O Juiz das Garantias e os Três Amores
22 de agosto de 2023, 14h17
Em tempos de excesso de informações, sempre é difícil alcançar a atenção dos leitores de um site jurídico. Notícia cobre notícia.
Para ganhar a atenção necessária para uma discussão aprofundada, talvez tenhamos que usar um truque, como na anedota sobre as reuniões do antigo partido comunista da União Soviética:
O clube de uma cidade do interior anunciou uma palestra de um alto dirigente do partido sobre o tema "O Povo e o Partido estão unidos". Não apareceu ninguém. Uma semana mais tarde foi anunciada a conferência "3 tipos de Amor". O salão superlotou. "— Existem três tipos de amor", começou o orador. "— O primeiro tipo é o amor patológico. Isto é ruim, e sobre este tema nem vale a pena falar. O segundo tipo é o amor normal. Este, todos conhecem e, portanto, também não vamos nos alongar neste assunto. Resta ainda o terceiro — o mais elevado tipo de amor — o amor do povo pelo partido. E é sobre isto que vamos discorrer mais detalhadamente".[1]
Como na anedota, poderia dizer que temos três tipos de amor (dos dois primeiros não vou falar, como disse o sujeito do partido) e o mais elevado tipo é o do papel do Supremo Tribunal na interpretação das leis e da Constituição (falo do poder legiferante). E como isso afeta o juiz das garantias. "E é sobre isso que vou falar com mais detalhes" … como diria o camarada secretário-geral da pequena cidade soviética (atenção: o leitor deve ler a nota de rodapé nº 1).
Escrevi aqui, há semanas, no início do julgamento do juiz das garantias, artigo intitulado O juiz das garantias e a interpretação desconforme com a Constituição, pelo qual procurei mostrar, com todo cuidado e lhaneza, que uma coisa é fazer jurisdição constitucional e outra é a de desconfigurar um texto legal votado legitimamente pelo parlamento, colocando no seu lugar outro texto. Juristas como Christian Baldus perguntariam: como ficaria aqui a interpretação histórica negativa? Já Bernd Rüthers diria que houve uma interpretação sem limites (unbegrenzte Auslegung).
Antônio Pedro Melchior escreveu artigo perguntando se Assassinaram o juiz das garantias. Não foi muito ouvido. Ninguém quer ir às reuniões do "partido", como na anedota soviética. O meu artigo falando sobre a interpretação conforme e a possível mutilação do juiz das garantias, alertando para o que estava sendo feito (falava no voto do ministro Fux), também se perdeu no entremeio de tantos textos. Agora o julgamento já avançou.
O que é importante para o processo penal? A advocacia também é culpada disso tudo. Não discutimos porque não damos importância ou não damos importância porque não discutimos? Eis o paradoxo Tostines do JG. Enquanto isso, parcela majoritária da comunidade jurídica prefere, nas redes e grupos de Whatsapp, dedicar-se a outros assuntos "de maior importância", como, digamos assim, festejos de aniversários… Os próprios blogs jurídicos pouco tratam do assunto. Por isso, digo para você, caro Antônio Pedro: "temos de chamar esse povo para uma reunião… e parece que teremos de usar o truque dos Três Amores do Partido…"!
O que o Antônio Pedro disse no seu artigo segue a linha do que escrevi. Diz o articulista: "O parlamento decidiu que o juiz das garantias deveria ser o órgão competente para examinar a admissibilidade da denúncia e o fez com fundamento técnico indiscutível". E o STF decide em outro sentido. Há professores e advogados, que, embora minoritários, consideram correta essa troca de lugar do juiz no recebimento da denúncia. Eu não concordo, porque qual seria o sentido de colocar o recebimento da denúncia para o outro juiz, que terá, necessariamente, de examinar tudo o que houve na fase anterior, restando, assim, inexoravelmente "contaminado",[2] retirando do cerne do JG a sua própria razão de ser (recomendo a leitura da nota nº 2).
Em suma, recebimento da denúncia feito pelo juiz da instrução dá razão ao que Antônio Pedro lembrou sobre a advertência — visionária — do professor Jacinto Coutinho, há alguns anos: "se você mete um instituto acusatório numa estrutura inquisitorial, o que você vai receber é um novo instituto inquisitorial". É a máxima Lampedusa das reformas processuais no Brasil: algo tem que mudar para ficar tudo como está. No Brasil, Lampedusa convida Machado de Assis para almoçar.
É isso. Precisamos falar sobre o juiz das garantias. Precisamos falar sobre os limites da e na interpretação. Jurisdição constitucional não serve para substituir o legislador. Um bom exemplo para dissertações e teses de doutorado é a comparação do texto do artigo 3c da Lei com o que o STF reescreveu no mesmo 3c. E, por favor, não se pode dizer que os críticos e eu estamos exagerando. Basta um olhar sobre o conceito de interpretação conforme e nulidade parcial sem redução de texto. Não se admite — conforme a doutrina — interpretação conforme nos moldes esses feitos pelo STF 3c (falo aqui apenas desse dispositivo).
De todo modo, estão todos convidados, por mim e pelo Antônio Pedro, para a respeitosa discussão sobre Os Três Amores do Juiz de Garantias. Porque só sobre juiz de garantias não atraímos ninguém. Talvez falando de Três Amores…
[1] Não resisto em fazer também uma anedota: a metáfora não tem nenhuma relação com o comunismo. Não tem nada a ver com "partido é bom", "partido é ruim". Também não tem nada a ver com sexo. Nem com amor. E aqui também estou fazendo uma anedota sobre a anedota — e isso reside no fato de que é só uma metáfora para explicar aquilo que pretendi dizer.
[2] Sobre essa delicada questão, remeto o leitor para o item "3. O juiz das garantias diante do livre convencimento e da livre apreciação", do meu artigo publicado aqui nesta ConJur.
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