Opinião

Entre o "direito penal do inimigo" e a política criminal na América Central

Autor

  • David Pimentel Barbosa de Siena

    é professor de Criminologia Direito Penal e Direito Processual Penal da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra (Acadepol) da Strong Business School (Strong FGV) da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e da Universidade Nove de Julho (Uninove) doutorando e mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) delegado de polícia do estado de São Paulo (PC-SP).

25 de agosto de 2023, 10h25

O fenômeno das maras e pandillas [1], termos usados em El Salvador, Guatemala e Honduras para se referir a gangues de rua compostas principalmente por jovens do sexo masculino. Essas gangues compartilham uma identidade comum que abrange desde formas específicas de comunicação e expressão cultural até rigorosas normas de conduta.

A expansão desses grupos na região do Triângulo Norte da América Central e sua associação com a escalada da violência nas cidades levaram a medidas não apenas nacionais, mas também internacionais, envolvendo as autoridades da região e outros países, notadamente os Estados Unidos (Correa, 2015).

Dessa categoria de organizações criminosas, a Mara Salvatrucha (MS-13) [2] é a mais conhecida, sempre associada a atividades ilegais como tráfico de drogas, contrabando de pessoas, assassinato e extorsão. Fundada em Los Angeles nos anos 1980 por imigrantes de El Salvador, a gangue se espalhou pelos Estados Unidos, América Central e Canadá, ganhando notoriedade por sua extrema violência.

Originada nos anos 1970 em El Salvador durante tensões pré-guerra civil, a MS-13 surgiu como uma resposta a gangues mexicanas em áreas hispânicas de Los Angeles. Formada por ex-membros do FMLN e refugiados, a gangue ganhou força nos anos 1990 ao se aliar à máfia mexicana.

Com uma estrutura relativamente flexível, a MS-13 se tornou uma das facções criminosas mais poderosas do hemisfério norte, conhecida por sua brutalidade, seus membros geralmente não demonstram medo das autoridades policiais e não são facilmente intimidados. Ativa em muitos estados dos EUA, Canadá e América Central, a organização criminosa se envolveu em guerras de gangues, assassinatos, tráfico de drogas e pessoas, além de alianças com cartéis mexicanos (Valdez, 1999).

Nessa esteira, as preocupações governamentais se intensificaram devido às conexões da MS-13 com ex-paramilitares salvadorenhos. De acordo com o FBI (2008), a MS-13 tem milhares de membros nos EUA e dezenas de milhares na América Central. Os membros, identificados por tatuagens, tinham idades entre 11 e 40 anos, com presença de afro-americanos além de hispânicos.

Além das abordagens policiais não justificadas, prisões, condenações e agravamentos relacionados a gangues, tais práticas de rotulagem levam a consequências colaterais de imigração, incluindo deportação e restrições permanentes à reentrada nos Estados Unidos (Barak et al, 2020). Destaca-se que, as mudanças nas leis de imigração dos EUA levaram a deportações de muitos réus acusados de serem membros da MS-13, que retornaram à América Central, agravando o problema.

Tais descrições da MS-13, usualmente feitas por autoridades governamentais dos EUA, sugerem que a gangue é altamente organizada, tem capacidade transnacional significativa e está fortemente envolvida em violência. Essas representações têm causado pânico moral entre o público e alimentado atitudes xenofóbicas em relação aos imigrantes latino-americanos (Nuño & Maguire, 2021).

De fato, majoritariamente, a MS-13 é caracterizada como uma organização criminosa internacional, porém Sonja Wolf (2012) observa que o suposto caráter transnacional é apenas simbólico, não tendo relações com sua configuração ou alcance de suas atividades. Impulsionada em grande parte por políticas de repressão a gangues na América Central, a MS-13 evoluiu de uma gangue de rua tradicional para um grupo com características de crime organizado, mas ainda é um fenômeno social enraizado na marginalidade urbana.

No último 25 de julho, a Assembleia Legislativa de El Salvador aprovou decreto que permitirá julgamentos coletivos para presuntos membros de maras e pandillas, levando a que grupos de aproximadamente 900 detentos enfrentem um único julgamento. A nova norma determina que vários acusados se submetam a um único processo penal por sua pertença a uma mesma estrutura terrorista ou organização ilícita, desde que tenham sido detidos durante o estado de exceção, vigente desde 27 de março de 2022.

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O presidente de El Salvador, Nayib Bukele
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Essa "disposição transitória" cria uma espécie de ficção jurídica, facultando ao Ministério Público de El Salvador aplicar a lei a uma coletividade de réus, como se fossem um único sujeito processual, por pertencerem à mesma gangue de criminosos ou associação ilícita. Em suma, esse decreto dispensa o MP da tarefa de individualizar as condutas dos réus, quando supostamente forem membros de organizações criminosas. Demais disso, a norma, que surgiu como uma iniciativa de do presidente Nayib Bukele, também estabelece que os detidos sob o regime de exceção podem permanecer presos provisoriamente por até 24 meses.

