O mundo, por Millôr

Há cem anos nascia Millôr Fernandes, o maior pensador do humor brasileiro

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16 de agosto de 2023, 10h27

Celebra-se, nesta quarta-feira, 16 de agosto de 2023, o centenário de nascimento de um dos grandes pensadores do Brasil, o jornalista, escritor, poeta, dramaturgo, tradutor, desenhista, cartunista e humorista Millôr Fernandes. Filósofo também.

Mas pode ser que não. É possível que ele tenha nascido em 27 de maio de 1924, como constava em sua certidão de nascimento. Certidão essa que lhe permitiu que ele trocasse o seu nome de Milton, como seus pais pretenderam chamá-lo, para Millôr, como lhe pareceu ter sido escrito no papel quando ele próprio conferiu o registro no cartório, aos 18 anos de idade.

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Coisas do destino ou predestinação. Duas datas de nascimento e dois nomes de registro. Compatível para uma mente de múltiplas facetas como a de Milton, digo, Millôr Fernandes. O que se sabe, sem sombra de dúvidas, é que ele morreu em 27 de março de 2012, no Rio de Janeiro, deixando uma vasta obra que registra e interpreta o Brasil do século 20 e do início do 21.

Dono de estilo único e de um texto que fazia da simplicidade uma virtude, Millôr aprendeu tudo na vida por conta própria e a duras penas. Órfão de mãe aos dois anos e de pai aos 11, começou a trabalhar aos 13 na revista O Cruzeiro, o primeiro grande órgão da imprensa escrita brasileira, que entre os anos 1950 e 1960 alcançou uma circulação de 700 mil exemplares. Depois disso trabalhou em órgãos da grande imprensa, como as revistas Veja e Isto É e o Jornal do Brasil.

Em 1964, fundou a revista Pif-Paf, considerada a primeira revista alternativa da imprensa brasileira, de curta duração por obra e graça do golpe militar que sobreveio à sua fundação. Anos depois participou da criação do Pasquim, este sim, o mais importante veículo alternativo do país e que haveria de revolucionar o modo de fazer jornalismo no Brasil para sempre.

Segundo o próprio Millor, "o passar desses anos, se não ampliou um talento apenas comum trouxe um certo aprimoramento de forma e, sem dúvida, talvez pela exaustão e pelo tédio (ou pela consciência profissional de não encher o saco do leitor), um grande poder de concisão e uma filosofia a respeito: não se escreve com 11 palavras o que se pode escrever com 10 (a não ser que você seja americano e ganhe por palavra; aí a proposição deve ser invertida)".

Millôr se considerava e era um intelectual da palavra que ele valorizava como a mais poderosa forma de expressão humana. "Só a palavra tem 5 bilhões de pessoas no mundo criando permanentemente", disse ele, ao ser entrevistado no programa Roda Viva, da TV Cultura, em 1989.

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Charge de Millôr Fernandes dada para Márcio Chaer, diretor desta ConJur

Hoje, seriam 8 bilhões de pessoas usando a palavra de forma contínua e prolongada, o que só reforça a ideia da potência da palavra. "Pois é: 'Uma imagem vale mil palavras.' Verdade evidente. Corrijo logo — apenas evidente. Pois como você diria isso sem palavras?"

Usando a palavra ele construiu o "livre pensar, só pensar", a maneira Millôr, toda peculiar de enxergar o Brasil, o ser humano e o mundo. Começando com o Brasil, de quem ele tinha uma percepção crítica e cruel, mas que dificilmente pode-se dizer que não fosse real. "Este é o país onde há a maior possibilidade de se criar um mundo inteiramente novo. Caos não falta".

Já naquele tempo, tinha uma visão de política em conformidade com o senso comum, que coloca a corrupção como o fim da política. "Corrompo, logo existo", dizia. E para a intervenção dos militares na política ele tinha uma solução: "Pega todos esses milicos metidos na política e convoca-os para o serviço militar obrigatório". E olha que ele falou isso foi muito antes, quando para ser presidente era obrigatório ser general.

Nestes tempos de polarização, Millôr estaria onde sempre esteve: sozinho. Opositor por opção e por convicção ("Imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados"), dizia que a política brasileira tinha três correntes: a extrema direita, a extrema esquerda e o extremo centro". Cobiçado por todas as correntes políticas, não pertenceu a nenhuma. "Só assino texto que eu tenha escrito", respondia sempre que se tentava ter sua assinatura em abaixo-assinados. E evitava dar entrevistas porque entendia que expor ideias era seu trabalho e, por isso, seria justo que fosse remunerado para fazê-lo. 

Além dos políticos e da política, tinha outras aversões. Por exemplo, fez campanha contra a lei que obrigou o uso do cinto de segurança nos carros. Outra birra sua era com a televisão, que em seu tempo ocupava o espaço na tecnologia e na capacidade de informar que é hoje da internet e das redes sociais. Dizia ele: "Vendo televisão o dia todo, sabemos cada vez menos sobre cada vez mais". Alternativamente: "Televisão, ou seja, vida de segunda mão".

Mas era acima de tudo um humorista humanista: "O sentido de humor que me fez ver sempre falho, me mostra toda a complexidade das relações humanas como uma coisa extraordinariamente engraçada, mesmo quando dramática, mesmo quando odiosa, mesmo quando mesquinha, Pois fora do ser humano, a vida não tem enredo. Fora do ser humano não há salvação. Não resisto a um ser humano".

Sua definição de humor era séria de mais pra ser lida como piada: "Humor é quando todo mundo diz uma coisa e você diz o contrário". Pausa breve. E o arremate: "É quem está certo é você".

Para os leitores de um site jurídico, eis uma lista de citações de Millôr Fernandes em matéria jurídica:

  • Todo juiz tem o réu que merece.
  • Chama-se de júri popular um grupo de pessoas perigosamente próximas do banco dos réus.
  • A justiça é igual para todos. Aí já começa a injustiça.
  • A justiça não é cega, mas perdeu a lente de contato.
  • O delator ganha o pão com o suor do seu dedo.
  • Democracia é eu mandar em você. Ditadura é você mandar em mim.
  • A democracia é a crença que uma multidão de idiotas juntos pode resolver problemas melhor do que um cretino sozinho.
  • A Democracia Relativa é muito parecida com a Ditadura Absoluta
  • O ser humano já nasce devendo nove meses de pensão
  • Tudo é erro na vida do revisor.
  • Nos últimos seis meses, não houve nenhum aumento de corrupção na área estatal. Continuamos nos mesmos 100%.
  • As principais formas de governo são as ruins e as muito piores
  • O lar é inviolável, mas umas boas trancas não fazem mal a ninguém.
  • Luta de classes: agora que todas as fábricas do mundo fabricam robôs para substituir os operários, por que os operários não fazem robôs para substituir os patrões?
  • Quem não tem inimigos não merece os amigos que tem
  • Glória: fui a última pessoa processada pela odienta "Lei" de Segurança Nacional. Defensor: Técio Lins e Silva

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