Opinião

A cultura colocada contra o Direito

Autor

  • Allan Carlos Moreira Magalhães

    é doutor e pós-doutor em Direito (Unifor) professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e autor do livro Patrimônio Cultural Democracia e Federalismo (Dialética-SP).

24 de agosto de 2023, 17h25

O Brasil enfrenta, há algum tempo, um fenômeno de mimetização executiva pelo legislador com uma constante intromissão do Legislativo nas funções próprias do Executivo no campo cultural, com a edição de leis de efeito concreto para promover a declaração de bens culturais como patrimônio cultural nacional, estadual ou municipal, conforme o Ente federativo de onde provenha a norma.

Em discussões sobre os papéis dos poderes Legislativo e Executivo [1], indica-se que esta postura legislativa afronta a separação dos Poderes, pois a função deste, no campo do patrimônio cultural, é editar normas gerais e abstratas que direcionem a atuação do Executivo e que assegurem a participação democrática da comunidade na seleção, promoção e proteção do patrimônio cultural.

Mas, se o Legislativo, mesmo assim, insistir na edição de referidas leis de efeitos concretos, estas devem ser entendidas materialmente como ato administrativo, podendo ser revistas pelo Executivo em relação ao valor cultural do bem mediante o regular processo administrativo que conte com a colaboração da comunidade na definição do seu valor cultural [2] [3].

O presente texto, no entanto, pretende debater outro aspecto dessa mimetização executiva pelo Legislador, que é quando ela coloca a Cultura contra o Direito. Isto é, quando, a pretexto de manter uma prática ou manifestação cultural violadora de direitos, especialmente os direitos humanos, a declara como patrimônio cultural, buscando, com isso, uma falsa legitimação normativa.

A Emenda à Constituição nº 96, de 2017 que acrescentou o §7º ao artigo 225 para não considerar cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, se elas forem manifestações culturais registradas como patrimônio cultural brasileiro, é a norma angular do desvirtuamento da relação entre Direito e Cultura que é de influência mútua.

Nesta situação, o mito dos irmãos Castor e Pólux usado por Humberto Cunha [4] para explicar a relação de trocas mútuas de vitalidade entre Direito e Cultura para garantir o desenvolvimento de ambos,  não se aplica ao caso, por se tratar de um funesto retrocesso, pois ao invés de mudar as práticas culturais retrógradas e atentatórias da dignidade dos animais não humanos, modificou-se o Direito para chancelar as referidas práticas, escudado em esdrúxula ficção jurídica de excluir a crueldade das práticas desportivas que utilizem animais, se as mesmas forem registradas como patrimônio cultural.

Desta feita, a integridade do patrimônio cultural (inclusive dos valores que representa) é um direito humano fundamental, e que, portanto, tem um compromisso inescapável com a dignidade humana e a dos animais não humanos parece ter sido, assim como o Rei Midas, aquele da mitologia grega que transforma em ouro tudo o que toca, amaldiçoado. O toque de Midas do legislador no patrimônio cultural pode, num primeiro momento, ser visto como algo positivo e propulsor da defesa deste direito fundamental, mas no final das contas esvazia a sua natureza.

É preciso, portanto, ter clareza de que todo patrimônio cultural é uma manifestação cultural, mas nem toda manifestação cultural é patrimônio cultural porque este tem compromissos com os direitos humanos, com a dignidade humana e com a cultura de paz. Assim, a vaquejada, por exemplo, é uma manifestação cultural, mas não pode ser considerada patrimônio cultural porque não cultiva referidos valores.

Além disso, por mais que o Direito influencie as condutas humanas, uma prática cruel não deixa de infringir maus-tratos aos animais por mero ato de vontade normativa. Se assim fosse, bastava editar leis erradicando a pobreza ou curando doenças para sanar os problemas sociais que afligem a humanidade.

Assim, é preciso restabelecer o ciclo de trocas mútuas entre Cultura e Direito para assegurar o contínuo, mas não linear, aprimoramento da humanidade. Para tanto, a declaração de inconstitucionalidade da Emenda à Constituição nº 96, de 2017 que acrescentou o § 7º ao artigo 225 é essencial para resguardar a condição de direito fundamental do patrimônio cultural.

 

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Notas
[1] Cf. MAGALHÃES, Allan Carlos Moreira. Tombamento: qual o papel do Executivo e do Legislativo? IBDCULT. Disponível em: <https://www.ibdcult.org/post/tombamento-qual-o-papel-do-executivo-e-do-legislativo>. Acesso em: 04 ago. 2023.

[2] Cf. MAGALHÃES, Allan Carlos Moreira; CUNHA FILHO, Francisco Humberto. O TOMBAMENTO LEGISLATIVO: A LEI DE EFEITOS CONCRETOS. Revista Direito Ambiental e Sociedade, [S.l.], v. 8, nº 2, p. 181-204, out. 2018. ISSN 2237-0021. Disponível em: <http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/direitoambiental/article/view/5856>. Acesso em: 05 ago. 2023.

[3] Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 5670. Relator ministro Ricardo Lewandowski. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15348409684&ext=.pdf>. Acesso em: 05 ago. 2023.

[4] CF. CUNHA FILHO, Francisco Humberto. A relação entre cultura e direito: mitos e fatos. Disponível em: < https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/322/o/Artigo10.pdf?1453825563 > Acesso em 04 ago. 2023.

Autores

  • é doutor e pós-doutor em Direito, professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais, articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e autor do livro Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo.

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