A medida do parlamento salvadorenho preocupa, pois, a literatura criminológica já apontou os obstáculos conceituais e empíricos na definição da MS-13 (Barak et al, 2020). Potencialmente, qualquer gangue pode ser caracterizada como uma mara, e, por conseguinte, sujeita ao direito penal de exceção instituído pelo governo Bukele. A definição ambígua dessas gangues, sem dúvidas, é fator determinante da sobrecriminalização salvadorenha. À guisa de ilustração, desde o início do regime de exceção, cerca de 72 mil pessoas acusadas de pertencer a gangues estão detidas no país.

Aparentemente, o predito decreto servirá como mais um instrumento da "guerra às maras e pandillas". Em fevereiro último, o governo salvadorenho inaugurou a maior prisão das Américas, com capacidade para 40 mil detentos, representando um centro de detenção que praticamente dobra a quantidade de vagas disponíveis para presos no país. É necessário registrar que, em 2022, El Salvador, com uma população de 6,5 milhões de pessoas, registrou a maior taxa de encarceramento do mundo. Por óbvio, a perspectiva é de um crescimento ainda maior da população prisional de El Salvador.

Além das críticas à política criminal que podem ser formuladas, é importante destacar que essa medida excepcional representa um exemplo extremo de populismo penal. Essa ação suscita preocupações significativas quanto ao respeito ao devido processo legal e aos direitos humanos, o que coloca em xeque a abordagem do governo em relação à segurança pública e à preservação do Estado de direito.

Ademais, essa manifestação de direito penal de exceção, aplicável às maras e pandillas, merece ser analisado à luz da dogmática penal. A medida adotada pelo governo de El Salvador ressalta a necessidade de discutir a validade de um sistema de Direito Penal que aborda o desafio de enfrentar uma criminalidade intensificada por organizações criminosas transnacionais, crimes hediondos ou similares, emergentes formas de terrorismo e a exigência de proteção de interesses que ultrapassam o âmbito individual, incluindo a criminalidade de natureza econômico-financeira.

Silva Sánchez (2011) propôs a classificação das "velocidades do Direito Penal". A primeira velocidade diz respeito ao modelo liberal-clássico, isto é, o Direito Penal norteado por princípios, direitos e garantistas fundamentais (liberdades públicas). A segunda velocidade incorpora flexibilização proporcional de garantias penais e processuais, adotando penas não privativas de liberdade e um processo mais eficiente. A terceira velocidade refere-se ao chamado Direito Penal do inimigo, em que a pena privativa de liberdade concorre com a relativização de garantias político-criminais e critérios processuais.

Günther Jakobs (2008) é tido como o principal veiculador do "Direito Penal do inimigo". O autor propõe que indivíduos que abandonam as normas jurídicas e não garantem a segurança cognitiva do comportamento pessoal se tornam inimigos. Ele enfatiza que ser tratado como pessoa requer a demonstração de um comportamento condizente com essa condição, e aqueles que cometem crimes de forma reiterada abandonam essa condição e se tornam adversários da ordem jurídica. As maras e pandillas, como gangues criminosas violentas e organizadas, frequentemente estão envolvidas em atividades ilegais, incluindo crimes violentos, tráfico de drogas e extorsão. A atuação dessas gangues vai contra as normas jurídicas e sociais, sendo assim, sob a perspectiva de Jakobs, seus membros poderiam ser considerados inimigos, uma vez que abandonam a conformidade com as leis e normas sociais e se tornam uma ameaça à ordem jurídica e à segurança.

Segundo Eugenio Raúl Zaffaroni (2011), o poder punitivo historicamente discriminou indivíduos, tratando-os como entidades perigosas em vez de pessoas. Essas pessoas são identificadas como inimigos da sociedade, resultando na negação de seus direitos dentro das garantias do Direito Penal liberal e dos princípios dos direitos humanos. Esse tratamento não se baseia apenas em dados históricos e sociológicos, mas também é respaldado por leis e doutrinas jurídicas que legitimam essa abordagem discriminatória. Mesmo os conhecimentos empíricos, como os da Criminologia tradicional, buscaram justificar essa diferenciação de maneira supostamente científica. O autor argentino defende que a visão de um inimigo da sociedade, alguém considerado perigoso e não como um ser autônomo e ético, é compatível apenas com um Estado absoluto, e sobre esse particular aspecto, ao menos, o governo salvadorenho não tem buscado escamotear a excepcionalidade de suas medidas, pelo contrário, tudo está às claras.

No contexto do enfrentamento das organizações criminosas, como as maras e pandillas em El Salvador, os Estados modernos têm adotado regulamentações jurídicas que se assemelham ao conceito de "Direito Penal do inimigo". Essas regulamentações apresentam características como a antecipação da punibilidade através da tipificação de atos preparatórios, a criação de tipos penais baseados em condutas e perigos abstratos, bem como penas desproporcionalmente altas e a relativização de garantias processuais. No caso específico do Decreto de 25 de julho de 2023, há uma nítida intenção do legislador em legitimar a coletivização da responsabilidade penal, em clara afronta ao princípio da individualização, além de potencialmente violar o princípio do juiz natural.

