Opinião

Paradoxo hermenêutico da quantificação do dano extrapatrimonial trabalhista

Autor

  • Rafael Mansur

    é mestrando em Direito Civil na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) pesquisador da Clínica de Responsabilidade Civil da Uerj e sócio do Schreiber Advogados.

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19 de agosto de 2023, 13h20

Em 23 de junho deste ano de 2023, o STF (Supremo Tribunal Federal) concluiu o julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6.050, 6.069 e 6.082, que impugnavam diversos pontos do regime jurídico do dano extrapatrimonial, inserido na Consolidação das Leis do Trabalho na reforma trabalhista operada pela Lei 13.467/2017 [1]. Prevaleceu o voto do relator, ministro Gilmar Mendes, pela parcial procedência dos pedidos formulados, restando vencidos os ministros Luiz Edson Fachin e Rosa Weber, que reconheciam a integral procedência dos pedidos.

Entre as diversas questões examinadas pelo Supremo, a mais candente, sem dúvida alguma, consistiu na constitucionalidade do sistema de quantificação do dano extrapatrimonial, positivado no novo artigo 223-G:

"Artigo 223-G.  Ao apreciar o pedido, o juízo considerará:
I – a natureza do bem jurídico tutelado;
II – a intensidade do sofrimento ou da humilhação;
III – a possibilidade de superação física ou psicológica;
IV – os reflexos pessoais e sociais da ação ou da omissão;
V – a extensão e a duração dos efeitos da ofensa;
VI – as condições em que ocorreu a ofensa ou o prejuízo moral;
VII – o grau de dolo ou culpa;
VIII – a ocorrência de retratação espontânea;
IX – o esforço efetivo para minimizar a ofensa;
X – o perdão, tácito ou expresso;
XI – a situação social e econômica das partes envolvidas;
XII – o grau de publicidade da ofensa.
§1º Se julgar procedente o pedido, o juízo fixará a indenização a ser paga, a cada um dos ofendidos, em um dos seguintes parâmetros, vedada a acumulação:
I – ofensa de natureza leve, até três vezes o último salário contratual do ofendido;
II – ofensa de natureza média, até cinco vezes o último salário contratual do ofendido;
III – ofensa de natureza grave, até vinte vezes o último salário contratual do ofendido;
IV – ofensa de natureza gravíssima, até cinquenta vezes o último salário contratual do ofendido.
§2º Se o ofendido for pessoa jurídica, a indenização será fixada com observância dos mesmos parâmetros estabelecidos no §1º deste artigo, mas em relação ao salário contratual do ofensor.
§3º Na reincidência entre partes idênticas, o juízo poderá elevar ao dobro o valor da indenização."

Como se vê, o caput do dispositivo se desdobra numa lista extensa (e algo confusa) de parâmetros que devem ser considerados pelo julgador no momento da fixação do quantum respondeatur. O §1º, por sua vez, institui tetos para os valores arbitrados a título de indenização do dano extrapatrimonial, variáveis conforme a gravidade da lesão e calculados com base no "último salário contratual do ofendido".

O §2º esclarece que, em sendo a vítima do dano pessoa jurídica, o tabelamento instituído no parágrafo antecedente deve ser observado tendo como referência o salário contratual do ofensor. O §3º, finalmente, estabelece a possibilidade de dobra do valor da indenização em caso de reincidência entre partes idênticas.

Em relação a tais dispositivos, a maioria formada no julgamento das mencionadas ADIs decidiu lhes atribuir interpretação conforme a Constituição, nos seguintes termos: "Os critérios de quantificação de reparação por dano extrapatrimonial previstos no artigo 223-G, caput e §1º, da CLT deverão ser observados pelo julgador como critérios orientativos de fundamentação da decisão judicial. É constitucional, porém, o arbitramento judicial do dano em valores superiores aos limites máximos dispostos nos incisos I a IV do §1º do artigo 223-G, quando consideradas as circunstâncias do caso concreto e os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da igualdade".

A decisão tem sido celebrada por mitigar o rigoroso tabelamento instituído pelo legislador reformista, tornando meramente "orientativos" os parâmetros apontados nos incisos do caput e no §1º do artigo 223-G, além de proclamar, expressamente, a possibilidade de arbitramento da indenização acima dos tetos fixados no §1º. A interpretação acolhida pelo Supremo, no entanto, parece insuficiente para conformar, de modo pleno, o preceito legal à Constituição.

Com efeito, o inciso XI do caput do artigo 223-G elege "a situação social e econômica das partes envolvidas" como um dos critérios a serem considerados pelo juiz na apreciação do pedido indenizatório. A referência do legislador às "partes envolvidas" deixa claro que não deve ser examinada somente a situação social e econômica do autor do dano, para fins de imposição de um escopo punitivo à condenação, como também se deve levar em conta a situação socioeconômica da vítima do dano. Tem-se aí critério já chancelado pela jurisprudência dos tribunais superiores [2]. Nada obstante isso, a vinculação do valor da indenização à situação econômica da vítima enseja, num olhar mais atento, profunda perplexidade.

