte de Nino em 1993, seu amigo Owen Fiss assumiu a tarefa de preparação e publicação de dois manuscritos até então ainda inéditos: "Constituição da Democracia Deliberativa" e "O Mal Radical em Julgamento", lançados em 1996.

Ao refletir sobre a trajetória de Carlos Santiago Nino, surge uma certeza: se mais juristas e pensadores absorvessem as construções teóricas e contribuições intelectuais do autor, teríamos um impacto muito positivo na construção de um mundo mais equitativo, compassivo e democrático.

 


Referências
NINO, Carlos Santiago. Introdução à análise do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

NINO, Carlos Santiago. Un país al margen de la ley, Buenos Aires; and Fundamentos de derecho constitucional, Buenos Aires.

NINO, Carlos Santiago. El presidencialismo puesto a prueba, Madrid.

VILHENA, Oscar Vieira. Prefácio: In NINO, Carlos Santiago. Introdução à análise do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

Autores

  • é mestrando em Direito Público, especialista em Direito Penal, editor-chefe do Jornal Habeas e integrante do grupo de pesquisa Dasein.

  • é doutor em Direito pela Unisinos-RS (com período de estágio doutoral como visiting student da School of Law of Birkbeck, University of London), mestre e bacharel em Direito pela Unisinos-RS, com pós-graduação lato sensu pela Escola Superior da Magistratura da Ajuris-RS.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!