Ambiente Jurídico

Litigância climática na América: os casos Montana e Maui

Autor

  • Gabriel Wedy

    é juiz federal professor nos programas de pós-graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) pós-doutor doutor e mestre em Direito Ambiental membro do Grupo de Trabalho "Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas" do Conselho Nacional de Justiça visiting scholar pela Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e pela Universität Heidelberg (Institut für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht) autor de diversos artigos na área do Direito Ambiental no Brasil e no exterior e dos livros O desenvolvimento sustentável na era das mudanças climáticas: um direito fundamental e Litígios Climáticos: de acordo com o Direito Brasileiro Norte-Americano e Alemão e ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

19 de agosto de 2023, 10h40

No caso Held v. Estado de Montana, ajuizado por 16 jovens, e decidido na última segunda-feira, a juíza Kathy Seeley, do Tribunal Distrital de Montana, decidiu que o réu tem a obrigação constitucional de proteger os seus habitantes das alterações climáticas. Os autores argumentaram na exordial que o réu violou o direito a um ambiente limpo e saudável, previsto expressamente na Constituição Estadual, ao permitir o desenvolvimento desenfreado de combustíveis fósseis, contribuindo assim para as alterações climáticas e poluindo o estado.

Spacca
A decisão determinou que Montana, um dos principais produtores de carvão e gás dos EUA, leve em consideração as mudanças climáticas ao decidir se aprova inicialmente ou renova os projetos em andamento que envolvam a indústria dos combustíveis fósseis.

Os autores, amparados em perícias e munidos de depoimentos de experts, provaram, em detalhes, que as autorizações, as concessões e as permissões dos projetos de petróleo, de gás e de carvão, por parte do Estado, acompanhados da insuficiente supervisão dos órgãos ambientais, prejudicam os residentes em Montana.

Os jovens autores demonstraram em juízo que os fenômenos climáticos extremos ameaçam as suas famílias e a sua saúde. Alegaram também a presença dos sentimentos de angústia e de incerteza ao vislumbrarem um futuro ameaçado por um colapso ambiental.

O estado, alterando em parte a linha de defesa dos litígios climáticos do estilo, não combateu a validade da ciência climática, mas invocou o princípio da Separação dos Poderes, argumentando que esta era uma questão a ser decidida no âmbito do Poder Legislativo estadual por agentes políticos eleitos e não por juízes sem expertise algum em direito climático.

A juíza Kathy Seeley, ao julgar procedente o pedido, considerou que as emissões no estado são um fator substancial para a alteração do clima e que o réu é responsável por uma quantidade de dióxido de carbono similar à produzida por países como a Argentina, a Holanda e o Paquistão.

Os cidadãos de Montana, como restou declarado na decisão, têm um direito constitucional fundamental a um ambiente limpo e saudável, que inclui o clima como parte do sistema de suporte da vida ambiental. O caso Montana, importante referir, já pode ser considerado um marco e terá grandes repercussões em futuros litígios climáticos que tenham como objeto a responsabilização das empresas e dos governos pelas alterações climáticas [1].

Como demonstrado, aliás, pelo último relatório do Sabin Center for Climate Change Law [2], capitaneado pelo professor Michael Gerrard, da Universidade de Columbia, há um significativo aumento dos litígios climáticos instaurados, mas poucos foram os casos que chegaram a julgamento na América. Em litígios climáticos com as características do caso Montana, há pouca jurisprudência estabelecida sobre as alterações climáticas e mesmo sobre verdades científicas básicas, como o fato de as emissões de combustíveis fósseis estarem a aquecer o planeta. Embora cientificamente este seja um fato quase incontroverso, judicialmente não está ainda bem estabelecido nas leis e, principalmente, na jurisprudência das nações.

Referido precedente será importante como base para o ajuizamento de novas demandas e julgamento de outras em andamento, inclusive em processos em tramitação que envolvem os estados do Havaí, de Utah e da Virgínia, bem como um litígio climático no Oregon.

Montana agora possui duas alternativas possíveis, ou vai recorrer da decisão para o Supremo Tribunal do Estado ou , ainda, poderá pedir a suspensão da decisão para começar a considerar imediatamente as mudanças climáticas antes de aprovar novos projetos ou renovar projetos antigos da indústria do carbono.

O Judiciário, mais uma vez, assume o protagonismo, em tempos de emergência climática e na era do antropoceno, e insere o direito constitucional neste importante debate que coloca em risco à biodiversidade e a própria qualidade de vida e o futuro da humanidade.

