Opinião

Consensualidade no TCU: perguntas em aberto na Corte de Contas

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23 de agosto de 2023, 16h14

Em 2 de janeiro de 2023 entrou em vigor a Instrução Normativa nº 91/2022 (IN) do Tribunal de Contas da União (TCU), responsável por criar a Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos (SecexConsenso) para tratar das solicitações de solução consensual de conflitos e controvérsias que envolvam a administração pública federal. A IN, então, elencou os requisitos procedimentais para a apresentação das solicitações, bem como o rito a ser seguido para tanto.

Até o momento foram formulados 12 pedidos ao tribunal de contas [1]. No último mês, em 7 de junho, foi proferido o primeiro Acórdão da Corte de Contas homologando um acordo elaborado no bojo da nova Secretaria (Acórdão nº 1130/2023). Tratava-se de solicitação formulada pelo Ministério de Minas e Energia para solução de impasses relativos a um dos Contratos de Reserva de Energia firmados com a empresa para criação de termoeletétricas visando resolver a crise hídrica de 2020-21.

No entanto, ainda não há nenhuma decisão definitiva [2]. Isso porque o Acórdão supra se tratou de um acordo parcial, no qual a redução da geração se dará até o fim do ano e não tendo havido a resolução dos processos administrativos sancionadores. Essa decorreu de uma janela de oportunidade observada pela Comissão de Solução Consensual ao longo das tratativas para a redução de custos de operação da empresa em julho, o que beneficiou os consumidores em R$ 579 milhões [3].

Por se tratar de uma iniciativa recente e inovadora, que sequer teve um caso definitivo solucionado, ainda carecem de respostas algumas perguntas primordiais sobre o funcionamento da nova atividade a ser desenvolvida pelo TCU[4]. Da mesma forma, ainda é preciso avançar nas reflexões sobre a atuação da Secretaria de modo que surjam novas perguntas.

O primeiro — e talvez mais importante — ponto que merece reflexões é o desenho adotado para o procedimento, especialmente no que tange a possibilidade de engajamento e participação efetiva das entidades privadas no mecanismo criado pelo tribunal e suas consequentes deliberações. Isso porque, uma vez que se trata de soluções consensuais, a igualdade na participação entre as partes afetadas pela futura solução é relevante para que se chegue a um resultado ótimo para todos, o que inclui não apenas as partes do processo, mas a própria população brasileira afetada pelos litígios.

Com isso, a primeira barreira que se observa à participação dos entes privados se encontra no próprio rol de legitimados disposto na IN. De acordo com o normativo (artigo 2º), apenas as autoridades listadas no artigo 265 do Regimento Interno do TCU, tais quais os presidentes dos Poderes e ministros de Estado, dirigentes máximos das agências reguladoras e o ministro relator do processo em tramitação no TCU, podem apresentar solicitação de solução consensual. Como se vê, as empresas privadas foram excluídas do referido rol.

Assim, no caso de uma concessão, por exemplo, as empresas que desejarem usar o mecanismo deverão internamente convencer suas respectivas agências reguladoras — ou outros legitimados — dos benefícios da consensualidade promovida pela Cortes de Contas para que estas apresentem a solicitação ao TCU. depender dos custos do convencimento — o que pode ocorrer inclusive no bojo de procedimentos administrativos —, a negociação a ser travada no TCU, pode se iniciar, desde o marco zero, com elevados custos à construção do consenso, afetando a formulação de um ambiente dialógico propício à formulação de uma boa solução para todas as partes e para o caso concreto.

Não apenas por não serem legitimados, mas a própria IN dispõe que o privado não necessariamente participará da Comissão de Solução Consensual (CSC) — responsável pela elaboração da primeira minuta de solução. De acordo com o normativo (artigo 7º, §2º), o pedido de participação será avaliado à luz das circunstâncias específicas de cada caso concreto.

Com isso, questiona-se: em quais hipóteses seria cabível à Segecex inadmitir a participação do particular diretamente envolvido na controvérsia? O desenho escolhido intencionalmente deixou aberta a porta para a exclusão do particular nas reuniões da CSC, que podem ensejar na alteração do seu contrato, sem apresentar quaisquer parâmetros para tal decisão.

Tal situação se mostra ainda mais gravosa ao se perceber que, caso o Plenário do TCU sugira alterações na proposta elaborada pela CSC, apenas os representantes da administração pública que solicitaram a solução consensual ou manifestado interesse nos termos do artigo 3º, inciso V, IN, serão intimados a se manifestarem sobre (artigo 11, §1º, IN). Dessa forma, ainda que o particular seja admitido na CSC, na hipótese de modificações da proposta pelo tribunal, sua concordância, ao que tudo indica, não será requisito para homologação do acordo.

Por isso, resta entender quais circunstâncias serão valoradas pelo Tribunal de Contas a ponto de ser negada a participação dos particulares. Todos os casos apresentados até o momento ao TCU tiveram origem em contatos firmados com entes privados, sendo: a concessão da ferrovia Presidente Prudente, outros Contratos de Energia de Reserva, reequilíbrios entre a Anac e concessionárias aeroportuárias e entraves entre Concessionária do Serviço Telefônico Fixo e a Anatel. No mínimo, é possível inferir que, até o momento, a SecexConsenso tem sido interpretada pelo mercado enquanto um mecanismo relevante para solução de litígios envolvendo diretamente o Poder Público e os entes privados, e, em contrapartida, o desenho formulado pelo Tribunal não foi pensado de modo a garantir a paridade e centralidade de uma das partes dos negócios que serão objeto do acordo.

