Opinião

A visão fragmentária (e equivocada) do Poder Judiciário brasileiro

Autor

  • Reis Friede

    é desembargador federal diretor-geral da Escola de Magistratura Federal da 2ª Região (biênio 2023/25) ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21) mestre e doutor em Direito e professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).

22 de agosto de 2023, 12h26

A visão fragmentária da realidade do Judiciário brasileiro ora expondo (com rara precisão) os problemas da magistratura, ora consignando (em absoluto descompromisso com a verdade) características que não se apresentam como reais — é a tônica de diversos trabalhos extremamente superficiais e reducionistas acerca da complexa situação atual (e pretérita) do sistema judiciário verde e amarelo, e que, com intensa persistência (inclusive ideológica), têm sido apresentados ao público, buscando (intencionalmente ou não) conceber uma ideia equivocada (sob muitos aspectos fundamentais) e uma falseada radiografia do Poder Judiciário nacional.

Em alguns casos, os notórios equívocos são produto da pouca vivência (e mesmo excessiva juventude) daqueles acadêmicos que, desprovidos de uma experiência profissional mais ampla (como advogados, membros do Ministério Público e magistrados), limitam-se apenas aos seus parciais conhecimentos oriundos da academia, concebendo teses completamente divorciadas dos atuais desafios da magistratura brasileira, que, ao reverso do que vem sendo comumente informado, não reprime a independência jurisdicional dos jovens juízes.

Muito pelo contrário, uma vez que um dos grandes desafios da judicatura (no presente momento) é, ao reverso, exatamente a excessiva autonomia dos juízes de primeira instância (inclusive, substitutos, ainda em estágio probatório) que, ainda em tenra idade e, não raras vezes, ao arrepio da correta (e técnica) interpretação das leis, constantemente insistem em impor uma hermenêutica heterodoxa, forjando, em consequência (e por vias transversas), uma artificial existência de diversos "Judiciários", repulsando a necessária obediência às decisões colegiadas, particularmente àquelas sumuladas e, inclusive, mesmo as de nítido caráter vinculativo, em efetivo desrespeito ao texto constitucional.

"A democracia brasileira depositou no Poder Judiciário parte das esperanças de transformação social trazidas pela Constituição de 1988. A aposta aliou um catálogo de direitos a um repertório de ferramentas processuais de efetivação. (…)
A promessa de 1988 fracassou e a corporação judicial tem sua fração de responsabilidade. Permaneceu refratária à incorporação de princípios de controle e de transparência a sua estrutura e sua prática institucionais e ampliou modestamente o acesso à Justiça e o grau de pluralidade demográfica dos juízes de primeira instância. (…)
A magistocracia tem cinco atributos: é autoritária, autocrática, autárquica, rentista e dinástica. Autoritária porque viola direitos (é coautora intelectual, por exemplo, do massacre prisional brasileiro); autocrática porque reprime a independência judicial (juízes insubordinados são perseguidos por vias disciplinares internas); autárquica porque repele a prestação de contas (e sequestra o orçamento público a título de ‘autonomia financeira’); rentista porque prioriza interesses patrimoniais (agenda corporativa prioritária); e dinástica porque incorpora, sempre que pode, os herdeiros à rede. (…)
Um Judiciário independente, competente e imparcial é indispensável à democracia
. A magistocracia (entretanto) é adversária desse projeto." (Conrado Hübner Mendes; Magistocracia, Revista Época nº 1.031, 2/4/2018, p. 82)

Não por acaso a imperiosa necessidade de se estabelecer um consistente programa, junto às escolas judiciais, de "estudo continuado" (a exemplo do que lograram realizar os militares com sua "formação permanente", iniciando a vida castrense nas academias militares e passando, posterior e gradualmente, pelas escolas de aperfeiçoamento de oficiais, de Estado-Maior e, finalmente, pela de Altos Estudos), permitindo não somente uma saudável convivência entre os magistrados, como, igualmente, o seu necessário aperfeiçoamento profissional, a possibilitar, em última análise, um necessário aprimoramento da atividade judicante.

Ademais, cumpre ainda a realização de uma profunda reflexão sobre a carreira da magistratura, valorizando os "juízes de formação" em detrimento de outros profissionais (advogados, membros do Ministério Público, etc.), que, de "forma lateral", ingressam nos tribunais através de previsões constitucionais, muitas das quais herdeiras de ditaduras pretéritas (como o Quinto Constitucional, introduzido por Getúlio Vargas na CF/34, artigo 104, §6º) ou de populismos mais recentes (como o Terço Constitucional de ingresso no STJ, previsto na atual Carta Magna), permitindo uma perniciosa ingerência do Poder Executivo nos julgamentos afetos ao Judiciário.

"Coube ao Juiz Goodman presidir a audiência (relativa ao processo criminal a que o ex-Presidente Donald Trump responde em Miami), mas a expectativa é que o julgamento em si fique sob comando da magistrada Aileen Cannon, nomeada pelo próprio Trump: 'Diferentemente do Brasil (ainda que apenas em parte), cabe ao presidente dos EUA indicar juízes para cortes federais'." (O Globo, 14/6/2023, p. 18)

Por derradeiro, também vale sublinhar a necessidade de se estabelecer uma postura judicante firme e em perfeita harmonia com a normatização vigente  em que o silêncio ("o juiz só fala nos autos") é sagrado e é de lei , além de sepultar o mito da eleição direta para a presidência dos tribunais, cobrando-se, ainda, um certo "dever de coerência" no que diz respeito às críticas que se fazem em relação às decisões judiciais, sem que tal fato desmereça indispensáveis reflexões sobre uma reforma do Poder Judiciário que assegure o pleno cumprimento das mais importantes missões da Justiça: promoção do valor da segurança jurídica; prestação do serviço público pertinente; e irradiação da estabilidade político-institucional.

Autores

  • é desembargador Federal, presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), mestre e doutor em Direito e professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).

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