É importante observar que embora a transição para as energias renováveis esteja avançando muito nos Estados Unidos, esta ainda não é suficientemente rápida para evitar as piores consequências do aquecimento global antes do ano de 2100, prazo estabelecido pelo Acordo de Paris para estabilizar o aumento das temperaturas, preferencialmente próximas aos 1,5ºC, levando em consideração, como marco inicial, a era pré-industrial. Boa parte deste debate, portanto, precisa estar focado também em uma política de educação ambiental e climática para qualificar o debate na sociedade e nos parlamentos. É relevante descarbonizar e politizar os espíritos da cidadania mundial.

Prova disto é que ainda existe, lamentavelmente, fruto da desinformação, preconceito injustificado contra os parques solares, as turbinas eólicas e as novas linhas elétricas, havendo inclusive movimentos de esquerda e de direita que tentam inviabilizar estes projetos nos parlamentos e nos Tribunais, o que é uma lástima para o cumprimento do Objetivo 13 da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU que propõe uma necessária ação climática.

Esta decisão judicial pode estimular os consumidores de Montana, e norte-americanos em geral, para a compra de carros elétricos, de painéis solares, de bombas de calor e de aquecedores de água elétricos, e pode contribuir para que a própria agropecuária nos Estados Unidos comece a entender que o aquecimento global não é um jargão político, mas uma realidade que gera prejuízos econômicos de trilhões de dólares.

No ano de 2020, também, foi ajuizada demanda no condado de Maui, no Estado do Havaí, contra algumas das maiores empresas de petróleo e gás do mundo que ainda está tramitando no Tribunal Estadual. O fundamento jurídico do pedido é que as mudanças climáticas estão destruindo a vegetação de Maui em decorrência dos incêndios florestais que ocorrem cada vez com maior frequência, intensidade e força destrutiva. No pedido, o autor da ação requereu a condenação das empresas ao pagamento de uma indenização por danos climáticos alegando um esforço coordenado e transfronteiriço para ocultar e negar o próprio conhecimento por um longo período de que as atividades das mesmas ao queimar combustíveis fósseis está aquecendo o planeta e vai levar a situações extremas e perigosas como as enfrentadas nos dias atuais.

Referida demanda resta revigorada após os incêndios florestais provocados por condições ligadas às alterações climáticas terem devastado a ilha havaiana nos últimos dias. Ou seja, a indústria do gás e do petróleo aposta na desinformação em relação as mudanças climáticas e também nas alegações que enfraquecem e até desmoralizam o reconhecimento das relações de causa e efeito entre as emissões de gases de efeito estufa e os danos climáticos nas cortes [3].

Aliás, em tempo, mister referir que Maui, Honolulu e quase trinta estados americanos estão processando as empresas de combustíveis fósseis pelos danos climáticos, vários dos quais valendo-se da invocação da moderna ciência da atribuição.

E embora processos como o movido por Maui tenham suas decisões adiadas por questões processuais por alguns anos, os cada vez mais frequentes incêndios climáticos podem ser parte integrante do suporte fático para um provável juízo de procedência de pedidos de indenização como no caso do condado. De fato, e a experiência forense isto demonstra, as causas de pedir de Maui terão, após os recentes incêndios, maior eco junto ao júri popular, órgão competente para decidir o pleito, segundo as regras processuais estaduais, em virtude do desastre climático dramaticamente suportado pela comunidade local.

Os cientistas, igualmente, como referido, estão cada vez mais aptos a atribuir responsabilidade fática aos réus quando identificam as catástrofes específicas, como condições meteorológicas extremas ou incêndios florestais e as vinculam ao aquecimento global. Hoje é perfeitamente possível associar os eventos climáticos extremos aos produtores de combustíveis fósseis em virtude da maior precisão das imagens de satélites e dos avanços científicos e tecnológicos, assim como quantificar os danos ambientais e climáticos [4] se esta análise for feita com seriedade científica e com uma escorreita e competente análise jurídica.

A indústria dos combustíveis fósseis, em conhecida estratégia utilizada em cortes norte-americanas, por outro lado, tentam deslocar a competência do julgamento destes casos, como fizeram no caso Maui e noutros casos climáticos, para tribunais federais, onde esperam obter melhores resultados em virtude de dados processuais estatísticos. Todavia, a Suprema Corte dos EUA decidiu, no ano passado, apesar de sua composição predominante conservadora, em boa hora, que a competência para julgar os litígios climáticos do gênero deveria permanecer com os tribunais estaduais, o que é positivo para a luta contra o aquecimento global.

