Opinião

A embriaguez e a aplicação da teoria da actio libera in causa

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17 de agosto de 2023, 13h23

Levando-se em consideração que o tema da embriaguez ainda se encontra repleto de controvérsias, torna-se imprescindível fazer a análise de seus aspectos e sua aplicação no interior da teoria do delito. Para que se entenda a aplicação da teoria actio libera in causa faz-se necessário o estudo sobre o conceito de embriaguez e suas modalidades.

Noção jurídica de embriaguez
Para a ciência jurídica, embriaguez é a intoxicação produzida pela demasiada ingestão de álcool ou por qualquer outra substância inebriante, que afeta, principalmente, a esfera psíquica do indivíduo.

Pablo Hidalgo
Pablo Hidalgo

No ordenamento jurídico brasileiro existem as seguintes modalidades de embriaguez: patológica, acidental, preordenada e não acidental. Cada uma dessas espécies tem suas definições e diferenciações, conforme se observa abaixo:

Embriaguez crônica ou patológica
Inicialmente, cabe estabelecer a diferença entre embriaguez simples e embriaguez patológica. A embriaguez simples é a mera intoxicação do organismo pelo álcool, enquanto que a  embriaguez patológica é aquela decorrente de vício, caso dos alcoólatras e dos dependentes.

A embriaguez reconhecidamente patológica é equiparada à doença mental, logo, aplica-se o disposto no artigo 26, caput, e seu parágrafo único do Código Penal, ensejando, se presentes os requisitos do dispositivo legal citado, a imposição de medida de segurança.

O agente é considerado inimputável ou semi-imputável conforme conclusão do laudo pericial.

Embriaguez acidental ou fortuita
A embriaguez acidental é aquela decorrente de caso fortuito ou força maior.

No caso fortuito o agente ignora a natureza tóxica do que está ingerindo ou desconhece uma condição fisiológica que o torna submisso às consequências da ingestão do álcool. Já a embriaguez forçosa deriva de uma força externa ao agente, que o obriga a consumir a droga.

Se a embriaguez acidental for incompleta e diminuir a autodeterminação do agente, não excluirá a imputabilidade, mas permite a diminuição da pena de 1/3 a 2/3, conforme o grau de perturbação (artigo 28, II, §2º, Código Penal).

Já a embriaguez acidental completa conjugada com a sua total incapacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento afasta a culpabilidade do agente, razão pela qual será absolvido, sem a aplicação de qualquer tipo de sanção, conforme artigo 28, II, §1º, Código Penal.  O  reconhecimento da incidência do supracitado dispositivo não autoriza a aplicação de medida de segurança, pois apesar de o sujeito ser imputável, ocorre a exclusão da conduta, em razão do caso fortuito e da força maior, e, consequentemente, afasta a tipicidade.

Embriaguez preordenada ou dolosa
Preordenada, ou dolosa, é aquela em que o agente propositadamente faz o uso de bebida alcoólica ou de substancias de efeito psicotrópico análogo com o fim precípuo de  cometer uma infração penal. A embriaguez funciona como fator de encorajamento para a execução do ato, ou ainda, para eximir-se da pena, colocando-se em estado de inimputabilidade. Neste caso, o animus de delinquir é anterior ao de se embriagar.

O agente faz-se instrumento de si mesmo para praticar o delito. Assim, para que seja configurada a embriaguez preordenada é necessário dolo no estado de imputabilidade, configurando a embriaguez o primeiro elo na cadeia de eventos que conduz ao resultado antijurídico, ainda que meramente preparatório. O fundamento da punição, no caso, é a causalidade mediata.

A embriaguez preordenada além de não excluir a imputabilidade penal, constitui causa agravante genérica (artigo 61, II, l, do Código Penal). É o exemplo clássico de aplicação da teoria da actio libera in causa.

Embriaguez não acidental
A embriaguez não acidental é aquela causada pela conduta do próprio agente; este se embriaga por seus próprios meios, seja culposamente ou por sua vontade.

A embriaguez voluntária ou intencional é aquele em que o agente ingere bebidas alcoólicas com a intenção de embriagar-se, sem pretender praticar infrações penais. Sua vontade restringe-se a exceder os limites permitidos para a ingestão do álcool ou substancia de efeitos análogos.

Culposa é a espécie de embriaguez em que a vontade do agente é somente beber, e não embriagar-se. A embriaguez é derivada da culpa, muito embora o consumo da bebida haja sido espontâneo e consciente.

