Opinião

Assassinaram o juiz das garantias?

Autor

  • Antonio Pedro Melchior

    é advogado criminalista sócio-fundador do Melchior Advogados. Autor de livros entre eles Juristas em resistência: memória das lutas contra o autoritarismo no Brasil.

18 de agosto de 2023, 15h18

"Tá lá um corpo estendido no chão.
Em vez de rosto, uma foto de um gol."

Aldir Blanc e João Bosco

O professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho integrou a comissão de juristas que, ainda em 2009, incorporou a "estrutura acusatória" ao código de processo penal, prevendo o juiz das garantias no direito brasileiro (PLS 156/09). Ele já havia nos advertido: "se você mete um instituto acusatório numa estrutura inquisitorial, o que você vai receber é um novo instituto inquisitorial". É a máxima Lampedusa das reformas processuais no Brasil: algo tem que mudar para ficar tudo como está.

ConJur
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As reformas legislativas no Brasil, ao longo de toda história do país, têm sido sequestradas e mutiladas por um modelo violento, autoritário e inquisitorial de processo penal. Vale o mesmo com as interpretações judiciais a respeito das novas legislações, a exemplo do juiz das garantias. Nenhuma novidade nisso. O viés retrospectivo das interpretações judiciais foi denunciado há mais de uma década por Rubens Casara: o novo, visto com o olhar do velho, impede a concretização do projeto constitucional de 1988.

Vou tratar apenas da proposta, surgida no julgamento em curso no Supremo Tribunal Federal, de “modificação” do artigo que trata do controle da acusação pelo juiz das garantias, transferindo-o ao juiz da instrução.

Esta proposta, data venia, desrespeita o parlamento brasileiro. E é diferente de reconhecer a inconstitucionalidade da criminalização do uso de drogas, embora reconheça o desconforto do senador Rodrigo Pacheco, presidente da casa. O Legislativo já havia retirado a previsão da pena de prisão ou multa ao usuário de drogas. Quem manteve viva a ideia de que não teria havido descriminalização, mas apenas uma despenalização foi o próprio Supremo Tribunal Federal. Crime sem pena, contra as advertências da doutrina.

Não há controle de constitucionalidade na proposta de tirar a análise da admissibilidade da denúncia do juízo das garantias. Aqui, há voluntarismo puro e simples de magistrados que decidiram que são mais capazes que parlamentares eleitos pelo povo para avaliar as opções políticas e jurídicas da lei.

Por quantos anos mais será necessário dizer o Poder Judiciário não tem superioridade moral ou jurídica para reescrever a legislação e, o que é mais grave, fazê-lo para enfraquecer a força normativa das garantias individuais?  Veja-se o caso da soberania dos vereditos: manda-se prender após a sentença, por deferência, justamente, à garantia da soberania. Ou seja, emprega-se a garantia individual contra o seu destinatário.

A mesma soberania não tem o mesmo tratamento quando se trata de decidir a respeito das teses levantadas em plenário. Ali, não são tão soberanos assim. Então, juízes togados resolveram julgar inconstitucional uma tese, há muito considerada ruim, misógina e, portanto, recusada pelos jurados brasileiros, em onze de cada dez julgamentos em que deve ter sido levantada.

O professor Lenio Streck bate nisso todo dia, provavelmente pelo tempo que eu tenho de vida. Ainda assim, não tem sido ouvido como deveria, em especial, porque o ativismo judicial, para se viabilizar, vez ou outra, faz gracinhas em favor dos direitos humanos. Golpe pelo imaginário! A mesma Corte que amplia a incriminação do racismo em detrimento da exigência de legalidade estrita, mantém pretos e pobres presos por furto de carne e outros delitos insignificantes.

O parlamento decidiu que o juiz das garantias deveria ser o órgão competente para examinar a admissibilidade da denúncia e o fez com fundamento técnico indiscutível. Essa era a proposta de diversos institutos científicos, a exemplo do Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal e conta com o apoio de grande parte dos professores da matéria (no Brasil e em toda América Latina, pergunte aos professores Geraldo Prado e Alberto Binder).

A descontaminação relativamente aos elementos probatórios obtidos na investigação é o fundamento para que o juiz que realiza a admissibilidade da acusação não seja o mesmo da instrução probatória. Como o professor Geraldo Prado esclareceu, a influência, não somente psicológica (por elementos não contraditados), mas também estratégica (ciência do caminho optado pelo acusador), colocam a perder o principal objetivo da proposta, que consiste em que o juiz da instrução probatória esteja o mais distante possível dos interesses das partes.

Não sendo possível estabelecer um modelo de julgamento colegiado em primeiro grau, com três etapas de controle (cautelares/admissibilidade/instrução), a única opção é blindar, tanto quanto possível, o "juiz da prova", evitando que se contamine com o caso penal construído na investigação.

Caso a admissibilidade seja transferida ao juízo da instrução, será eliminada, por decorrência lógica, a exclusão física do inquérito, algo que o professor Aury Lopes Jr., autor mais lido no Brasil, defende há mais de 20 anos. Com isso, o juízo da instrução continuará se embriagando com os elementos obtidos na fase preliminar. Está aí: mudamos para não mudar. Matamos a estrutura acusatória, pensada para assegurar a originalidade cognitiva do juiz que julgará o mérito da causa.

A decisão legislativa pelo juiz das garantias foi uma conquista de bravos (as) parlamentares em favor da imparcialidade da agência judicial, ainda quando a "lava jato" matava reputações e pessoas, como o reitor Luiz Carlos Cancellier.

Agora, a lei, embora declarada constitucional pelo STF (obvio ululante), está sendo reconfigurada pelos próprios juízes. O ralo é grande e a tendência, sem profunda reforma do sistema de justiça penal (e das mentalidades), é jogar o juízo das garantias no mesmo lodo em que foram parar as medidas cautelares diversas da prisão. Mais gente enjaulada e, ao mesmo tempo, mais gente submetida a dispositivos de vigilância.

O processo penal republicano e democrático exige um juiz imparcial. Separar fases, mas, ao mesmo tempo, deixar o inquérito ao exame do juízo da instrução, para que conheça o fato e decida sobre a admissibilidade, a partir do material colhido na delegacia ou em gabinetes ministeriais, não ajudará neste propósito. É uma trampa, como concluiu o professor Lenio.

O trabalho da crítica é longo, lento, mas necessário. O julgamento não acabou. Papel da doutrina é esclarecer. Religar os refletores, como foi feito no caso da presunção de inocência. Jogar no tribunal, de novo e uma vez mais, as luzes que vem servindo para nos tirar do atraso e do obscurantismo.

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