Nenhuma razão há para se sustentar que os interesses extrapatrimoniais de uma pessoa de melhor situação econômica mereçam uma tutela privilegiada frente àqueles de uma pessoa mais pobre. O dispositivo legal em exame reflete tentativa de legitimar, revestindo de juridicidade, a noção difusamente compartilhada por parcela da sociedade brasileira de que pessoas mais abastadas gozariam de um status superior, sendo, portanto, mais dignas que as demais.

Não é a esta noção hierarquizante de dignidade humana, contudo, que subscreve nossa Constituição, e sim a uma noção igualitária, reconhecendo-se a dignidade como um valor intrínseco a cada pessoa, do qual decorre uma exigência de igual respeito e consideração a todos [3]. Nessa direção, a atribuição de indenizações com valores diversos para um mesmo dano infligido a vítimas de estratos sociais distintos importa violação a valores nucleares da tábua axiológica constitucional [4].

Não satisfeito, o legislador prosseguiu em sua investida contra a Constituição no §1º do artigo 223-G, ao estabelecer tetos indenizatórios com base no "último salário contratual do ofendido". Ora, a remuneração do trabalhador é dado que não guarda qualquer nexo de pertinência com a sua esfera extrapatrimonial, a justificar seu emprego para a limitação do valor da indenização devida.

A iniquidade suscitada pelo inciso XI do artigo 223-G, ao eleger a situação social e econômica da vítima como critério de quantificação do dano, é retomada e exasperada pelo §1º ao limitar o valor do quantum respondeatur a um múltiplo do salário da vítima, permitindo que trabalhadores que suportem uma mesma lesão venham a receber indenizações distintas, caso seus salários sejam, por qualquer razão, distintos [5]. A questão foi enfrentada com precisão e sensibilidade no voto vencido da ministra Rosa Weber:

"O reconhecimento da subjetividade de cada trabalhador, materializado no direito à dignidade no âmbito intersubjetivo da relação de trabalho, não se submete à régua da capacidade econômica. Não se mede a dignidade pela riqueza, padrão financeiro e sequer pela estima social. A denominada reforma trabalhista inseriu a precificação do trabalhador brasileiro no âmago da legislação trabalhista em perversa coisificação da pessoa humana no contexto do vínculo empregatício, uma vez justificada a distinção normativa na fixação do valor da reparação do dano extrapatrimonial na posição contratual do ofendido, e ainda no respectivo salário contratual, em ofensa ao princípio da isonomia."

Pode-se concluir, portanto, que a interpretação conforme a Constituição conferida pela maioria do STF ao artigo 223-G não soluciona a sua mais grave contraditoriedade com a Lei Maior, uma vez que os "critérios" da situação social e econômica da vítima e do salário contratual do ofendido são, em si mesmos, inconstitucionais. Em outras palavras, de acordo com a interpretação sufragada pelo Supremo, a lei continuará orientando (e não mais impondo) o Poder Judiciário a conferir um tratamento discriminatório a pessoas mais pobres ou que recebam salários mais modestos, atribuindo-lhes uma indenização mais baixa para os danos infligidos à sua esfera existencial, mesmo que se admita que essa indenização seja superior ao teto legal.

A interpretação acolhida pelo Supremo falha, ainda, na indicação de parâmetros que justifiquem a desconsideração do teto legal pelos magistrados. A vaga referência às "circunstâncias do caso concreto" e aos "princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da igualdade" não contribuem para esclarecer em que casos a "orientação" da lei quanto aos limites indenizatórios pode ser flexibilizada.

A minuta de voto juntada pelo ministro relator à seção virtual de julgamento não explica nem exemplifica a aplicação dos princípios mencionados ao processo de quantificação, limitando-se a afirmar ser "possível que o magistrado, diante das especificidades da situação concreta eventualmente, de forma fundamentada, ultrapasse os limites quantitativos previstos nos incisos I a IV do § 1º". A referência ao princípio da igualdade, em particular, soa mesmo contraditória, uma vez que uma efetiva postura isonômica exigiria, como visto, a completa abolição dos critérios ligados à situação patrimonial da vítima.

A falta de concretude das balizas hermenêuticas indicadas pelo Supremo para a quantificação do dano extrapatrimonial tende a criar uma situação de insegurança jurídica tão grave quanto aquela que teria justificado, em primeiro lugar, a intervenção do legislador reformista e, posteriormente, a preservação, pelo tribunal, da constitucionalidade das normas impugnadas.

A tendência parece ser de que os magistrados que se sentirem inclinados a prestigiar a inovação legislativa apliquem fielmente os parâmetros legais e respeitem o teto legislativo, enquanto os que entenderem que a norma é inconstitucional ou mesmo inoportuna simplesmente ignorem o teto legislativo, limitando-se a se reportar à decisão do STF.