A embriaguez não acidental jamais exclui a imputabilidade do agente, seja voluntária, culposa, completa ou incompleta, conforme preceitua o artigo 28, II do Código Penal. Isso porque a ação foi livre na sua causa, devendo o agente, por essa razão, ser responsabilizado. Trata-se da aplicação da teoria da actio libera in causa em que há a presunção de dolo e culpa estabelecida pelo legislador, isto é, a adoção da responsabilidade penal objetiva. Neste ponto, controvérsia jurídica surge no âmbito de incidência da teoria da actio libera in causa, vez que alguns autores criticam o alargamento da teoria para incluir as hipóteses de embriaguez voluntária e culposa, bem como aos demais estados de inconsciência. Vejamos:

Teoria da actio libera in causa
A teoria da actio libera in causa, teoria da ação livre em sua causa, fundamenta-se no princípio segundo o qual a causa da causa também é a causa do que foi causado, ou seja, para aferir-se a imputabilidade penal no caso de embriaguez, despreza-se o tempo em que o crime foi praticado, pois nesse momento o agente estava privado da capacidade de entendimento e de autodeterminação e, por esse motivo, considera-se como marco da imputabilidade penal o período anterior à embriaguez.

Segundo Bettiol "a actio libera in causa ocorreria, portanto, todas as vezes em que um crime fosse praticado em estado de incapacidade como conseqüência de uma  precedente conduta consciente" [1].

O Código Penal, em seu art. 28, II, aderiu à teoria da actio libera in causa ad libertatem relata. Tal orientação foi expressamente adotada pela Exposição de Motivos do Código Penal de 1940, mantida, nesse ponto, pela Lei 7.209/1984.

É importante observar que no início a teoria da actio libera in causa era aplicada somente na hipótese da embriaguez pré-ordenada. Modernamente, a aplicação da citada teoria foi estendida à embriaguez voluntária e à embriaguez culposa, bem como aos demais estados de inconsciência, o que vem gerando grandes discussões doutrinárias.

Parte da doutrina resiste à referida ampliação, entendo que a aplicabilidade da actio libera in causa deveria continuar restrita aos delitos preordenados. Como representantes desse posicionamento podemos citar a lição de Aníbal Bruno, Guilherme de Souza Nucci, Paulo José da Costa Júnior e Magalhães Noronha.

Aníbal Bruno critica a solução adotada pelos doutrinadores que não restringem a aplicação da teoria da actio libera in causa apenas às hipóteses de embriaguez preordenada. Para ele, "os crimes praticados em estado de embriaguez voluntária ou culposa, em que não há, na fase de imputabilidade, dolo nem culpa em relação ao fato punível, não dever ser incluídos na teoria da actio libera in causa" [2].

Nucci não concorda com a posição de quem sustenta a existência da actio libera in causa para o contexto da embriaguez voluntária ou culposa, assim se manifestando: "a embriaguez  voluntária ou culposa, mas não preordenada, espelha uma  responsabilidade penal objetiva e jamais a teoria da actio libera in causa" [3].

Paulo Jose da Costa Júnior [4]  sustenta a inadmissibilidade da utilização da fórmula da actio libera in causa para além da embriaguez preordenada, sob pena de se ressuscitar a tão indesejada culpa versari in re illicita.

Magalhães Noronha afirma que "não se pode, em nome dessa teoria, responsabilizar alguém pelo só fato de poder genericamente delinquir, pois é preciso acentuar que quando, na citada teoria, se fala em dolo ou culpa em relação ao crime que se segue, é sempre certo e determinado delito" [5].

Toledo [6] aceita a aplicação da teoria actio libera in causa, mas destaca que o disposto no artigo 28, inciso II, do Código Penal deve ser interpretado de maneira conjugada com o princípio do nullum crimen sine culpa. Nessa linha de raciocínio, Toledo sustenta a aplicação da teoria da actio libera in causa apenas em caso de preordenamento ou dolo eventual (o agente embriaga-se voluntariamente, sem a intenção de praticar o crime, mas prevendo a possibilidade de cometê-lo e assumindo tal risco). Se o indivíduo se embriaga de maneira voluntária ou imprudente, mas sem prever, ou prevendo, mas esperando que não ocorra o crime, a questão resolve-se pela culpa stricto sensu.