Na referida ação, Maui, na causa de pedir, refere que as empresas petrolíferas procuraram desacreditar o crescente conjunto de provas científicas publicamente disponíveis e criar persistentemente dúvidas no espírito do público contra a realidade da emergência climática. As empresas promoveram e lucraram com um aumento maciço da produção e da utilização de carvão, de petróleo e de gás natural, o que, segundo os demandantes, está na origem do aquecimento global.

Outro ponto interessante que pode ser constatado na demanda, é que a parte autora alega ter sofrido, e continuar sofrendo, perdas e danos, incluindo impactos diretos na saúde pública, diminuição das receitas fiscais provenientes do turismo e aumento dos custos para a adoção de medidas de adaptação e de resiliência.

Curioso é que enquanto os governos locais do Havaí procuram obter indenizações das empresas de petróleo e gás, o próprio Estado está sendo demandado pela insuficiência de sua política climática.

No ano passado, por exemplo, um grupo de jovens processou o Departamento de Transportes do Estado do Havaí, alegando o descumprimento do seu dever de reduzir as emissões de gases com efeito estufa e violar o seu direito constitucional a um ambiente limpo. Para os autores, ao promover e financiar projetos de construção de rodovias, que geram um aumento do tráfego, do consumo de combustíveis e das emissões que aquecem o planeta, o departamento está prejudicando a capacidade dos jovens de viverem vidas saudáveis no Havaí agora e no futuro.

Em suma, os litígios climáticos permanecem em crescimento em todo o mundo, e nem mesmo a Suprema Corte dos Estados Unidos da América, ou a política da direita conservadora, vai conseguir conter este avanço inexorável provocado pelas evidencias fáticas e científicas já reconhecidas por decisões judiciais de primeira instância.

 


[1] THE NEW YORK TIMES. Climate Change Was on Trial in Montana. Disponível em: https://www.nytimes.com/2023/08/15/climate/climate-change-was-on-trial-in-montana.html?searchResultPosition=1. Acesso em: 18.08.2023.

[2] UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME. Global Climate Litigation Report: 2023 Status Review.Disponível em: https://www.unep.org/resources/report/global-climate-litigation-report-2023-status-review. Acesso em: 18.08.2023.

[3] THE NEW YORK TIMES. Maui Sued Big Oil in 2020, Citing Fire Risks and More.Disponível em: https://www.nytimes.com/2023/08/18/climate/maui-fires-lawsuit.html. Acesso em: 18.08.2023.

[4] Sobre a ciência da atribuição, ver: SCIENTISTS AMERICAN. Scientists Can Now Blame Individual Natural Disasters on Climate Change. 2/1/2018. Disponível em: https://www.scientificamerican.com/article/scientists-can-now-blame-individual-natural-disasters-on-climate-change/. Acesso em: 10/2/2022; THE GUARDIAN. Venue of Last Resort: the Climate Law Suits Threatening the Future of Big Oil. Disponível em: https://www.theguardian.com/environment/2017/dec/17/big-oil-climate-change-lawsuits-environment. Acesso em: 20/2/2022; ALLEN, Myles. Attributing Extreme Weather Event: Implications for Liabilility. In: Munich RE. Liability for Climate Change? Disponível em: http://www.yooyahcloud.com/MOSSCOMMUNICATIONS/kxoPgb/Munich_RE_Liability_for_Climate_Change.pdf. Acesso em: 10/2/2022; ALLEN, Myles. Liability for climate change. Nature 421, 891–892 (2003). https://doi.org/10.1038/421891; BURGER, Michael; WENTZ, Jessica; RADLEY, Horton. The Law and Science of Climate Change Attribution. Columbia Journal of Environmental Law. 02.05.2020. p.60-240. V. 45:01. New York; WEDY, Gabriel. Litígios climáticos: de acordo com o direito brasileiro, norte-americano e alemão. 2ª. Ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2023.; WEDY, Gabriel; SARLET, Ingo; FENSTERSEIFER, Tiago. Curso de direito climático. São Paulo: Editor Revista dos Tribunais, 2023; AKAOUI, Fernando; WEDY, Gabriel. Direito climático: litígios e ciência da atribuição. In: Revista de Direito Ambiental. v.106. Abr- Jun. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022(p. 283-304).

Autores

  • é juiz federal, membro do grupo de trabalho Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas, do CNJ, professor do PPG em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, pós-doutor, doutor e mestre em Direito, visiting scholar pela Columbia Law School e pela Universität Heidelberg, integrante da IUCN World Comission on Environmental Law (WCEL), vice-presidente do Instituto O Direito Por um Planeta Verde e ex-presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!