Opinião

A (co)existência da execução forçada em contratos com cláusula de arbitragem

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24 de agosto de 2023, 18h14

A Lei 9.037/1996 permitiu, no Direito brasileiro, que as partes manifestassem expressa vontade de não depender do Poder Judiciário para dirimir seus conflitos que envolvam direitos patrimoniais disponíveis. As ferramentas do compromisso arbitral e cláusula compromissória permitem às partes especialmente diante da comum especificidades do negócio objeto do contrato igualar previamente a forma pela qual será decidida a demanda.

Desde a formação da lei, o procedimento arbitral tem se mostrado útil, especialmente por permitir a paridade de armas e produzir rapidamente provas em negócios complexos que se arrastariam por anos no Poder Judiciário; volte-se a dizer, especialmente pela especificidade do tema e, especialmente, dos negócios envolvidos no contrato.

Atualmente muito se discute se, após instaurada a arbitragem, poder-se-ia promover a execução forçada de obrigações contidas no contrato objeto da demanda arbitral.

Partimos sempre da Constituição. A Carta Maior traz a inafastabilidade da jurisdição ou controle jurisdicional cravado no artigo 5º, inciso XXXV. É, em verdade, um princípio base da existência do Estado Democrático de Direito na preservação do monopólio judicial, princípios da proteção judiciária e a preservação do direito de ação.

A gênese da Lei de Arbitragem é permitir que as partes, em negócios em que as suas vontades prevalecem, tenham sua liberdade decorrente da autonomia (de vontade) respeitada e guiada pela iniciativa legiferante que melhor se adequa à sua futura discussão. É possível à parte renunciar a um direito individual, desde que de forma expressa e diante de requisitos legais. Assim ensina o sempre professor José Afonso da Silva ao comentar o artigo precitado: "A lei não fere o princípio contido no dispositivo constitucional em exame, pois, o que este impede é que a lei exclua da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão a direito. Seria inconstitucional a lei se ela determinasse que certas questões teriam que ser submetidas ao juízo arbitral. Não é isso que ela faz. Apenas abre uma via especial para as partes em litígio, que a ela recorrerão ou não. Se o fizerem, usaram de arbítrio, de sua liberdade de dispor de seus interesses como melhor lhe aprouver (…). Nesse sentido já decidiu o STF (AI 542.181, RE 56.851, RTJ52/168)" [1].

Tem-se de forma muito ajustada que a escolha pelo modelo de resolução de conflito diverso daquele oferecido pelo Estado Juiz está absolutamente em consonância com a Carta Magna, conforme já decidido pelo Supremo Tribunal Federal.

De outro lado, o Código de Processo Civil prevê em seu artigo 784, §1º que a propositura de qualquer ação relativa a débito constante de título executivo não inibe o credor de promover a execução. É uma demonstração de que na execução pura e simples há possibilidade de coexistência de ação de conhecimento sem que haja a inibição da execução.

O Poder Judiciário tem sido chamado a falar sobre o tema. E o STJ tem caminhado no sentido de, na maioria das vezes ainda que com manifesta divergência permitir a execução ainda que tendo sido instaurado procedimento arbitral pelas partes, ainda que ressalvando a possibilidade de suspensão do feito pela regra geral do artigo 919, §1º do Código de Processo, que na maioria das vezes exige caução (neste sentido REsp 2.032.426; 1.914.196, 1.230.431, 2.032.426).

Vale ressaltar que o STJ, embora tenha aceito a coexistência como assentou o ministro Raul Araújo no REsp 137.710/MG: "Ademais, a previsão, por si, de cláusula de arbitragem não impede a parte Embargada/Agravada de ajuizar Execução de Título Extrajudicial, notadamente porque, como cediço, o Juízo Arbitral é desprovido de poderes expropriatórios", o tem feito de forma a procurar não desnaturar ou inviabilizar o próprio sentido do instituto da arbitragem.

É necessário se ponderar uma discussão que vai além daquela sobre o poder estatal de expropriação; o compromisso de arbitragem evidentemente não transfere poder estatal ao juízo Arbitral em termos de poder coercitivo patrimonial, todavia continua hígida a validade do princípio "Kompetenz-kompetenz" que espelha a previsão do Artigo 8º da Lei 9.307/1996, segundo o qual cabe ao Juízo Arbitral, com precedência sobre qualquer outro órgão julgador, deliberar a respeito de sua competência para examinar as questões que envolvam a existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e contrato que tenha cláusula compromissória. (REsp 1.276.872/RJ)

Neste raciocínio temos que a execução contratual é a fase mais gravosa em qualquer relação jurídica, e traz consequências patrimoniais muitas vezes irremediáveis. É a última instância de destituição patrimonial. Neste sentido, salvo melhor juízo, é no mínimo desaconselhável a intervenção estatal em moldes executivos, antes da decisão inclusive sobre a validade da obrigação em si.

As discussões contratuais, inclusive a grande maioria que são levadas à arbitragem estão afeitas ao Schuld (empregado o termo como momento do débito) e ao Haftung (empregado o termo como momento da responsabilidade) sendo ainda discutidas há evidente afetação do critério de certeza e/ou liquidez do título executivo extrajudicial.

Aceitar a execução como método preparatório enquanto não se resolve as questões primárias de um contrato afeito à arbitragem é, com todas as vênias, criar   "extra legem" uma nova modalidade de execução, que dá prevenção a atos executivos ainda não constituídos pela inclusiva arbitragem eventualmente instalada.

O tema é vasto, mas em nosso sentir, as partes, ao assumirem o compromisso arbitral, abrem mão do critério da força estatal necessária à execução; ao menos até resolverem sua controvérsia.

Aliás, o poder estatal necessário à execução que não guarnece o juízo arbitral traz em sua gênese a inafastabilidade da jurisdição (artigo 5º inciso XXXV da Carta Constitucional). E, neste sentido, as partes ao fixarem a forma de resolução de conflito extrajudicial e firmarem compromisso arbitral, claramente mitigam tal direito individual, impedindo a execução forçada justamente pela liberdade de fazê-lo.

Em última medida, em breve, o STF deverá apreciar o tema à luz da liberdade de contratação, e, neste sentido de optar pela resolução por arbitragem, e assim cremos ser um evidente impeditivo ao exercício da execução forçada. Reconhecendo que, ao dispor pela resolução por arbitragem, há mitigação do princípio da inafastabilidade da jurisdição por todo exposto, e neste sentido, embora esteja acesa a discussão no STJ, tenho que é matéria constitucional, implicando na manifestação do Pretório Excelso em interpretar conforme a constituição sobre a (im)possibilidade de coexistência da execução frente ao princípio da inafastabilidade da jurisdição quando iniciado procedimento arbitral.

Significa dizer que a assunção entre as partes de busca pela arbitragem seria, no campo dos direitos disponíveis, verdadeira renúncia à aplicação do princípio da inafastabilidade da jurisdição no caso concreto. E, assim, em campo constitucional, haver a impossibilidade de coexistência da ação de execução uma vez iniciada a avaliação arbitral de contrato.

 


[1] Comentário Contextual à Constituição Federal, 8ª edição

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