Ao magistrado trabalhista que pretender observar de forma rigorosa o seu dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais (CR, artigo 93, IX) restará o ônus argumentativo de lançar luzes sobre o verdadeiro enigma que lhe foi formulado pela Suprema Corte: como assegurar uma decisão razoável, proporcional e igualitária, valendo-se de critérios discriminatórios?

Nessa direção, a decisão das ADIs 6.050, 6.069 e 6.082 parece se inserir numa desconcertante tendência, já verificada em outras decisões do STF,[6] de elaborar teses ou interpretações que fecham os olhos às dificuldades práticas envolvidas na sua aplicação. Nesse cenário, todas as atenções se voltam para a Justiça do Trabalho, na esperança de que seja capaz de superar o paradoxo hermenêutico instaurado pela decisão do Supremo, sem descurar da inegociável proteção à dignidade humana dos trabalhadores brasileiros.

 

 


[1] Para um exame dos pontos mais relevantes deste regime jurídico, seja consentido remeter o leitor a Rafael Mansur, Danos à Dignidade do Trabalhador: notas sobre o regime do "dano extrapatrimonial" na Consolidação das Leis do Trabalho, in Anderson Schreiber e Marco Aurélio Bezerra de Melo (coords.), Direito e Transformação Social, Indaiatuba: Foco, 2023, pp. 491-504. 

[2] Confira-se, a título meramente exemplificativo: TST, 5ª Turma, Agravo de Instrumento em Recurso de Revista 194-94.2011.5.03.0037, relator ministro Guilherme Augusto Caputo Bastos, j. 20.5.2015; STJ, 1ª Turma, Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial 1.063.319/SP, relator ministro Sérgio Kukina, j. 3.4.2018.

[3] A trajetória da concepção hierárquica da dignidade até a contemporânea concepção universalista é detidamente examinada em Daniel Sarmento, Dignidade da Pessoa Humana: conteúdo, trajetórias e metodologia, 3ª ed., Belo Horizonte: Fórum, 2020, pp. 35-51.

[4] "É grave a violação que daí resulta ao princípio da isonomia, consagrado no artigo 5º, caput, da Constituição de 1988. A repercussão de uma certa lesão à personalidade de uma pessoa não pode ser considerada menor, por ser mais reduzida a sua capacidade econômica. O arbitramento do dano moral deve corresponder, sim, às suas condições pessoais e às reais consequências do dano sobre a sua personalidade, mas nunca às suas condições patrimoniais". (Anderson Schreiber, Arbitramento do Dano Moral no Código Civil, in Direito Civil e Constituição, São Paulo: Atlas, 2013, p. 181). Merece destaque, em sede jurisprudencial, a seguinte decisão do Superior Tribunal de Justiça: "A condição social da vítima, de pobre, não pode ser valorizada para reduzir o montante da indenização pelo dano moral; a dor das pessoas humildes não é menor do que aquela sofrida por pessoas abonadas ao serem privadas de um ente querido". (STJ, 3ª Turma, Recurso Especial 951.777/DF, relator p/ acórdão ministro Ari Pargendler, j. 19.6.2007).

[5] Na mesma direção: "A tarifação da indenização por danos morais adotada é de todo desconcertante. É dizer, institui um tirânico sistema de castas de trabalhadores que, em razão de seus salários, têm maior ou menor valor atribuído a seus direitos personalíssimos, em repugnante e manifesta violação do princípio constitucional isonômico. De fato, o critério do porte econômico da vítima como parâmetro de indenização é inusitado. Se o entendimento é o de que o dano extrapatrimonial é o sofrimento experimentado pela pessoa, daí impossível de ser mensurado; ora, considerar as condições econômicas da vítima apenas tem o efeito de atribuir menos a quem tem menos, e mais a quem tem mais. O fato de a vítima mais desfavorecida receber menos pelo mesmo dano sofrido não responde a qualquer princípio de justiça ou equidade". (Carolina Tupinambá, Danos Extrapatrimoniais decorrentes das Relações de Trabalho, São Paulo: LTr, 2018, p. 183).

[6] Registre-se, exemplificativamente, a controversa decisão a respeito do chamado direito ao esquecimento, no Recurso Extraordinário 1.010.606/RJ, examinada em: Rafael Mansur, Decisão do STF não é "pá de cal" no direito ao esquecimento: "A tese aprovada pelo plenário, porém, contenta-se com uma referência genérica ao controle do abuso das liberdades de expressão e de informação com base nos 'parâmetros constitucionais' — ignorando o fato de que o texto constitucional se limita a enunciar direitos, sem especificar os parâmetros de solução de colisões entre tais direitos, cuja enunciação cabe, precisamente, à doutrina e à jurisprudência —, revelando-se, portanto, incapaz de contribuir para a solução dos casos concretos que certamente continuarão chegando aos tribunais de todo o país".

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