Nelson Hungria [7] também defende a adoção da teoria da actio libera in causa, tendo afirmado que existe uma vontade residual no estado de ebriedade. A responsabilidade do agente não seria objetiva, mas seria ditada por ampliação do próprio critério voluntarístico, sendo tal ampliação ditada por motivos de índole social. Para justificar sua posição, Hungria afirma que:

"[…] segundo a lição da experiência, a vontade do ébrio não é tão profundamente conturbada que exclua por completo o poder da inibição, como acontece nas perturbações psíquicas de fundo patológico; […] a embriaguez quase sempre revela o indivíduo na sua verdadeira personalidade, e precisamente o objetivo da teoria da culpabilidade é tornar-se responsável o indivíduo pelos atos que são expressão de sua personalidade; […]a ameaça penal será um motivo inibitório a mais no sentido de prevenir a embriaguez, com os seus eventuais efeitos maléficos." [8]

Dependência de substância entorpecente
Convém notar que, no caso dos dependentes de drogas, o tratamento penal será aquele previsto na Lei de Drogas. O artigo 45 da Lei nº 11.343/2006 considerou inimputáveis os agentes que, em razão da dependência ou de estarem sob o efeito de substância entorpecente, proveniente de caso fortuito ou força maior, forem, ao tempo da infração penal, inteiramente incapazes de compreenderem o caráter ilícito do fato ou de se orientarem de acordo com esse entendimento.

A medida de segurança é aplicada excepcionalmente e somente para o inimputável, ficando a cargo do juiz a avaliação quanto à necessidade ou não de internação. Se a redução da capacidade for apenas parcial sua pena será reduzida de 1/3 a 2/3 (parágrafo único).

Considerações finais
Em face do exposto, é possível constatar a existência de quatro modalidades de embriaguez, sendo que para cada uma delas há uma solução penal específica.

Inicialmente a embriaguez patológica que, por ser considerada uma doença mental, exclui a imputabilidade ou causa a diminuição da pena, conforme artigo 26 caput ou parágrafo único do Código Penal.

A embriaguez acidental é aquela que decorre de caso fortuito ou força maior. Quando completa implica a inimputabilidade do agente (artigo 28, §1º, Código Penal), e quando incompleta a conduta será criminosa, sendo que a pena deverá ser reduzida (artigo 28, §2º, Código Penal).

Há ainda a embriaguez preordenada, hipótese de aplicação da teoria da actio libera in causa, por excelência. Nessa modalidade o agente se embriaga com vistas a liberar seus freios inibitórios para perpetrar conduta delituosa. Neste caso, incide a agravante prevista no artigo 62, II, e do Código Penal.

A embriaguez voluntária (aquela em que o agente quer embriagar-se) ou culposa (o agente não quer embriagar-se, mas agindo culposamente, acaba embriagando-se), em face da adoção da teoria da actio libera in causa, não exclui a imputabilidade (artigo 28, II, Código Penal). Neste ponto foi abordada a celeuma jurídica decorrente da aderência plena do direito brasileiro à teoria da actio libera in causa.

Assim, a embriaguez terá uma aplicabilidade diferente em cada caso, devendo ser analisadas suas modalidades e a sua afetação na capacidade de discernimento do agente (completa ou incompleta) para possível alteração da culpabilidade do indivíduo.

 

 

Referências
BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. 7 ed. v. II, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1971.

BRUNO, Aníbal. Direito Penal: Parte Geral, t. II, Rio de Janeiro: Editora Nacional de Direito, 1956.

COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Comentários ao Código Penal, 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

GRECO. Rogério. Curso de Direito Penal. 11. ed. Rio de Janeiro. Impetus, 2009.

HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao código penal, v. 1, t. 2. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense: 1983.

MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado. Parte Geral. v. 1. 8. ed. São Paulo: MÉTODO, 2014.

NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. 36. ed. v. 1.  São Paulo: Saraiva, 2001.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 9  ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal, 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994.

 


[1] BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. 7. ed. v. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1971. p. 65.

[2]  BRUNO, Aníbal. Direito Penal: Parte Geral, t. II, Rio de Janeiro: Editora Nacional de Direito, 1956, p.439.

[3]  NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 9.  ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 287.

[4] COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Comentários ao Código Penal, 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2002,  p. 126.

[5]  NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal ,  36. ed. v. 1.  São Paulo: Saraiva, 2001,  p. 185.

[6]  TOLEDO,Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal, 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 323-325.

[7]  HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao código penal, v. 1, t. 2. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense: 1983, p. 385-386.

[8]  Idem.

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