O segundo ponto que merece maiores reflexões se refere ao teor da análise do TCU à solução proposta, em especial aos limites que deverão ser observados à luz dos princípios e regras do Direto Público. Tal ponto já foi adiantado no Acórdão nº 1.130/2023 enquanto uma possível preocupação e crítica às soluções propostas no bojo da SecexConsenso.

O ministro relator Benjamin Zymler adiantou que poder-se-ia argumentar que a alteração contratual relativa ao afastamento da inflexibilidade da operação, promovida pela primeira solução consensual — o que impacta diretamente o orçamento da operação —, poderia violar o princípio licitatório (artigo 37 da CRFB) uma vez que outros participantes poderiam ter encaminhado propostas distintas se soubessem da possibilidade à época [5].

Contudo, tal argumento foi afastado pelo ministro, que afirmou que o motivo da contratação teria sido excepcional, não havendo interesse em nova licitação com o mesmo fim, e, em contrapartida, honrar os contratos nos moldes originais estaria gerando um quadro antieconômico.

Como se vê, parte da análise do ministro relator se deu no sentido de considerar que a contratação foi excepcional. E quando não for o caso? Por exemplo, no caso travado entre a Concessionária Aeroeste e Anac [6] o impasse gira em torno da construção de novo terminal de passageiros — disposto originalmente no contrato — e o requerimento da Concessionária de realizar investimentos alternativos para promover a adequação dos elementos de segurança operacional que geraram a necessidade da construção do terminal sem, contudo, implementar todas as alterações necessárias para o atendimento completo aos normativos de projeto de infraestrutura da obrigação.

Neste caso, é possível que venha a se entender pela necessidade de o acordo respeitar a competitividade, transparência e manutenção das condições efetivas das propostas da licitação. Assim, ainda será necessário maior acompanhamento para entender objetivamente como será a postura do Tribunal de Contas para balizar os interesses em disputa, a liberdade negocial bilateral e os regramentos licitatórios aplicáveis de modo a ser possível construir um racional de quais são os limites ao ambiente negocial criado pela SecexConsenso.

Por fim, outro ponto relevante diz respeito à capacidade institucional da SecexConsenso. Um dos requisitos para a admissibilidade de um pedido pelo Tribunal é a quantidade de processos em andamento e a sua capacidade operacional (artigo 5º, incisos II e III, IN). Ainda que o presidente do TCU [7] já tenha se pronunciado indicando que haverá aumento o pessoal, deve ser averiguado se a demanda seguirá sendo passível de ser suportada pela Corte de Contas nos prazos dispostos na própria IN [8], vez que há a necessidade de um servidor da SecexConsenso em cada Comissão (artigo 10, parágrafo único, IN).

Esse temor sobre a possibilidade de um certo "congestionamento" da SecexConcenso não parecer ser infundado, haja vista que a atuação das CSC tem sido percebida como um remédio para superar o chamado "apagão das canetas". Assim, necessário entender se os prazos dispostos serão ou não factíveis de serem cumpridos e quais serão os impactos em caso de descumprimento.

A SecexConsenso é uma iniciativa de relevo para o Direito Público, dando mais um passo na busca pela construção de um ambiente dialógico entre o poder público e os jurisdicionados. Por envolver assuntos sensíveis, em especial, relativos aos contratos administrativos, contínua formulação de questionamentos construtivos aos passos adotados pelo tribunal — como sobre sua governança e parâmetros a serem adotados — serão importantes para o aperfeiçoamento desse instrumento promissor.

 


[1] Levantamento próprio elaborado por meio da Pesquisa Integrada do TCU (https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/), na base de Processos, com termo chave "Solicitação de Solução Consensual".

[2] Jerson Kelman avaliou a solução parcial como um caminho de “second best” por ainda não ter enfrentado o bojo central da discussão, qual seja, o cumprimento das obrigações no prazo contratual à luz do interesse público. Leia o artigo na íntegra: < https://editorabrasilenergia.com.br/apagao-das-canetas-e-papel-do-tcu-na-busca-de-consenso/>

[4] Nesse sentido, recomenda-se a leitura do artigo "Conceitos que pegam e não pegam no Direito Administrativo" do autor Felipe Salathé no qual ele apresenta 5 críticas à SecexConsenso, das quais quatro são distintas às apresentadas nesse artigo, exemplificando o necessário exercício de se formular cada vez mais novas e diferentes perguntas sobre a atuação da Secretaria. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/reg/conceitos-que-pegam-e-nao-pegam-no-direito-administrativo-02082023>.

[5] Nessa seara, a temática da mutabilidade dos contratos administrativos tem sido objeto do STF, como na ADI 5991, cujo acórdão determinou que a imutabilidade do objeto da concessão não impede alterações no contrato a fim de adequá-lo as necessidades econômicas e sociais decorrentes das condições do serviço público de longo prazo, desde que sejam observados os princípios constitucionais relevantes.

[6] Solicitação de Solução Consensual em trâmite no TCU no processo nº 006.448/2023-2.

[8] Há o prazo de 90 dias, prorrogáveis por mais 30, para o término dos trabalhos da Comissão de Solução Consensual (art. 7º, §4º, IN).

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