O recente decreto legislativo em El Salvador, permitindo julgamentos coletivos para membros das maras, reflete uma abordagem excepcional do direito penal, levantando preocupações quanto ao devido processo legal e aos direitos humanos. Contudo, não podemos negligenciar o fato de que, independentemente da terminologia utilizada, os sistemas jurídicos em todo o mundo têm adotado características de políticas criminais que se afastam do modelo clássico-iluminista em resposta às novas formas de criminalidade. Isso ocorre não apenas no contexto da criminalidade organizada, violenta e terrorista, mas também em outros cenários.

 

 

Referências
Asamblea Legislativa de la Republica de El Salvador (2023). Decreto de 25 de julho de 2023. Disposiciones transitórias especiales para ordenar el procesamiento de imputados detenidos em el marco del régimen de excepción, decretado a partir del veinisiete de marzo de dos mil veintidós. San Salvador, El Salvador.

Barak, Maya & León, Kenneth & Maguire, Edward. (2020). Conceptual and empirical obstacles in defining MS13. Criminology & Public Policy. 19. 10.1111/1745-9133.12493.

Correa, P. M. A. (2015). As maras e pandillas no Triângulo Norte da América Central e a atuação dos Estados Unidos em seu combate [Dissertação de mestrado, Programa San Tiago Dantas, Universidade Estadual Paulista, Universidade Estadual de Campinas, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo]. Disponível em: https://www.funag.gov.br/ipri/btd/index.php/10-dissertacoes/2075-as-maras-e-pandillas-no-triangulo-norte-da-america-central-e-a-atuacao-dos-estados-unidos-em-seu-combate. Acesso em: 15 de agosto de 2023.

Federal Bureau of Investigation – FBI (2017). The MS-13 Threat. Disponível em: https://archives.fbi.gov/archives/news/stories/2008/january/ms13_011408. Acesso em: 15 de agosto de 2023.

Jakobs, G. (2008). Direito Penal do Inimigo: Noções e Críticas (3a ed.). (A. L. Callegari & N. J. Giacomolli, Orgs. e Trads.). Porto Alegre: Livraria do Advogado.

Nuño, Lidia & Maguire, Edward. (2021). The Nature and Structure of MS-13 in Los Angeles County. Criminal Justice Review. 48. 073401682110299. 10.1177/07340168211029990.

Silva Sánchez, J.-M. (2011). A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais (2ª ed.). São Paulo.

Valdez, A. (1999). Getting to Know the Mara Salvatrucha. Police: The Law Enforcement Magazine, 23(6), 60-62. NCJ Number 177430.

Wolf, S. (2012). Mara Salvatrucha: The Most Dangerous Street Gang in the Americas? Latin American Politics and Society, 54(1), 65–99. http://www.jstor.org/stable/41485342

Zaffaroni, E. R. (2007). O inimigo no direito penal. (2a ed., Trad. S. Lamarão). Rio de Janeiro: Revan.

 


[1] Na América Central, existem tipos distintos de gangues: "pandillas" e "maras". Pandillas são gangues locais e nativas que existem desde os anos 1960 e 1970, tendo se originado historicamente dentro das sociedades centro-americanas. Elas eram prevalentes durante a era das guerras civis em toda a América Central e agora são principalmente visíveis na Nicarágua e Costa Rica. Por outro lado, as maras têm raízes transnacionais ligadas aos padrões migratórios. As duas principais gangues de maras, Mara Salvatrucha (MS-13) e Mara Dieciocho (Gangue da 18ª Rua ou M-18), surgiram nos Estados Unidos devido às migrações de El Salvador e Guatemala durante e após suas respectivas guerras civis. As maras foram fundadas como resposta ao ambiente em Los Angeles, onde os migrantes centro-americanos buscaram inclusão. Após a era das guerras civis, deportados retornaram à América Central, replicando estruturas e práticas gangsterísticas aprendidas nos Estados Unidos ao estabelecerem capítulos locais ou "clikas" das maras em suas comunidades de origem. Esse fenômeno foi especialmente evidente em Honduras e El Salvador. Em contraste, as pandillas locais na Guatemala evoluíram independentemente nos anos 1980, embora a presença de membros de gangues deportados dos EUA tenha influenciado as pandillas guatemaltecas. A cultura de gangues dos EUA teve um impacto transnacional nos países centro-americanos, diferenciando as maras das pandillas nicaraguenses.

[2] "MS" é uma abreviação de "Mara Salvatrucha", que resulta da fusão das palavras Mara ("gangue"), Salva ("Salvador") e trucha ("malandros da rua"). Adicionalmente, o número 13 é escolhido para representar a posição da letra M no alfabeto.

Autores

  • é professor de Criminologia, Direito Penal e Direito Processual Penal da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra (Acadepol), da Strong Business School (Strong FGV) e da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), doutorando e mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e delegado de polícia do estado de São Paulo (PC-SP).

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